O abismo do herói íntimo
O romance esquecido de um escritor pouco conhecido ganha fulgor décadas depois da sua publicação
O primeiro parágrafo é um teste. O que pode levar o leitor a desejar seguir um livro que lhe apresenta como protagonista uma personagem tão pouco memorável quanto a de William Stoner? Publicado em 1965, o romance vendeu dois mil exemplares até cair no esquecimento e o seu autor, o professor, poeta e ensaísta John Williams (1922-1994) ficaria sobretudo conhecido pelo seu quarto e último livro, Augustus (1972), romance epistolar sobre uma figura heróica que rompia com o que tinha escrito até então: livros centrados em gente pouco notável. Augustus valeu-lhe o National Book Award e nada de mais relevante se passou na vida do escritor até à sua morte. Foi a Europa, a partir de uma tradução da escritora francesa Ana Gavalda, a recuperar Stoner, o livro sobre um vulgar professor de Inglês, assistente numa universidade do Missouri durante as primeiras décadas do século XX, e a acordar também a América para o que é um dos grandes romances da sua literatura mais recente.
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O primeiro parágrafo é um teste. O que pode levar o leitor a desejar seguir um livro que lhe apresenta como protagonista uma personagem tão pouco memorável quanto a de William Stoner? Publicado em 1965, o romance vendeu dois mil exemplares até cair no esquecimento e o seu autor, o professor, poeta e ensaísta John Williams (1922-1994) ficaria sobretudo conhecido pelo seu quarto e último livro, Augustus (1972), romance epistolar sobre uma figura heróica que rompia com o que tinha escrito até então: livros centrados em gente pouco notável. Augustus valeu-lhe o National Book Award e nada de mais relevante se passou na vida do escritor até à sua morte. Foi a Europa, a partir de uma tradução da escritora francesa Ana Gavalda, a recuperar Stoner, o livro sobre um vulgar professor de Inglês, assistente numa universidade do Missouri durante as primeiras décadas do século XX, e a acordar também a América para o que é um dos grandes romances da sua literatura mais recente.
Esse despertar para Stoner começou em 2003 e desde então, as traduções e os escritos sobre a obra sucedem-se a ponto de causarem a relação contrária. Que há, afinal, de tão especial? A capacidade de, em simultâneo, nos confrontar com a nossa pequenez de forma tão crua e sem panos quentes e de nos dar todos os elementos para vermos nessa na demissão de querer ser maior uma humanidade desarmante e essencial. A lágrima aqui nunca é fácil, mas é difícil de travar. Quase tudo em William Stoner é íntimo. Por isso, o que passou para os que o conheceram enquanto ser social ou académico é pouco digno de nota na hora da sua morte. “William Stoner entrou para a Universidade do Missouri em 1910, aos dezanove anos. Oito anos depois, no auge da Primeira Guerra Mundial doutorou-se e aceitou um cargo de docente nessa mesa universidade, onde leccionou até morrer em 1956. Não passou do grau de assistente, e pouco alunos se lembravam de Stoner com nitidez, depois de terem acabado os cursos.”
As primeiras linhas são reveladoras de uma vida sem interesse colectivo. Não haverá nem uma nota de rodapé ou asterisco para uma história singular que se passa apenas na cabeça de um homem que, apesar da sua descrição se empenhou em seguir a sua grande aventura: a da literatura como referência, quando tudo nas suas circunstâncias pessoais o parecia limitar a uma existência de agricultor pobre numa pequena quinta do Midwest.
Filho único, é enviado pelos pais para a universidade em condições de extrema pobreza. Estavam dispostos a dar a William uma educação que o preparasse para cuidar da única herança que lhe deixariam e mandaram-no para a escola agrária na universidade mais próxima. Lá, contactou com um velho professor de Inglês que o colocou perante o que se apresentava para si, então, como o maior dos enigmas: um soneto de Shakespeare e dois versos em particular: “Eis o que torna o amor mais forte: / Amar quem está tão próximo da morte.” O que significavam? À pergunta do professor, Stoner não sabia responder; nunca tivera “consciência de si”, não sabia o que era a introspecção ou essa interrogação acerca de desejos, vontades, ambições. Os silêncios que conhecia eram os dos olhos da mãe que lhe pediam que seguisse a vida como lhe era apresentada. “Tomou consciência de si próprio como nunca antes lhe acontecera. Por vezes, observava-se ao espelho, o rosto comprido emoldurado pelo cabelo castanho seco, e tocava nas maças do rosto anguloso; via os pulsos finos, que saíam uns centímetros das mangas do casaco, e perguntava-se se teria um ar tão ridículo aos olhos dos outros como aos seus.”
O momento em que sentiu formigueiro nos dedos e o sangue a passar-lhe as veias quando não soube o que dizer perante Shakespeare foi revelador de um amor que seria o seu motor. A literatura foi maior do que o dever de se alistar para combater na Primeira Guerra Mundial e que os seus pares viram como fraqueza. Refugiou-se na literatura quando pensou ter descoberto o amor numa mulher de olhos claros que não sabia o que isso era. Desilusão? A vida de Stoner corre num fio muito ténue e o leitor acompanha-a tão de perto que cada fragilidade ou fortaleza da personagem traz o que de melhor a literatura é capaz: o lugar de Stoner é o nosso, o de cada um que lê as palavras certeiras de John Williams. Há redenção? Todos os grandes escritores andam mais ou menos por estes territórios. John Williams trata-o a nu, simples, a contar um homem coberto por uma espécie de manto feito de nostalgia, ingenuidade, aceitação que carrega a angústia, física para o leitor, de que cada minuto que passa é irrecuperável e que só talvez a literatura saiba ou tente captar essa brevidade. Se for capaz. “Tu és o sonhador, o louco num mundo ainda mais louco, o nosso Dom Quixote no Midwest sem o seu Sancho Pança, a fazer cabriolas sob o céu azul”, disse-lhe um amigo de faculdade. Cada descoberta mais ou menos dolorosa é encarada por Stoner com a valentia só possível a quem sempre soube do abismo e essa talvez seja a menos visível das bravuras. Pede-se – pede o leitor – que no meio de toda a resiliência, haja alguma outra paixão, como se pede para nós, para cada um de nós, numa espécie de prece velada: que Stoner saiba finalmente o que é o amor, e quando sabe, é isto: “Na sua mocidade, Stoner imaginara o amor como um estado absoluto do ser ao qual uma pessoa, se tivesse sorte, podia aceder um dia; na idade adulta, decidira que era o paraíso de uma falsa religião, que uma pessoa devia encarar como uma divertida incredulidade, um suave desprezo familiar e uma nostalgia embaraçada. Agora, na meia-idade, começava a perceber que não era nem um estado de graça, nem uma ilusão; via-o como um ato humano de transformação, uma condição que era inventada e alterada de momento para momento, de dia para dia, através da vontade, da inteligência e do coração.”