Fiscalidade e futuro - negro, verde ou pardo?

É duvidoso que qualquer imposto com este nível de isenções cumpra os critérios de eficácia e equidade próprios de um sistema fiscal decente.

Para lá das preocupações com os aspectos conjunturais da economia portuguesa existem aspectos de mais médio e longo prazo – que precedem e transcendem a crise actual – e sobre os quais nos precisamos de debruçar.

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Para lá das preocupações com os aspectos conjunturais da economia portuguesa existem aspectos de mais médio e longo prazo – que precedem e transcendem a crise actual – e sobre os quais nos precisamos de debruçar.

Para inverter a tendência regressiva e não só resolver problemas imediatos mas também criar melhores condições de crescimento sustentado, é urgente actuar simultânea, decidida e coerentemente em várias frentes. Uma das alavancas a accionar é, necessariamente, a fiscalidade: diminuindo, quando possível, o nível global da tributação (a designada "carga" fiscal) e alterando, desde já, num cenário de neutralidade fiscal, a estrutura tributária - isto é, aumentando alguns impostos e diminuindo outros na mesma proporção.

Para compreender a vantagem de uma reforma virtuosa da estrutura tributária imaginemos, por um instante, que a economia portuguesa conservava, no futuro, a mesma estrutura dos últimos anos e que os preços internacionais não se alteravam: o PIB e o rácio da dívida pública no PIB manter-se-iam assim praticamente inalterados. Não é realista, contudo, imaginar que os preços da energia importada (petróleo, gás natural e carvão) se vão manter constantes. Se adoptarmos como referência um cenário de evolução desses preços em linha com as previsões das principais instituições internacionais e se simularmos o desempenho dinâmico da economia nacional verificamos que o impacto da variação dos preços da energia é considerável: mantendo-se tudo o resto igual, em 2030 o PIB diminuiria 0, 5%. Ou seja: se nada fizermos, um factor externo incontrolável - a variação do preço da energia - provocará o empobrecimento ulterior do nosso país porque, por um lado, as famílias aumentam a despesa com a aquisição de produtos energéticos (combustíveis e electricidade), diminuindo proporcionalmente o seu rendimento disponível e, por outro lado, as empresas tornam-se menos competitivas, produzindo menos.

Primeira conclusão: sem reforma da estrutura fiscal, e com a evolução esperada dos preços internacionais da energia, o futuro é negro.

Imaginemos agora que o Parlamento decidia introduzir um novo imposto sobre emissões de gases com efeito de estufa – como se sabe, emissões nocivas do ambiente. Concretamente, imaginemos que o Parlamento introduzia um imposto correspondente a 15 euros por tonelada de CO2. Desta forma, aumentava a receita fiscal e, consequentemente, o rácio da dívida pública sobre o PIB melhoraria. No entanto, este imposto afundava ainda mais a economia: em 2030 o PIB registaria uma diminuição total de 1.4% face ao cenário inicial. A introdução deste imposto para reduzir a dívida pública seria pois uma péssima decisão porque iria empobrecer ainda mais o país.

Imaginemos finalmente que o Parlamento decidia introduzir o mesmo imposto num cenário de neutralidade fiscal. Isto é, o Parlamento decidia afectar a receita proveniente do novo imposto sobre energia à redução, no mesmo montante global, da receita de outros impostos existentes. Concretamente, imaginemos que o Parlamento decidia afectar 25% da nova receita à redução do IRS, 25% à redução da taxa social e 50% a crédito fiscal ao investimento (em particular, investimento destinado a melhorar a eficiência energética e a produção de electricidade a partir de fontes renováveis). Neste caso, em 2030 o PIB aumentaria 0.6% face ao cenário inicial. Os efeitos negativos do novo imposto no PIB seriam assim neutralizados e até invertidos ao passo que os efeitos favoráveis na dívida pública se manteriam.

Segunda conclusão: a reforma da fiscalidade, centrada na fiscalidade verde, pode estimular a economia e inverter a tendência estrutural de declínio dos últimos anos – o verde é esperança.

Mas impõem-se duas advertências, alertando para situações que poderão tornar o futuro menos verde – levando-nos apenas e na melhor das hipóteses a um futuro pardo.

A primeira advertência é que a reforma da fiscalidade verde só faz sentido num cenário de neutralidade fiscal – isto é, se a receita adicional resultante da tributação de recursos naturais (directamente pelo seu uso ou indirectamente pelas consequências ambientalmente negativas do seu uso) for “reciclada” na redução equivalente de outros tributos. Caso contrário, podem-se eventualmente atingir os objectivos ambientais subjacentes à introdução da fiscalidade verde, mas penaliza-se – desnecessariamente - a economia. O Parlamento é soberano, e compete-lhe decidir que impostos reduzir de forma a obter a neutralidade fiscal. Mas espera-se que o Parlamento não decida cegamente ou, pior ainda, decida fingindo não ver as consequências sobre a economia e sobre o ambiente no médio prazo. 

Uma segunda advertência tem a ver com o facto de os números até agora apresentados partirem do princípio que toda a energia consumida em Portugal pagaria um imposto correspondente a 15 euros por tonelada de CO2. Ora tal não aconteceria porque actualmente há muitas empresas que não pagam impostos sobre energia. Estas isenções abrangem todos os grandes consumidores de energia incluídos no regime do Comércio Europeu de Licenças de Emissão assim como os consumidores que adiram voluntariamente ao Sistema de Gestão dos Consumos Intensivos de Energia. Em termos práticos, isto significa que 76 % do consumo de energia final em Portugal, excluídos os sectores doméstico e serviços e os transportes, não paga imposto. Estes benefícios fiscais traduzem-se numa perda de receita fiscal e, consequentemente, numa diminuição do montante disponível para reduzir outros impostos e fazer crescer a economia.

É duvidoso que qualquer imposto com este nível de isenções cumpra os critérios de eficácia e equidade próprios de um sistema fiscal decente. Mesmo numa perspectiva de política pública destinada a apoiar a competitividade da indústria, apenas faz sentido isentar selectivamente de imposto as actividades produtoras de bens transacionáveis onde o peso da energia nos custos totais de produção seja significativo. Não é isso que se verifica actualmente.

Retomando o exemplo anterior, a aplicação do mesmo imposto, considerando porém que os consumidores actualmente isentos de ISP também não pagam o novo imposto, seguida pela "reciclagem" completa da receita adicional através dos mesmos impostos e nas mesmas proporções do exemplo anterior, traduzir-se-ia num PIB estagnado (em vez de um aumento de 0.6%). Este é o cenário pardo por excelência, onde se faz de conta que tudo muda para que nada mude.

Terceira conclusão: na ausência de um ordenamento político-económico coerente e transparente persistem numerosas distorções, também no campo fiscal, que constituem um travão ao crescimento.

Terá o Parlamento a vontade de pôr fim ao “gattopardismo” e dar início a uma nova era de crescimento - verde?

Presidente da Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde

Professor Catedrático de Economia, The College of William and Mary

ampere@wm.edu