A voz que nos canta o vento

Bouchra Ouizguen chega de Marrocos para apresentar Ha! no Teatro Virgínia, em Torres Novas. Viagem à intimidade de quatro mulheres cuja história se escreve todos os dias.

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Para Bouchra Ouizguen, não há um antes e depois do espectáculo: "Faz tudo parte do mesmo movimento de se estar vivo" HERVÉ VÉRONÈSE

Em palco, na peça que amanhã chega ao Teatro Virgínia, em Torres Novas, estão quatro mulheres – entre elas a coreógrafa  cuja vida era dançar nos cabarés das aldeias marroquinas ou, às vezes, cantar em funerais a pedido das famílias. Era uma vida modesta e continua a sê-lo, mesmo que seja já pouco o tempo que têm para ir cantar para os outros. Os seus corpos mostram-se agora, em todo o seu esplendor e em toda a sua integridade, nos palcos mais diversos. Em Ha!, que marca o regresso da coreógrafa marroquina a Portugal depois de Madame Plaza, apresentado há dois anos em Lisboa no Alkantara Festival, voltamos a encontrar o prazer da exposição de corpos que desafiam a realidade, em movimentos que parecem surgir do interior das intérpretes. No Festival Materiais Diversos, será tempo de nos perdermos numa coreografia construída a partir de um desejo intenso de comunhão.

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Em palco, na peça que amanhã chega ao Teatro Virgínia, em Torres Novas, estão quatro mulheres – entre elas a coreógrafa  cuja vida era dançar nos cabarés das aldeias marroquinas ou, às vezes, cantar em funerais a pedido das famílias. Era uma vida modesta e continua a sê-lo, mesmo que seja já pouco o tempo que têm para ir cantar para os outros. Os seus corpos mostram-se agora, em todo o seu esplendor e em toda a sua integridade, nos palcos mais diversos. Em Ha!, que marca o regresso da coreógrafa marroquina a Portugal depois de Madame Plaza, apresentado há dois anos em Lisboa no Alkantara Festival, voltamos a encontrar o prazer da exposição de corpos que desafiam a realidade, em movimentos que parecem surgir do interior das intérpretes. No Festival Materiais Diversos, será tempo de nos perdermos numa coreografia construída a partir de um desejo intenso de comunhão.

Para Bouchra Ouizguen, a dança é uma escolha. É um modo de contar uma história, de inventar um percurso, de partilhar uma vida com as vidas de Kabboura Aït Ben Hmad, Naïma Sahmoud e Fatéma el-Hanna, cantoras da tradição aïta, que aqui se entregam aos poemas escritos pelo poeta sufi Jalal ad-Din Ruminormalmente cantados em rituais exclusivamente masculinos.

Bouchra Ouizguen fala-nos a partir de Marraquexe, num fim de tarde que ainda é soalheiro, sobre esse encontro que é, afinal, o princípio e o fim das razões que a levam a querer ser coreógrafa: “Foi isso que descobri quando as encontrei. Encontramo-nos. Falamos a mesma língua. Escolhemo-nos mutuamente. Foi também assim que aprendi a dançar. Na maneira como penso, escrevo e coreógrafo está o olhar delas. Aquilo que se vive é a construção de um gesto que nos é comum." Continua: “Tudo o que dançamos existe ainda. Está nas nossas mãos, nos nossos pescoços, nos nossos cabelos, nos nossos gestos, nas nossas frases, naquilo que dizemos e no modo como vivemos."

 

A invenção de um ritual

Do dia-a-dia marroquino para a abstracção da caixa negra dos palcos, Bouchra desenha, através das suas coreografias, um espaço e um tempo que recusa a necessidade de se justificar permanentemente. “Não sou uma coreógrafa das imagens, sou alguém que procura aquilo que desaparece no interior dessas imagens sempre exteriores e impostas”, diz, referindo-se à insistência em inscrever o seu trabalho numa etnografia exótica. “Ao contrário do que acontece em Portugal ou Espanha, onde há uma memória e uma história comum que pertence a todos, em França, por exemplo, sei que tenho que defender constantemente o meu trabalho daquilo que ele não é: a representação de uma história com uma componente política”.

O seu trabalho, argumenta, é mais do que isso. Propõe “uma invenção de um ritual, como se quisesse encontrar no gesto actual o que nele há de mais ancestral”. É aqui que Bouchra se distingue de Nacera Beleza, coreógrafa argelina que já vimos várias vezes em Lisboa: nesse modo de olhar para o movimento como uma passagem para um estado de transe que se aproxima de uma relação mística com o corpo. No caso da coreógrafa marroquina, os corpos são o princípio e o fim de “uma loucura que é mística, que é mal-sã, que é ambiciosa, mas que é extremamente atenta ao que a envolve”.

Não é uma dança da abstracção ou do desaparecimento, é uma dança que procura portas de entrada para as entranhas do inconsciente. “Não quero uma dança que se prenda ao corpo. Quero partir da liberdade delas e dar-lhes uma outra amplitude”, conta, descrevendo um processo que se revelou, ao longo dos anos, um modo de “habitar um desejo pelo movimento”. “Há uma vontade de construir um movimento, e tanta excitação, tanta alegria ao fazê-lo que a cada espectáculo, a cada apresentação, ganha em intensidade e matéria."

O que vemos em palco, como se fôssemos convidados a entrar na intimidade de um ritual, é essa forma de olhar para o corpo como lugar de encontro, sem necessidade de acrescentar palavras à intensidade dos silêncios. Por isso Ha! Nada tem de exótico, de ritualizado. Conclui Bouchra: “Não há um antes e um depois do movimento, como não há um antes e um depois do espectáculo, porque já não havia um antes e um depois do ensaio. Faz tudo parte do mesmo movimento de se estar vivo, de se estar com os outros, de construir, a cada dia, uma vida em comunidade."