A Escócia e os “perigos” da democracia
Raras vezes figurões como o presidente dos EUA ou o de França, o da Comissão Europeia, o chefe do governo espanhol, se intrometeram onde nunca algum deles aceitaria que se fizesse o mesmo numas eleições em que eles estivessem em causa.
Madrid fará bem em não deixar que na Catalunha se repita o erro feito na Escócia. Ora, pelo contrário, o que demonstra o referendo escocês é que as pessoas voltam às urnas quando percebem que a mudança está ao seu alcance, mas não o fazem quando lhe dão Blair vs. Cameron – ou Passos vs. Costa/Seguro (riscar o que não se aplique...).
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Madrid fará bem em não deixar que na Catalunha se repita o erro feito na Escócia. Ora, pelo contrário, o que demonstra o referendo escocês é que as pessoas voltam às urnas quando percebem que a mudança está ao seu alcance, mas não o fazem quando lhe dão Blair vs. Cameron – ou Passos vs. Costa/Seguro (riscar o que não se aplique...).
Pela enésima vez, o medo (descrito como ”realismo”) funcionou como instrumento decisivo de condicionamento da decisão democrática. Recentemente, o mesmo se fez com os gregos – e, na história eleitoral do Ocidente, instilar o medo da mudança é do mais banal que encontramos. O disparate foi tal que o Royal United Services Institute (um think-tank financiado pelo Ministério da Defesa) disse que a Escócia independente podia sofrer um ataque de submarinos russos no dia em que um novo governo exigisse a saída da frota nuclear britânica das suas bases escocesas! (cf. Military & Defense, 26.8.2014) O chefe do governo autónomo escocês, Alex Salmond, chamou-lhes as “dez pragas do Egito” que Londres prometia que se abateriam sobre a Escócia se ela quisesse ser independente: apesar da (moderadíssima) vontade dos nacionalistas no poder de manterem a libra britânica ou até mesmo a Rainha de Inglaterra como chefe de Estado (contrariando o republicanismo de muitos independentistas), Cameron (discurso em Aberdeen, 15.9.2014) recusou-lhes poderem manter a moeda, ameaçou-os (juntamente com Rajoy e o inefável Barroso!) com a saída da UE e da NATO, e de que se bloquearia um futuro processo de reingresso em ambas. A Ucrânia pode aderir a ambas - mas se a Escócia se separasse do Reino Unido, que nem pensasse em reentrar em nenhuma delas! Cameron sabia que uma boa parte dos partidários da independência, sobretudo à esquerda, apoiavam uma Escócia neutral e desnuclearizada, mas queria amedrontar (e teve sucesso) o escocês moderado, descrevendo a independência como o caminho para o poço sem fundo do isolamento internacional! O cinismo foi tal que semelhante isolamento deve parecer-se ao futuro que a direita britânica proporá em 2017 quando promover o seu próprio referendo para sair da União Europeia!
Acima de tudo, haveria cortes e caos nas pensões de reforma e no sistema público de saúde; na era em que as transações financeiras, façam-se onde se fizerem, não conhecem fronteiras, muitos escoceses iam perder o crédito à casa “porque metade dele estaria nas mãos de bancos [britânicos, não-escoceses] que passariam a ser considerados estrangeiros”!
Cameron fez aos escoceses uma verdadeira declaração de marido despeitado face ao pedido de divórcio da mulher: “Se a Escócia disser sim, o Reino Unido cinde-se e faremos para sempre caminhos separados”, num “divórcio [sic] doloroso”. “Uma família não é um compromisso”, disse ele - mas a unidade nacional, num Estado democrático, não é, forçosamente, um compromisso? “Uma família é uma identidade mágica, que nos junta mais do que alguma vez chegaremos a estar separados – portanto, por favor, não rompam esta família”. “Mágica”, notem bem! Quem julga que os sentimentos nacionais não passam disso mesmo - puros sentimentos e pouca razão -, e o repetiu à saciedade sobre o caso escocês, diga-me, por favor, que guionista de telenovela de 3ª categoria escreveu semelhante melodrama xaroposo para ser lido pelo Primeiro-Ministro do Reino [Duvidosamente] Unido!
Por fim, ao assegurar que, com a independência da Escócia, desapareceria “o maior exemplo de democracia que o mundo alguma vez conheceu, de abertura, de gentes de diferentes nacionalidades e fés se juntarem para formarem um só país”, Cameron deve ter-se esquecido de quanto sangue se verteu na Irlanda para conseguir a independência do país, de como os britânicos acusaram os nacionalistas irlandeses que fuzilaram em 1916, em plena I Guerra Mundial, de serem agentes a soldo da Alemanha, ou dos séculos de violência colonial, abertamente racista, praticada em África ou na Índia (e já nem quero falar dos nossos dias...).
Raras vezes figurões como o presidente dos EUA ou o de França, o da Comissão Europeia, o chefe do governo espanhol, se intrometeram onde nunca algum deles aceitaria que se fizesse o mesmo numas eleições em que eles estivessem em causa. Pelas nossas bandas, os anglófilos de serviço mostraram-se horrorizados com a traição escocesa! É que não esqueçamos que a maioria das elites do poder em Portugal, quer as que vêm diretamente da alta burguesia conservadora, quer as que, do maoísmo, transitaram para o neoliberalismo durante os tempos de Thatcher (1979-90), lê e estuda o mundo (só) em Inglês, e a capital visível, próxima, à distância de duas horas de avião, é Londres, nunca chegou a ser Washington/Nova Iorque. Acresce-lhes o vício de geopolitizar toda a realidade: não entendem que os escoceses queiram romper com Londres para, por exemplo, poder preservar a saúde e a escola públicas – que foi o que começou a fazer já o Parlamento autónomo ao tornar Escócia um dos raros sítios na Europa onde volta a ser gratuito estudar na universidade, rejeitando as mega-propinas que Blair (2003) e Cameron (2010) impuseram, hoje de 12 mil euros/ano! Os internacionálogos da nossa praça, que desprezam as questões sociais e usam uma História de pacotilha nas suas análises, gostam é de fazer contas às bases navais e aos rendimentos do petróleo escocês – que pode ser usado por Londres para gastar o que mais ninguém gasta em armamento na UE (2,3% do PIB, o dobro da Alemanha), mas é gordura de Estado se for gasto em Bem-Estar Social.