A longa vida de BB, a mulher inventada por Brigitte Bardot

A “única estrela que o cinema francês teve” faz 80 anos este domingo. Isolada em Saint-Tropez, vive a vida que diz querer viver, longe daquela que deixou que o cinema filmasse. Em França, há quem celebre o mito por não conseguir lidar com a realidade.

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“Um dia ela disse não e nós sentimo-nos abandonados”, escreve Jean-Max Causse. “Agora que ela se foi embora, incontáveis rapazes perguntam-se, há mais de 40 anos, como foi crescer sem ela”, escrevera antes o jornalista Michel Grisolia num livro que lhe foi dedicado e que é citado no texto de apresentação do ciclo Brigitte Bardot, Bardot, como o título da canção de Dario Moreno: “Brigitte Bardot, bravo/ Por ti, a cada segundo/ bate o coração de um homem”.

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“Um dia ela disse não e nós sentimo-nos abandonados”, escreve Jean-Max Causse. “Agora que ela se foi embora, incontáveis rapazes perguntam-se, há mais de 40 anos, como foi crescer sem ela”, escrevera antes o jornalista Michel Grisolia num livro que lhe foi dedicado e que é citado no texto de apresentação do ciclo Brigitte Bardot, Bardot, como o título da canção de Dario Moreno: “Brigitte Bardot, bravo/ Por ti, a cada segundo/ bate o coração de um homem”.

“Nunca mais houve nada parecido”, lamenta um dos espectadores da sessão em que passa Vagabundos ao Luar (1958), de Roger Vadim, filme que hoje parece uma bizarria pela visão de Bardot a tourear na província espanhola. “Na altura queríamos todas ser como ela, mas não sabíamos nem podíamos”, confessa-nos outra espectadora “quase da idade dela”. “Ela foi, muitas vezes, a única liberdade que a que tínhamos direito”, continua. No programa do ciclo, Jean-Max Causse lembra que Bardot foi capaz de “insuflar [a França] de um desejo de liberdade que anteciparia, em 12 anos, o fim do jugo gaullista [do general Charles de Gaulle]. “Ela não era só uma figura do cinema, era a França libertada”, insiste a mesma espectadora de cabelos brancos, emocionada com o reencontro com “a melhor das francesas”.

Mas hoje, quando é notícia pelo extremismo e já não pelo cinema, continua Brigitte Bardot a ser BB? “Representei a liberdade, a juventude e a felicidade. Hoje já não sou assim”, disse a actriz e activista à France 2.

Há algo de profundamente trágico em Bardot. Algo que, de um ponto de vista racional, nos faz olhar para esta mulher e tentar perceber em que se tornou e porquê. Quando Laurent Delahousse lhe pergunta se regressou às origens e BB diz que não percebe a pergunta, o jornalista lembra-lhe o pai conservador. Bardot faz uma pausa e depois assume: “Sim, eu sou uma conversadora. Tem razão, voltamos às origens."

“Com os anos, dei-me conta da injustiça e da mediocridade humana. Percebi que o ser humano tem defeitos insuportáveis. Acha que a sociedade evoluiu no melhor sentido? Tenho a certeza de que não. Veja a merda em que nos encontramos. É claro que sou conservadora." Confrontada com as declarações de apoio à Frente Nacional, ao arrepio de uma França que a admira pela sua liberdade, Bardot responde: “É a imagem da França que gostaria de ver surgir." E percorre, sem perdão, o perfil dos vários presidentes que foi conhecendo. Não poupa nenhum, com excepção de Giscard d’Estaing, “um amigo” que ainda hoje lhe faz a corte. Jacques Chirac é tratado como mentiroso, tal como Nicolas Sarkozy, por lhe “terem prometido muito e não terem cumprido nada”. A François Miterrand reconhece “o gesto simpático" de a ter agraciado com a Legião de Honra, "que não queria”; François Hollande, o actual ocupante do Eliseu, é um homem que “parece ouvir” o que lhe diz. Mas é de Marine Le Pen que BB espera mais: “Gosto muito dela, ela é mais do que os outros. Em termos gerais, as ideias de Marine Le Pen agradam-me. É a única mulher com um par de tomates."

Este lado beligerante, que a fez retirar-se da vida pública, que a afastou da televisão, que a atirou para a barra dos tribunais onde foi perdendo processo atrás de processo, recurso atrás de recurso, face às acusações de incitamento ao ódio e a denúncia daquilo a que chamou, no livro Un cri dans le silence, “a islamização da França”, é o rosto que a França hoje encontra quando procura aquela que em tempos encarnou a República. Foi em 1968, o ano da revolta estudantil, que BB se viu esculpida por vontade de De Gaulle — e, para escândalo da sua mulher, exposta em todos os estabelecimentos públicos franceses.

“Sou consciente de que deixei a minha marca”, diz para falar da "beleza insolente, que adorava” por ser a sua. E então ri-se quando Laurent Delahousse lhe lembra que o público também adorava essa insolência, para depressa voltar a uma modéstia da qual só podemos desconfiar: “Nunca tive noção do impacto que provocava. Fui sempre o que fui e quis ser. Ainda hoje." Questionada sobre se recusa, a mitologfia BB, afirma, peremptória, “não cuspir no passado”, usando a favor da fundação que criou em 1986 a força do seu nome e desse passado. “Não recuso nada. Sei bem que é graças a ter sido BB que cheguei onde cheguei", deixou escrito em Brigitte après Bardot (2014).

O corpo do desejo
Regresso ao momento em que Bardot se tornou BB. Foi em 1956, e bastou-lhe uma dança em cima de uma mesa rodeada por vários homens. E Deus Criou a Mulher, realizado pelo seu primeiro marido, Roger Vadim, inaugura a imagem de uma mulher que já antes entrara em filmes mas ainda não nascera como fantasia cinematográfica. É, diz hoje, BB como Bardot gostava e ainda gosta de ser, e como nunca antes tinha podido: “Penteada como gostava, despentada; maquilhada como gostava, sem nada; vestida como gostava, ou seja nua.” Na altura, o realizador François Truffaut veio em defesa da actriz nas páginas dos Cahiers du Cinéma, dizendo que, a par de Marylin Monroe e James Dean, BB transformava todos os outros actores em “pálidos manequins”. “Agradeço a Vadim ter dirigido a sua jovem mulher, fazendo-a repetir gestos quotidianos em frente à câmara, gestos insignificantes como brincar com a sua sandália ou menos insignificantes como fazer amor em plena luz do dia – menos insignificante mas mais real!” Bardot retribuiu-lhe o agradecimento e assim nasceu uma actriz.

Nesse tempo, BB “vivia como todos sem ser como ninguém” (Jean Cocteau). BB era “a primeira mulher moderna, capaz de tratar os homens como objectos sexuais” (Andy Warhol). BB era a mesma mulher que Claudia Cardinale – com quem haveria de fazer um filme, Les Petroleuses (1971), de Christian-Jacques – “gostaria de ser”, da roupa aos cabelos. E essa mulher, “o sonho de todos os homens casados”, como lhe disse Vadim, era a mesma que se deixava aprisionar num elevador de um hotel com uma empregada que de garfo em riste a acusava de ser “a ladra de todos os homens”. Ao mesmo tempo que era um símbolo de emancipação e de liberdade, era também a mulher que vivia numa prisão, “uma bela prisão, mas ainda assim uma prisão”, disse em entrevista. A primeira sequência de O Desprezo (1963), de Jean-Luc Godard, quando nua pergunta a Michel Piccoli se gosta de todo o seu corpo ou se prefere alguma parte em especial, faz parte da construção de um corpo que era, na altura, o corpo que a França desejava. “Sou como a natureza me fez. Ainda é assim, hoje”, confessa, orgulhosa de nunca se ter feito intervencionar.

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Para Francine Rivière, uma das suas amigas, citada no documentário da France 2, Bardot “representou a típica rapariga francesa”, a dos sonhos, que, como diz uma outra amiga, Irène Bolling, “fazia vender tudo, carros, produtos de beleza, viagens”, ao mesmo tempo que, acrescenta mais uma amiga, Jacqueline Veyssière, “sofria com o mito que representava”.

Há um lado negro nesta história que o cinema inventa. Foram três tentativas de suicídio: aos 19, aos 26 e aos 49 anos. Houve um filho que recusou e com o qual, ainda hoje, tem uma relação complexa. “Vemo-nos raramente. Vi as minhas netas uma vez. As famílias são difíceis”, diz, sem mais acrescentar sobre a polémica criada pelo que contou no livro Initiales BB, onde falava da gravidez como um tumor do qual se queria libertar. Pouco depois do nascimento de Nicolas, dizia que não podia ser mãe quando ainda precisava de ser filha.

BB não sabia ser Bardot. “Pertenço a todos e essa existência é-me insuportável”, confessou nos anos 1960. A BB que o assume é a mesma que não recusa o seu papel na construção de uma relação mal-sã com uma imprensa na altura ainda a aprender a lidar com o impacto das estrelas de cinema. Quarenta anos depois, perguntam-lhe o que a levou a desistir e responde assim: “Quando se comem muitos chocolates, tem-se uma indigestão. Eu tive uma indigestão de fotógrafos, de filmes e de imagens que me perseguiram a vida toda."

Quando, numa entrevista à beira dos 40, disse que “sem o cinema [se imaginava] serena”, ninguém podia adivinhar que era já o anúncio do fim da carreira. Um dia, depois de mais uma cena de nu, disse ao seu agente que acabara. Ficaram por responder os convites para filmar nos Estados Unidos com Marlon Brando e para ser uma das convidadas da série Dinastia. A explicação veio em comunicado: BB “já não conseguia ver-se envelhecer”, sentia-se desconfortável.

Hoje, Christian Brincourt, que a conheceu no início da sua carreira, diz-se impressionado por, 60 anos passados, “a burguesinha do 16.º bairro ainda fazer parte dos sonhos das pessoas”. “Ela foi sempre livre e pagou muito cara essa liberdade”, sublinha o marido, Bernard d’Ormale, figura reconhecida do partido de extrema-direita Frente Nacional. O isolamento no qual vive BB, explica, deve-se “a um mundo que ela não compreende e que se recusa a compreendê-la”. E, por isso, apesar dessa distância, e da recusa em regressar, a mesma Bardot que vendeu o que tinha para construir uma fundação para a defesa da causa animal responde a todas as cartas e a todos os pedidos que invariavelmente continuam a chegar-lhe. “Vive na nostalgia de um passado”, chega a dizer um dos seus próximos. “Num mundo próprio”, corrige o marido. “Sem remorsos nem lamentos”, diz BB, a rapariga que, como cantou Dario Moreno, “se não tivesse existido/ teria de ter sido inventada”.