O descalabro numa solução humanista e de regime
Estamos perante a possibilidade de as políticas de imigração pelas quais Portugal mais foi enaltecido internacionalmente irem redondamente para a prateleira do passado.
Após décadas de trabalho sólido, estamos perante a possibilidade de as políticas pelas quais Portugal mais foi enaltecido internacionalmente, irem redondamente para a prateleira do passado ou, pelo menos, de passarem para um segundo plano, superadas por formas imediatistas e pouco humanas de ver o “outro” apenas à luz da sua capacidade e adequação ao trabalho existente.
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Após décadas de trabalho sólido, estamos perante a possibilidade de as políticas pelas quais Portugal mais foi enaltecido internacionalmente, irem redondamente para a prateleira do passado ou, pelo menos, de passarem para um segundo plano, superadas por formas imediatistas e pouco humanas de ver o “outro” apenas à luz da sua capacidade e adequação ao trabalho existente.
Em fevereiro passado, com o Decreto-Lei n.º 31/2014, nasceu uma nova instituição que assumiu a herança do ACIDI, mas reformulou significativamente as suas atribuições, funções e missão. No sentido da herança, esse texto legal afirma que “Deve continuar a desenvolver iniciativas que reforcem sentimentos e atitudes de consideração mútua, confiança e cooperação na sociedade portuguesa”. Contudo, no seguimento, abre uma nova dimensão: “E deve ainda, em reforço, responder às necessidades de uma estratégia de identificação, captação e fixação de perfis migratórios nacionais e estrangeiros”. Num país que perde a sua geração mais bem preparada de sempre, criam-se os “imigrantes de primeira”, aqueles que se irão captar. O mesmo documento fala, mais à frente, de “promoção da imagem externa de Portugal enquanto destino de migrações (…) políticas de captação e retenção de talento”.
Neste sentido, a primeira “Missão e atribuições” é: “O ACM, IP, tem por missão colaborar na definição, execução e avaliação das políticas públicas, transversais e setoriais em matéria de migrações, relevantes para a atração dos migrantes nos contextos nacional, internacional e lusófono”, só depois se diz “para a integração dos imigrantes e grupos étnicos, em particular as comunidades ciganas, e para a gestão e valorização da diversidade entre culturas, etnias e religiões.”
Num passado recente, os titulares das pastas responsáveis pelo ACIDI, quer do PS, quer do PSD, consolidaram as políticas a que esta instituição dava forma. Feliciano Barreiras Duarte, anterior secretário de Estado do Governo liderado por Passos Coelho, responsável por este pelouro, ainda há bem pouco tempo formulou o seu espanto e desagrado por esta alteração que levou à criação do ACM.
As mudanças que este texto legal implica são inúmeras e profundas. Esta mudança de designação e de funções apresenta uma marca específica que é preocupante e que nos leva para um extremar de posições, para um fim de consensos alargados na forma de olhar para o mundo. Desde o 25 de Abril que havia, de facto, um consenso em torno da integração dos imigrantes. Os Governos PS e PSD, apesar das inevitáveis diferenças, concordavam no lado humano de encarar o fenómeno da imigração, tendo sido robustecidos crescentemente os mecanismos de integração, de aprendizagem da língua, de valorização profissional e de associativismo. Ora, com esta alteração, o actual Governo cria uma clivagem que, para além de cortar com um passado cheio de sucessos e bastante reconhecido no exterior, acentua as diferenças colocando a direita política numa posição ultraconservadora, portanto incapaz de criar consenso algum nesta matéria.
Mas esta nova política, financeira e economicamente dirigida, esquece, até, dados apenas do campo do numérico. Nos últimos anos, terão sido na casa dos 300 milhões anuais os euros encaixados pela Segurança Social através dos imigrantes “normais”. Mais, o que seria da curva demográfica, se fossem retirados os nascimentos de famílias imigradas “normais”?
Enfim, são inúmeras as questões que deveriam ter sido muito mais bem equacionadas e mostram, para além de um desconhecimento e de uma impreparação brutal, acima de tudo, uma incapacidade de olhar para o imigrante fora do quadro de uma sociedade gerida por elites. É a noção de elite, fechada, que se reproduz dentro de si mesma, que enforma esta maneira de ver a sociedade, em que os imigrantes são apenas uma das peças, onde tudo é subalternizado a capacidades, competências e dimensões de oferta e procura. Tudo é mercadoria, começando pelo Ser Humano.
Director da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona