Polvos, safios e bogas vivem em paz a bordo de quatro navios de guerra
À superfície, realizaram centenas de missões pela Marinha Portuguesa. Agora, no fundo do mar de Portimão, os quatro navios de guerra que compõem o parque subaquático Ocean Revival têm outra missão: dão abrigo a dezenas de espécies marinhas e atraem milhares de mergulhadores, portugueses e estrangeiros. Apesar da água turva.
Quando o PÚBLICO mergulhou no Ocean Revival, numa manhã quente de Junho, não se via uma onda no mar, a três milhas de terra. Mas a “piscina” não era de água quente – estava a 13 graus – nem transparente. “Tem estado pior”, dizem-nos. Semanas antes, um boom de algas deixou a água esverdeada, cheia de matéria em suspensão. Resultado? Junto à superfície, a visibilidade ronda os dois metros. Mesmo assim, descemos pelo cabo rumo à corveta "Oliveira e Carmo", que inaugurou o parque subaquático a 30 de Outubro de 2012.
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Quando o PÚBLICO mergulhou no Ocean Revival, numa manhã quente de Junho, não se via uma onda no mar, a três milhas de terra. Mas a “piscina” não era de água quente – estava a 13 graus – nem transparente. “Tem estado pior”, dizem-nos. Semanas antes, um boom de algas deixou a água esverdeada, cheia de matéria em suspensão. Resultado? Junto à superfície, a visibilidade ronda os dois metros. Mesmo assim, descemos pelo cabo rumo à corveta "Oliveira e Carmo", que inaugurou o parque subaquático a 30 de Outubro de 2012.
O cenário melhora à medida que nos aproximamos do fundo. Oito metros de visibilidade deixam ver toda a proa do barco. O mastro, onde passeiam robalos, sargos e peixes-porco, está a 15 metros da superfície mas o casco assentou aos 30 metros. A carcaça imponente jaz num fundo de areia, completamente revestida por uma espécie de musgo verde. As cracas, ostras e outros organismos que se fixaram no metal já mal deixam ver a cor original do barco.
Guiado por dois instrutores da Subnauta – empresa promotora do Ocean Revival através do seu fundador, Luís Sá Couto –, o grupo de mergulhadores segue por estibordo, como combinado no briefing ainda no centro de mergulho. Fazemos sinal negativo ao guia quando este nos convida a entrar na casa das máquinas. Também não entramos na messe dos praças, onde estão ainda mesas e cadeiras, nem na cozinha. Só mais tarde, no segundo mergulho, temos coragem para entrar na ponte de comando e rodar o leme da fragata "Hermenegildo Capelo", a terceira a ir ao fundo, em Junho de 2013.
O interior dos navios foi preparado para facilitar a vida aos mergulhadores, com muitos pontos de entrada de luz e saídas à vista, mas um só mergulho não chega para ver todos os recantos. O tempo médio de permanência aos 30 metros ronda os 40 minutos, pelo que são precisas três ou quatro visitas para conhecer os barcos de uma ponta à outra.
Inquilinos à espreita
Na corveta, paramos sobre a pista do heliporto, onde o mau tempo deste Inverno deixou marcas. A parte traseira do barco, uma secção com 20 metros de comprimento, foi afastada uma centena de metros do resto da corveta. Segundo Pedro Caleja, guia da Subnauta e arqueólogo subaquático, a queda do barco no fundo provocou uma rachadura naquela zona da popa, que acabou por partir totalmente e foi arrastada pelas correntes, o que não estava nos planos. Terá estabilizado entretanto.
Basta explorar o exterior do "Oliveira e Carmo" para encontrar inquilinos. Um polvo escondido numa caixa, com os olhos curiosos à espreita, outro encaixado numa prateleira, cabozes a passear no convés. No interior há sargos, safios e nudibrânquios (lesmas do mar). Segundo o biólogo Gonçalo Calado, que conduz a monitorização dos barcos desde o primeiro dia, a colonização começou poucas semanas depois dos naufrágios. “Como o casco não era limpo há muito tempo, a parte que fica debaixo de água estava cheia de mexilhões, que ali continuaram depois do afundamento", afirma. Os polvos aproveitaram o festim.
O efeito de atracção é quase imediato, explica Miguel Neves dos Santos, biólogo do ex-Ipimar (integrado no Instituto Português do Mar e da Atmosfera), especialista em recifes artificiais. Ao embaterem no barco, as correntes marítimas provocam um ruído não perceptível ao ouvido humano. Mas os peixes ouvem e em poucos minutos encontram a embarcação. Depois, uns aproveitam para arranjar "casa", outros usam-na apenas como ninho ou para se protegerem dos predadores, alguns fazem só "visita de médico".
A monitorização dos navios inclui a contagem de espécies residentes. No "Oliveira e Carmo", até ao final do ano passado foram identificadas 22, com destaque para a boga, o sargo, o peixe-porco e a choupa. Pedro Caleja conta que, há duas semanas, viu pela primeira vez um peixe-lua a passear junto à corveta. Ocasionalmente, o barco tem visitas de lírios, peixes-galo. "Há um mês três golfinhos roazes desceram com os mergulhadores", diz o guia.
No navio patrulha "Zambeze", afundado poucas horas depois da corveta, foram identificadas 20 espécies até ao final de 2013. Tanto a fragata "Hermenegildo Capelo" como o navio oceanográfico "Almeida Carvalho", os dois últimos a naufragar, "beneficiaram das larvas que já estavam a sair dos primeiros e por isso a colonização foi mais rápida", diz Gonçalo Calado. Para este biólogo, o recife artificial está a ter "um impacto positivo no aumento da biodiversidade" na zona, mas ainda serão precisos mais dois anos até que a comunidade de espécies residentes estabilize.
Os impactos ambientais do Ocean Revival foram, desde o início, uma das principais preocupações de quem se opôs ao projecto. “Um dos receios era o assoreamento à volta dos navios, mas isso não se verificou”, diz Gonçalo Calado. Outra preocupação era a toxicidade dos materiais. Os navios, cedidos pela Marinha à Câmara de Portimão a custo zero, foram limpos e descontaminados antes do afundamento. “Ninguém pode garantir que não há nenhum impacto", admite Miguel Neves dos Santos, até porque faltam estudos sobre casos semelhantes. Mas até agora, segundo os biólogos, o prato que mais pesa na balança parece ser o dos benefícios.
Este parque subaquático com quatro navios numa zona delimitada, de acesso livre para todos os centros de mergulho, foi pioneiro a nível mundial. Financiado pela Subnauta, por fundos europeus e por "mecenas privados", o projecto implicou um investimento de dois milhões de euros, que demorou vários anos a concretizar. "Não houve qualquer dinheiro do município de Portimão", garante Sá Couto, ex-responsável da Accenture Portugal. Foi ele o "cérebro" e o "músculo" do projecto, considerado visionário por uns e excessivo por outros. O objectivo era dinamizar o turismo subaquático na região, aumentando as receitas da actividade de 2,6 milhões de euros em 2012 para 70,5 milhões de euros em 2022.
"Quem vem mergulhar ao Algarve traz como referência o Ocean Revival", admite João Rosário, proprietário do Pinguim Sub, centro de mergulho com mais de 20 anos em Portimão. Embora reconheça que o projecto foi bem divulgado em Portugal e no estrangeiro, João Rosário critica a sua localização, próxima da foz do Rio Arade e da Ria de Alvor, que transportam muitos sedimentos. "Quando um barco não tem condições de visibilidade, os outros também não têm", lamenta.
Miguel Neves dos Santos, que ajudou a definir o local para os afundamentos, explica que este foi "o melhor compromisso" possível, tendo em conta condicionantes relacionadas com o ordenamento do espaço marítimo e imposições do promotor. "Mas a falta de visibilidade é um falso problema, porque não se coloca a profundidades superiores a 20 metros [todos os barcos estão na cota dos 30 metros]", observa.
Desde Outubro de 2012 até Agosto deste ano, a Subnauta realizou perto de dez mil mergulhos no Ocean Revival, cinco mil só este ano, com os quatro navios já instalados. "Dos dez mil mergulhos, pelo menos metade correspondem a pessoas que vieram ao Algarve de propósito para realizar a visita aos navios", diz Sá Couto. Para a Subnauta, os portugueses - estima-se que haja 30 mil a 50 mil mergulhadores certificados em Portugal – foram os mais fáceis de convencer, mas os espanhóis, alemães, escandinavos e ingleses começam agora a chegar em força.