A vida dos emigrantes portugueses na Argentina deu um livro

Algarvios, muitos, minhotos e serranos construíram, na primeira metade do século XX, uma nova vida num país que estava, também ele, a ser ainda construído. De Buenos Aires à Patagónia.

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Vivíamos em São Brás de Alportel… e o meu pai levava-me a passear todos os dias quando chegava do trabalho. Eu era a filha mais velha de três irmãos e de um ainda por nascer… De um dia para o outro, deixei de ver o meu pai e com quatro anos — e ele apenas com 23 — não podia entender o que tinha acontecido, nem para onde tinha ido. Ao ficarmos sozinhos, fomos viver para o campo, no sítio Dos Machados, com a minha mãe Gertrudes, grávida de oito meses. Ela teve de ir trabalhar, pelo que eu e os meus irmãos ficávamos sozinhos, quase todo o dia. Começaram a chegar as primeiras cartas. O meu pai pedia que o filho, se fosse varão, se chamasse Abel. Os dias passavam e eu só via cartas. Numa delas, ele dizia: ‘Yudith, neste momento, olhando as estrelas, vejo nelas o brilho dos teus olhos’, palavras que me ficaram gravadas na memória, apesar da minha tenra idade.”

Yudith Rosa Viegas recorda, assim, a partida do pai para a Argentina, em 1926. O reencontro só aconteceria “13 longos anos” mais tarde, quando, em vésperas do início da II Guerra Mundial, embarcou com a mãe e os dois irmãos (o bebé mais novo, uma menina que não pôde chamar-se Abel, morreu com apenas oito meses) “num barco inglês” a caminho de Buenos Aires.

O destino desta família algarvia e de muitas outras famílias portuguesas foi recolhido por Mário dos Santos Lopes, jornalista e professor, também ele filho de algarvios que emigraram para a Argentina, e que lançou, naquele país, o livro Portugal Querido. A edição de autor, de cinco mil exemplares, já está a ser revista e ampliada, com novas histórias de uma emigração muito particular.

Mário dos Santos Lopes, 55 anos, recusa arcar sozinho com a responsabilidade do livro. Até porque, explica à Revista 2, quem insistiu para que ele avançasse com o projecto foi o irmão, Victor, que abriu uma pousada portuguesa, a Pousada São Brás, em Córdoba. “Estava de férias em Villa General Belgrano, Córdoba, e, durante uma conversa, o meu irmão Victor disse que gostaria de publicar um livro em homenagem aos imigrantes. Disse-lhe que sim, que o faria, mas na realidade não sabia como nem em quanto tempo. Nessa mesma noite, comecei a procurar contactos de luso-descendentes no Facebook e na Internet, sem saber onde chegaríamos. A ideia original era termos um livro de cem páginas, algo muito pequeno”, explica, através de email, o jornalista que vive em Puerto Deseado, Santa Cruz, na Patagónia argentina.

A tarefa assemelhou-se “às obras de Santa Engrácia”, lê-se na introdução de Portugal Querido, e só ficaria pronta ao fim de cinco anos de busca e escrita, tornando-se uma verdadeira empreitada familiar. Victor foi “o criador e impulsionador da ideia”, Andrea, a irmã mais nova, “traduziu, corrigiu e deu bons conselhos”. Juan Benjamín Lopes, filho de Mário, “desgravou os áudios”. Pablo Molina e Ana Laura Lopes, genro e filha, “puseram o coração e o profissionalismo na artística capa do livro”. O resultado foi uma obra de 254 páginas com muitas histórias de emigrantes, algumas referências históricas da passagem portuguesa pela Argentina, umas curtas histórias e participações de emigrantes lusos noutros países, vários textos sobre os clubes e associações dedicadas à cultura nacional e relatos de cantoras argentinas que se apaixonaram pelo fado. O fio condutor do livro é, contudo, a compilação das memórias das famílias que, deixando Portugal, encontraram um novo lar na Argentina.

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As docas de Buenos Aires em Outubro de 1921 — a emigração portuguesa ajudou na construção do país Keystone View Co/National Geographic Society/Corbis

Yudith e a família saíram de Lisboa 16 de Agosto de 1939. Quando terminou a travessia de 18 dias, rebentava a guerra na Europa. Do outro lado do Atlântico, estava o pai. “Eu tinha 17 anos e encontrei-me com um pai de apenas 36, que quase já não conhecia.”

Dois anos antes de o pai de Yudith deixar São Brás de Alportel, o avô de Lídia Dias Sancho empreendia a mesma viagem. Em 1924, “já casado e com uma filha”, Francisco Viegas Valaga, deixava a terra e a família para trás e rumava à Argentina. “Esteve por aqui, andou pelo Brasil, Uruguai e ao fim de alguns anos regressou a Portugal. Voltou à Argentina, deixando a minha avó grávida da minha mãe”, conta a neta em Portugal Querido.

Francisco haveria de regressar a São Brás de Alportel, engravidando de novo a mulher, e passariam muitos anos antes que ele enviasse a carta de chamada para a família. Por essa altura, a filha mais velha já estava casada, a do meio (mãe de Lídia) e a mais nova estavam noivas. “[Só] A minha mãe, que era muito chegada à minha avó, veio com ela. Vieram de barco num mês de Junho dos anos 50, sem conhecer ninguém, nem sequer o meu avô. A minha mãe só o vira em pequena e a minha avó dizia que não imaginava como poderia estar. Chegaram a Buenos Aires e pensaram que ele estaria lá, mas esperava-as um senhor português que tinha uma agência de viagens e se encarregava de receber os imigrantes. Partiram para o Sul num autocarro. Convido-os a imaginar o tempo nesta época do ano, no Sul: frio, gelo, vento, etc… Ao fim de três dias, chegaram a Comodoro Rivadavia, de noite, e novamente sem conhecer ninguém. Ali estava o avô Francisco, esperando-as. Levou-as para uma casa que tinha alugado no quilómetro 8, que se chama Restinga. Era de noite e não conseguiram ver nada. No dia seguinte, a minha mãe levantou-se, foi à janela e, quando viu onde estava, queria morrer. Era horrível, chorou muito. A minha avó não se levantou durante três dias e desde essa altura foi sempre uma mulher doente.”

A família acabava de se instalar na Patagónia, uma das regiões do país que receberam muitos algarvios, nas primeiras décadas do século XX e também durante os anos 1950. Patagónia, Buenos Aires e a região agrícola e de criação de gado à volta da capital argentina são, aliás, os três grandes pontos de fixação de portugueses, como refere o investigador Marcelo Borges (também ele um argentino filho de portugueses), no artigo “Portuguese Migration in Argentina: Transatlantic Networks and Local Experiences”, publicado em 2006, na revista académica Portuguese Studies Review, editada pela Trent University (Canadá). Além de vários artigos sobre a emigração portuguesa para a Argentina, o professor de História da Universidade de Dickinson, na Pensilvânia (EUA), que trabalha esta área há cerca de 20 anos, também escreveu um livro sobre o tema, Chains of Gold. “É pena que o livro Chains of Gold ainda não tenha sido traduzido para o português (e o espanhol!), mas não perco as esperanças”, disse, por email, à Revista 2.

A emigração para a Argentina que Marcelo Borges descobriu ao longo dos anos de estudo mostra um fluxo de pessoas oriundas de espaços muito localizados, que partem para os mesmos sítios onde já estão os pais, tios ou primos, pelo que a fixação dos portugueses acaba também por ficar concentrada em locais muito específicos. O Algarve, zona em que as migrações temporárias para destinos como Marrocos ou o Sul de Espanha já eram um hábito enraizado nos habitantes, torna-se, no início do século XX, um dos principais fornecedores de emigrantes para a Argentina. Em Chains of Gold, o investigador explica: “Os algarvios começaram a participar nas migrações através do Atlântico mais tarde do que os migrantes do norte de Portugal [...] e com características distintas destes. Desde o final do século XIX até aos anos de 1950, enquanto o resto dos Portugueses emigrava sobretudo para o Brasil, a maior parte dos algarvios escolhia a Argentina”, escreve. Porquê? Um dos factores destacados por Marcelo Borges é a rede de informação “muito detalhada” que existia no Algarve sobre as possibilidades de trabalho “nas Américas”. “Havia uma visão em geral optimista sobre a Argentina como um país de imigração e mercado de trabalho entre os migrantes algarvios e uma imagem não tão positiva dos outros destinos. Nos jornais algarvios, podia-se encontrar, com regularidade, relatórios sobre a sólida situação económica da Argentina, as suas colheitas que batiam recordes, o crescimento das suas cidades, e notícias sobre as actividades da comunidade Portuguesa, na qual os algarvios tinham preponderância. Por outro lado, as notícias do Brasil falavam, geralmente, da falta de trabalho, das condições difíceis e do desapontamento dos migrantes que para lá se aventuravam.”

O investigador, que está, actualmente, envolvido num projecto relacionado com a recolha e análise das cartas de chamada destes emigrantes, distingue duas grandes fases da partida portuguesa para a Argentina — a primeira estendendo-se do século XVII até meados do século XIX e a segunda “coincidente com as migrações em massa do final do século XIX e o início do século XX”. É nesta emigração, que atingiu “o seu ponto mais alto durante as décadas de 10 e 20”, que se encontram muitos dos casos recolhidos e relatados por Mário dos Santos Lopes. Como a história que conta Fernando Rocca.

“A minha avó chamava-se Generosa Madeira. Nasceu no Algarve, em São Brás de Alportel, em 1910. Dos três irmãos (Maria e José Manuel), era a do meio. A sua mãe morreu de febre amarela quando ela tinha oito anos e os três irmãos ficaram ao cuidado do pai, que pouco depois veio para a Argentina e de quem não souberam mais nada durante muito, muito tempo”, relata, em Portugal Querido, Fernando Rocca.

Entregues aos cuidados de uma tia “surda e desconfiada”, os três irmãos crescem sem pais. Maria casa-se, tem uma filha e decide partir com o marido para a Argentina. Fernando conta que ainda guarda a última foto que os três irmãos tiraram em Portugal, antes da partida. “A expressão de pena da minha avó é notável; não era uma mulher teatral e não tinha filtros, nem para rir, nem para chorar”, descreve. Na Argentina, o marido de Maria torna-se amigo de um português, a quem ela confessa ter deixado uma irmã em Portugal. “O meu avô veste um fato meio sem jeito, tira uma fotografia e envia-a, jurando amor. Generosa, sem mais exigências, embarca com o seu irmão mais novo, apresenta-se a este senhor Manuel de Brito e encara a vida com ele. Lava roupa para os companheiros de trabalho do meu avô na refinaria de Restinga.”

As histórias de famílias oriundas do Algarve repetem-se ao longo do livro, sustentando, empiricamente, o que Marcelo Borges escrevera no artigo da Portuguese Studies Review: “Os migrantes algarvios permaneceram o maior grupo entre os portugueses na Argentina do final do século XIX até ao declínio da segunda fase da migração portuguesa no final dos anos 50, seguidos dos migrantes do interior norte, do distrito da Guarda, na região da Beira Alta.” Pequenas bolsas de oriundos de Leiria e do Minho juntaram-se, também, a estes grupos maiores.

No Algarve, além da informação detalhada que já foi referida, instalaram-se verdadeiras “redes” que facilitavam a emigração para a Argentina e que contavam com angariadores de trabalhadores, agências com informação muito precisa sobre o tipo de trabalho que era preciso em determinada região, em determinada altura (e que também informavam os algarvios de que, por exemplo, “os pescadores não eram bem vistos pelas autoridades brasileiras”, afastando-os deste destino, nos finais dos anos 20), e o nada negligenciável factor familiar. As experiências anteriores de familiares ou amigos da terra que tinham partido alguns anos antes tiveram também grande influência na escolha daqueles que partiriam mais tarde. Marcelo Borges fala mesmo de uma “migração com padrões microrregionais”, que lhe permite dizer, por exemplo, “a maioria dos migrantes da paróquia de São Brás de Alportel partiu para Buenos Aires e mais tarde para a cidade de Comodoro Rivadavia, na Patagónia [...]. A distribuição das migrações por destino a um nível de paróquia mostra a importância das redes sociais na formação destes fluxos. As redes assentavam na cooperação de membros da família e de amigos da aldeia, e eram influenciadas por outros factores, como as actividades a que se dedicavam”, explica em Chains of Gold.

Tudo isto fez com que, “longe de se espalharem pelo país, a maioria dos migrantes portugueses concentraram-se em vilas e cidades específicas”, explica Marcelo Borges, no artigo já referido. E exemplifica: “Há muitos casos de concentração regional e a formação de comunidades imigrantes distintas entre os portugueses na Argentina. Por exemplo, os provenientes da Guarda eram produtores de vegetais nas imediações de Buenos Aires, bem como trabalhadores braçais e agricultores nas zonas rurais de Salliqueló e Casbas (em Buenos Aires oeste); os de Leiria trabalhavam nas indústrias mineiras e de cimento, em Olavarría (nas colinas centrais de Buenos Aires); os de Viana do Castelo e Braga tornaram-se fabricantes de tijolos nos subúrbios da capital; os do Algarve trabalhavam como produtores de flores e vegetais em torno de Buenos Aires e na capital provincial de La Plata, e como trabalhadores na indústria do petróleo na Patagónia Central.”

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A Patagónia em 1916. A região fio o destino de muitos algarvios Bailey Willis/National Geographic Society/Corbis

A história que Alejandra Inés Marques conta no livro, sobre o avô, é o exemplo de como funcionavam as redes familiares. Viriato Marques nasceu a 20 de Junho de 1903 em Vale de Igreja, freguesia de Paranhos, Seia. O bebé nasce em Seia porque a mãe, que emigrara para o Brasil com o marido, decide voltar a casa, “para que o seu primogénito nasça em Portugal”, conta Alejandra.

Viriato perde os pais e depois de uma infância e adolescência duras, sem ir à escola e trabalhando como pastor, chega a Buenos Aires a 10 de Fevereiro de 1923. “Não chega ali por acaso, mas porque dois dos seus primos, Manuel e António, filhos de Bernardo Marques, já haviam emigrado para a Argentina e estavam instalados em Comodoro Rivadavia, província de Chubut. Manuel foi quem o reclamou a Portugal”, conta.

Em busca de uma vida melhor, os portugueses partiam para a Argentina com a intenção de ganhar dinheiro e regressar a casa. Alguns voltaram a Portugal, mais do que uma vez, mas, no Portugal Querido de Mário dos Santos Lopes, são poucos os que ficam na terra onde nasceram. A maioria acaba por regressar à Argentina, chamando, mais tarde, a família e fixando-se definitivamente do outro lado do Atlântico. Foi assim com José Correia da Silva, também de Paranhos, em Seia.

Com 17 anos, “corria o ano de 1922”, José recebe uma carta de chamada do pai, que já emigrara para a Argentina e arranjara trabalho para o filho “levando verduras para o mercado Abasto, em Buenos Aires”. O neto, José António de Albuquerque, explica o que aconteceu depois: “Anos mais tarde, em 1937, José, com 32 anos, regressa a Portugal. Tinha saudades dos costumes, das pessoas, dos afectos — saudades… — e nesse regresso conheceu uma bonita mulher. Maria, de 22 anos, órfã, trabalhava como criada de uma família.”

Ao fim de apenas 18 dias de namoro, José e Maria casaram-se e, meses depois, ele regressava à Argentina, deixando a mulher grávida. “José trabalhou e trabalhou até poder mandar uma carta de chamada para a sua Maria, que veio com a filha de dois, que José só conheceu quando chegou a Buenos Aires.”

O regresso a Portugal para casar era normal, mas mais normal ainda eram os casamentos por procuração, como aconteceu com os pais de Cecília Madeira (ele deixou a noiva em Portugal e só a veria sete anos depois, já casados por procuração) ou com os avós de Gisele Sousa Dias, a quem o pai, Fernando Sousa Dias, contou: “A minha mãe tinha 29 anos quando se casou e o meu pai 17 anos mais do que ela. O meu pai recebeu uma mulher que não conhecia porque ela era portuguesa e a sua cultura dizia que esse era um requisito indispensável.” E, depois, também havia os casos em que os homens que partiam à frente acabavam por constituir novas famílias. E aqueles para quem a Argentina foi um gosto adquirido a custo, a quem as saudades de Portugal atormentavam. Ana Maria Borges Diniz conta o quanto custou ao pai nacionalizar-se argentino, para poder exercer um emprego no Estado. “Para ele, foi muito traumático renunciar à cidadania portuguesa, porque, apesar de ter emigrado muito jovem, nunca perdera o sotaque e os costumes da sua terra [Vila Franca da Beira, em Oliveira do Hospital]. Ele foi um daqueles portugueses que deixaram a alma na sua aldeia natal… Falava de Portugal e acendia-se-lhe o coração. Todas as histórias que ouvíamos na infância decorriam ali e, na nossa imaginação, Portugal era o país das maravilhas”, descreve no livro de Mário dos Santos Lopes.

Mário diz que a construção desta obra o ajudou a perceber melhor os homens e mulheres que deixaram Portugal para criar uma nova vida na Argentina. “Quando se começa um livro, como autor ou como leitor, nunca sabemos exactamente quem seremos ao terminá-lo. É como quem comete um delito: deixa-se algo e leva-se algo. Eu ganhei uma enorme riqueza ao conhecer experiências muito diversas, a dor suprema do desenraizamento somado à falta de comunicação com a família que ficava para trás, tão longe, e a sensação de que não regressariam mais a casa. Valorizei, e sei que o mesmo aconteceu com os leitores, o sacrifício e a resignação do imigrante que vive nos piores lugares, aceita os piores empregos, a tentar passar despercebido para não ser marginalizado ou maltratado, apesar de a Argentina ter sido um país de portas abertas para todo o mundo”, refere.

A mãe, Maria Luiza, foi a primeira leitora de Portugal Querido. “Ela emocionou-se, riu-se e voltou a lê-lo. Se ela o aprovou, metade do que queríamos alcançar está cumprido. Agora temos de esperar que os pais, avós, filhos e netos de outros imigrantes o leiam. Eles serão os nossos melhores juízes.” O jornalista, que dirige o semanário El Orden e conduz o programa de rádio Deseado Revista, diz que gostaria de ver a obra traduzida para português, mas que isso só se tornará realidade se alguém o quiser editar, já que não pode arcar com os custos de uma edição de autor além-fronteiras.

Nessa caso, também em português se poderia conhecer a história do homem que escalou, em 1936, o monte Tronador, e foi recebido, no regresso, com uma banda de música e uma bandeira argentina, apesar de ser português; do sapateiro Joaquim, agraciado pelo município de Comodoro, como homem “admirado” pelos seus pares; do português do Tigre, que tinha um barco onde nunca navegou e que serviu de inspiração a um fado; de Amândio, “o titã português”, estrela dos espectáculos de luta livre, nos anos 70; ou do próprio Mário e dos seus pais e irmãos.

O autor conta que a sua infância “teve aromas a ‘feijão careto’, filhós e rabanadas, saborosas e irrepetíveis rabanadas que não apareciam à mesa muitas vezes, e que seguramente por isso eram duplamente saborosas”. Mário recorda-se de ouvir o pai cantar Lisboa não sejas francesa, tu és portuguesa, tu és só para nós, misturada com músicas argentinas, e de a mãe lhe ensinar o Pai Nosso em português, enquanto ele crescia aprendendo os nomes das coisas em duas línguas. Na família Lopes, repetiu-se a história de outros portugueses. António, o pai de Mário, Victor e Andrea, regressou a Portugal depois de uma incursão na Argentina, com o sonho de permanecer na sua terra natal, mas acabaria por emigrar de novo, por não conseguir cá condições suficientes para viver como queria. Mas o regresso temporário a casa permitiu-lhe conhecer Maria Luiza e casar-se. Os dois estiveram separados um ano, antes de a mãe de Mário se juntar ao marido, em Buenos Aires.

Na Argentina, os pratos tradicionais, os clubes onde se reproduziam (e reproduzem) “corridinhos” e “viras minhotos” e os programas de rádio dedicados ao fado ajudam ainda a matar saudades de casa aos cerca de 17 mil cidadãos portugueses que estão inscritos na Embaixada Portuguesa, em Buenos Aires. O livro Português Querido é mais um passo nessa ponte entre os dois países. Para que não se percam as histórias de todos os que, um dia, escolheram a distante Argentina para começar uma nova vida. Uma e outra vez.     

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Vista aérea de Buenos Aires em 1930 Hulton-Deutsch Collection/CORBIS