O “espectador agrilhoado”, ou a cinefilia sabotada

Todo o cinema é comercial e, acima de tudo, comerciável. Há muito que quem vende sabe disto e se especializou em satisfazer essa procura de exclusividade por parte dos nichos. Tudo está onde tudo começa: na estratégia de marketing

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StudioTempura/Flickr

A meio de um trimestre dourado para o cinema português, uma questão parece impor-se: será que os cinéfilos actuais compreendem até que ponto a forma como experienciam determinado filme vai para além do acto da visualização?

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A meio de um trimestre dourado para o cinema português, uma questão parece impor-se: será que os cinéfilos actuais compreendem até que ponto a forma como experienciam determinado filme vai para além do acto da visualização?

Assistir a um filme é um ponto intermédio num percurso há muito encetado, começando o relacionamento do espectador com a obra muito antes. Isto tanto acontece a título individual ou grupal, através de um ritual de “privacidade” e de exclusividade. De outro modo, o filme, independentemente dos seus atributos formais, pode ser etiquetado de “comercialóide”. Assim, consoante o grau de exposição, pode perder interesse para quem procura no cinema a pureza do valor cultural. Todavia, todo o cinema é comercial e, acima de tudo, comerciável.

Tudo isto talvez porque se é de facto “essencialista”, mesmo perante obras projectáveis para a multidão, ou simplesmente porque se enraizou que o gosto funciona como marcador de distinção. Quanto aos cinéfilos, se por um lado parecem prezar bastante a primeira parte desta premissa, por outro, parecem ter dificuldade em assumir o modo como o padrão decorrente da segunda parte os pode condicionar na forma como recebem um filme.

Há muito que quem vende sabe disto e se especializou em satisfazer essa procura de exclusividade por parte dos nichos. Tudo está onde tudo começa: na estratégia de marketing. É possível capitalizar a unidade existente na diferença: o filme de autor é o género por excelência do cinema europeu e cada realizador é tratado como uma marca, tal como se de um par de jeans se tratasse. A diferença mais óbvia entre o marketing de Hollywood e o do cinema artístico é que um é abertamente generalista enquanto que o outro tenta resguardar a “aura” da obra, vivendo da dose de denegação necessária para que pareça não querer vender ao máximo número possível de pessoas o que está a vender.

Passou-se agora um ano desde o fenómeno de “A Gaiola Dourada”, filme que embora recorra a um idioma simples, possui um sub-texto denso e uma visão peculiar sobre uma temática até então inexplorada. A “Gaiola” granjeou grandes receitas graças ao mesmo público que aderiu aos restantes “blockbusters” de Verão, mas parcos elogios por parte da crítica e pouca simpatia no meio cinéfilo. Eis como o contexto se sobrepôs ao conteúdo. Se tivesse sido um filme com pouca exposição talvez tivesse potencial suficiente para se tornar numa obra de culto. Poderia ter sido “aquele filme interessantíssimo que retrata com refinado humor a vida dos emigrantes em França, que quando saiu quase ninguém viu, mas que é imperdível”. Em vez disso é mais “aquela comédia caricatural que toda a gente foi ver e que se consumiu tão rapidamente quanto os seus 90 minutos”.

Acreditando-se emancipado, o espectador parece estar mais agrilhoado do que nunca. Mas a última decisão acerca do que ver e acreditar é sua. Como diz Toni Servillo no final de “La Grande Bellezza”, “no fundo, é tudo um truque”.