Jorge Silva Melo em telhado de zinco quente
Artistas Unidos estreiam esta sexta-feira, em Viseu, a peça de Tennessee Williams que ficou famosa pela versão para o cinema, com Elizabeth Taylor e Paul Newman.
Este clássico da dramaturgia norte-americana do século XX encena a tragédia de uma família do sul (ainda) esclavagista: a relação de um casal jovem, sem filhos, destruído pelo álcool e pela rejeição, irmãos e cunhadas que se detestam e disputam a herança, todo um universo afectivo minado pela mentira, pela doença e pela indiferença ou indefinição sexual…
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Este clássico da dramaturgia norte-americana do século XX encena a tragédia de uma família do sul (ainda) esclavagista: a relação de um casal jovem, sem filhos, destruído pelo álcool e pela rejeição, irmãos e cunhadas que se detestam e disputam a herança, todo um universo afectivo minado pela mentira, pela doença e pela indiferença ou indefinição sexual…
É uma história que, no nosso imaginário, está sobremaneira marcada pelo filme que Richard Brooks realizou em 1958, com Elizabeth Taylor (Maggie) e Paul Newman (Brick) nos principais papéis – três anos depois de Elia Kazan ter estreado a peça num palco de Nova Iorque.
Em ambos os casos, diz Jorge Silva Melo, o texto de Tennessee Williams foi bastante modificado. Kazan praticamente reescreveu o 3º acto. “Pôs a Maggie muito mais simpática, e fez o pai reaparecer em cena”, diz o encenador, notando que o próprio dramaturgo reeditou a peça com a dupla versão para o 3º acto, a sua e a de Kazan, mas reafirmando preferir a original.
Já na versão cinematográfica, em época de ressaca do macartismo, “Brooks, que era um homem de esquerda”, nota o director dos AU, teve dificuldade em glosar a questão da doença, do dinheiro, da escravatura e até da homossexualidade latente... “O que ficou é a história da mulher mal dormida, que não é amada, e do homem que a rejeita, mesmo sendo ela a mais bela mulher, porque ela lhe foi infiel, dormiu com outro”.
“Este é um tema do pós-guerra: as mulheres que não foram noivas, cujos maridos estavam na guerra e morreram, ou então regressaram feridos, fragilizados”, acrescenta Jorge Silva Melo. No caso de Gata em Telhado de Zinco Quente, Brick, o jovem marido, não vem da guerra, tem apenas a perna partida em consequência de uma noitada de atletismo. “Mas só depois da guerra é que se vê um protagonista masculino que também pode chorar, transpirar, ter uma perna partida….”, diz o encenador.
Pegando no texto original e integral de Tennessee Williams, Jorge Silva Melo quis agora repor este retrato impiedoso sobre um certo estrato da sociedade americana, rica e conservadora: “a passagem do mundo velho a um novo que não há meio de nascer”, como escreve no programa.
Dizendo lembrar-se apenas de uma adaptação da peça aos palcos portugueses – no Monumental, em Lisboa, com encenação de António Pedro, e com Laura Alves e Paulo Renato como protagonistas –, Jorge Silva Melo explica que quis também pegar agora em Tennessee Williams por querer dar a oportunidade de interpretar estas personagens a actores de quem gosta e que “estão com a idade certa” para o fazer. É assim que já equacionou fazer também duas outras peças do dramaturgo, Doce Pássaro da Juventude (1959) e A Noite do Iguana (1961).
Catarina Wallenstein e Rúben Gomes, dois actores da “família” dos AU, foram agora os contemplados pelo encenador com o desafio de Gata em Telhado de Zinco Quente. Era algo que estava no “caderno de encargos” do director artístico da companhia desde há cerca de quatro anos, quando aquele actor, que veio da equipa de Morangos com Açúcar e depois trabalhou noutras séries televisivas, entrou para os AU em A Nova Ordem Mundial, de Harold Pinter (2010).
A actriz, rosto mais conhecido pelo seu trabalho no cinema – fez, com Manoel de Oliveira, Singularidades de uma Rapariga Loira, e, com João Botelho, Filme do Desassossego e Os Maias –, vai já na terceira peça com Jorge Silva Melo e os AU.
Catarina Wallenstein diz que “é muito doce, da parte do Jorge Silva Melo”, essa atenção para com os actores. “Mas se nos pusermos a pensar muito sobre esses assuntos, ficamos aterrorizados. O que sinto, nesta companhia, é que o Jorge vai angariando membros para uma família, e que acaba por funcionar muito num sistema de confiança de parte a parte. Se ele nos dá este presente para as mãos, é uma grande dádiva”, acrescenta a actriz.
Os dois protagonistas de Gata em Telhado de Zinco Quente não temeram o risco da comparação dos seus desempenhos com os de Elizabeth Taylor e Paul Newman. “Isso é inevitável. Eu vi o filme há uns anos atrás, e é impossível não ficar com aquilo na cabeça. Mas o Paul Newman é o Paul Newman, e eu sou eu, faço o meu trabalho comigo próprio e com as pessoas que estão à minha volta”, diz Rúben Gomes, manifestando confiança total na direcção de Jorge Silva Melo.
Catarina Wallenstein evitou ver o filme de Richard Brooks, mesmo se Jorge Silva Melo lhe ofereceu, há já algum tempo, “um pacotinho com A Noite do Iguana e a Gata...”. “Conheço o fantasma e cruzo-me com ele todos os dias, quando as pessoas dizem, ‘Uau! Vais fazer a Gata, e não tens medo que as pessoas te comparem com a Taylor?...’”. “Não é fácil. Luto comigo própria, para confiar e não ter medo”, diz a actriz sobre o desafio deste trabalho. E acrescenta que outro desafio pessoal é trabalhar essa personagem de Maggie, “a mulher rejeitada, constantemente a pedir ao marido, ‘ama-me, toca-me, faz-me um filho…’”, à luz da difícil condição da mulher no século XXI. “A minha preocupação foi a de 'não carregar na farinheira' e não entrar em speed, porque eu sou um pouco mais rápida do que esta Maggie e tenho que saber travar...”.
A estreia de Gata em Telhado de Zinco Quente acontece esta sexta-feira no Teatro Viriato, mas o espectáculo teve já um primeiro confronto com o público – uma espécie de preview, como nos filmes de Hollywood, diz Silva Melo –, no Centro Cultural do Cartaxo, no passado dia 11. “Correu muito bem; permitiu corrigir algumas coisas, problemas de luz, retoques no cenário…, o que nos possibilita chegar mais seguros à estreia”, diz o encenador.