Uma arquitectura pública, tal como educação e saúde públicas

No dia em que o P3 comemora três anos pedimos a algumas pessoas que fossem o génio da lâmpada e apresentassem desejos de futuro. Susana Ventura, vencedora do IX Prémio Fernando Távora, apela a uma arquitectura da dádiva, uma arquitectura para a vida e uma arquitectura pública

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Catarina Botelho

Receio não conseguir responder, sem pelo menos contrariar um pouco o objecto da pergunta. Para muitos, a arquitectura será aquela que dá forma ao espaço, que o delimita e materializa, que o contém e define, que o torna expressivo, atribuindo-lhe as mais diversas propriedades. Italo Calvino, por exemplo, quando interpelado sobre as ideias, em literatura, que pudessem ser conservadas no novo milénio, preferiu pensar naquelas qualidades que apreciava na literatura e, consequentemente, desejava para a sua própria escrita e que, para si, atravessavam os tempos eternos da palavra, como a leveza, a exactidão, a multiplicidade, entre outras. Semelhantemente, não conseguirei pensar em três ideias que seriam, certamente, se ideias em arquitectura, ideias de formas (e estas nos mais diversos sentidos), preferindo pensar em três desejos que poderão ser, também, interpretados como qualidades que pertencem à arquitectura e que ainda nos permitem pensar na relação entre a arquitectura e o mundo. Este nosso mundo (e não só o da arquitectura).

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Receio não conseguir responder, sem pelo menos contrariar um pouco o objecto da pergunta. Para muitos, a arquitectura será aquela que dá forma ao espaço, que o delimita e materializa, que o contém e define, que o torna expressivo, atribuindo-lhe as mais diversas propriedades. Italo Calvino, por exemplo, quando interpelado sobre as ideias, em literatura, que pudessem ser conservadas no novo milénio, preferiu pensar naquelas qualidades que apreciava na literatura e, consequentemente, desejava para a sua própria escrita e que, para si, atravessavam os tempos eternos da palavra, como a leveza, a exactidão, a multiplicidade, entre outras. Semelhantemente, não conseguirei pensar em três ideias que seriam, certamente, se ideias em arquitectura, ideias de formas (e estas nos mais diversos sentidos), preferindo pensar em três desejos que poderão ser, também, interpretados como qualidades que pertencem à arquitectura e que ainda nos permitem pensar na relação entre a arquitectura e o mundo. Este nosso mundo (e não só o da arquitectura).

Adolf Loos é talvez um dos meus arquitectos preferidos e na sua arquitectura encontramos, a meu ver, essas qualidades intemporais do espaço que acolhe e recebe e dá. Frequentemente, dizia: “Sou comunista. A diferença entre mim e um bolchevique é que eu pretendo, unicamente, transformar as pessoas em aristocratas, enquanto aquele quer transformá-las em proletários”. Será necessário, certamente, ter em conta o humor único de Adolf Loos e o que está implícito nesta sua frase. Loos acreditava, à semelhança de vários arquitectos modernos, na construção de um espaço puro (sem ornamentos — aí o seu inigualável humor presente nesta frase), que, no entanto, permitisse a cada pessoa habitar um espaço digno. Todas as pessoas — a própria cidade — deveriam usufruir, segundo ele, de espaços com qualidade. Poderia tentar explicitar melhor a ideia de um espaço com qualidade, segundo Loos, mas o que me agrada nesta sua frase é que a arquitectura é uma questão de dádiva, de doar ao vazio, ao nada, um sentido de habitar o espaço, de forma a transformar (radicalmente, por vezes) a vivência das pessoas, a forma como habitam e, consequentemente, como vivem.

O segundo desejo é inseparável desta capacidade que a arquitectura possui de ser uma dádiva, embora compreenda uma outra escala, a dos dramas (no sentido da vida) de cada pessoa. Advém também de um outro Arquitecto, que muito admiro e que foi meu Professor, Vítor Figueiredo, que, na sua agudeza característica, nos relembrava que há espaços onde nos é quase impossível chorar, que não são espaços capazes de acolher o nosso choro ou o nosso luto. Curiosamente, Loos dizia que a carta de suicídio da jovem rapariga em cima da cómoda do quarto nada tinha a ver com as paredes deste. Há sempre esse limiar difícil para um arquitecto, entre definir um limite que seja suficientemente indiferente para a vida aflorar em todos os seus tons, sem, no entanto, criar um espaço, segundo Vítor Figueiredo, asséptico e desapiedado.

Um e outro desejo estarão, necessariamente, incluídos no último. Na minha recente viagem ao Japão, especialmente em Tóquio, deparei-me com a inexistência de espaço público, enquanto existe um controlo muito velado da passagem do espaço privado para o espaço exterior. Mesmo que compreenda o espaço público com os meus olhos ocidentais, como o espaço da ágora grega, o espaço da cidade, do diálogo, da partilha, do encontro, o espaço da rua ocupada, do largo, da praça, essa diferença, para a cidade oriental, fez-me desejar, ainda mais, uma arquitectura pública, nesse sentido que, para mim, é, também, inquestionável, de uma educação e de uma saúde públicas.

Uma arquitectura da dádiva, uma arquitectura para a vida, uma arquitectura pública: três desejos para uma arquitectura que pode sempre transformar o mundo.