O direito a escolher a hora da nossa morte
A eutanásia coloca-se quando o sofrimento é tão grande e constante que, entre dois males, a morte é o mal menor.
Sem deixar de reconhecer a importância dos cuidados paliativos e sem ignorar os riscos de uma consagração de tal direito sem a devida regulamentação e supervisão, acredito que todos temos direito a pôr termo à nossa própria vida com o apoio de terceiros, em determinadas condições.
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Sem deixar de reconhecer a importância dos cuidados paliativos e sem ignorar os riscos de uma consagração de tal direito sem a devida regulamentação e supervisão, acredito que todos temos direito a pôr termo à nossa própria vida com o apoio de terceiros, em determinadas condições.
Quando o sofrimento se torna insuportável, quando a vida deixa de ter qualquer sentido para além do próprio sofrimento em que se vive, deveria ser possível a qualquer pessoa aceder a um meio digno de acabarmos com a nossa existência. Ninguém quer morrer ou morre por gosto. A questão coloca-se quando o sofrimento é tão grande e constante que, entre dois males, a morte é o mal menor.
A questão da eutanásia foi agora colocada nas primeiras páginas de alguma imprensa, graças a uma queixa apresentada há dias no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) pelo filho de Godelieva De Troyer, uma cidadã belga de 64 anos que morreu em Abril de 2012 graças ao Dr. Wim Distelmans que acedeu ao seu desejo de morrer. Estava a viver um sofrimento insuportável em consequência de uma depressão diagnosticada como incurável.
O filho de Goelieva, apoiado por uma organização pró-vida, decidiu agora fazer uma campanha contra a lei belga da eutanásia, invocando o facto de a mãe não ser uma doente terminal e alegando que a sua depressão se devia ao fim de uma relação romântica e que seria reversível. Segundo o filho, a morte da sua mãe criou-lhe, a ele sim, um sofrimento insuportável.
É certo que as relações entre eles eram quase nulas e que a mãe, três meses antes da sua morte, lhe comunicara que iria procurar pôr termo à vida através da eutanásia e o filho nada fizera.
A lei belga prevê numerosas obrigações aos médicos a quem se dirija um candidato à eutanásia: devem informá-lo do seu estado de saúde e da sua esperança de vida, invocar todas as possibilidades terapêuticas e chegar à conclusão que não há outra solução razoável, assegurarem-se da persistência do sofrimento e da reiterada vontade de pôr termo ao mesmo, consultar um outro médico quanto ao carácter grave e incurável da doença, falar com os familiares e com o médico assistente caso o doente o deseje e assegurarem-se que o doente teve a possibilidade de se encontrar com as pessoas que desejava. Mais deve o médico, tendo tempo para isso, consultar um segundo médico quanto ao carácter constante, insuportável e implacável do sofrimento e ao carácter voluntário, reflectido e repetido do pedido da eutanásia.
Por último, deverá ainda constituir um dossier médico sobre o doente e deixar passar, no mínimo, um mês entre o pedido e a prática da eutanásia.
Estes são os deveres dos médicos a quem é apresentado um pedido de eutanásia na Bélgica.
O médico Wim Distelmans é um herói ou um criminoso neste campo já que, tendo sido o responsável pelo desenvolvimento dos cuidados paliativos na Bélgica a que dedica grande parte do seu tempo, passou a ser também um grande defensor da eutanásia quando chegou à conclusão que havia casos em que só a morte podia pôr termo ao sofrimentos dos doentes, respeitando a sua autonomia e a dignidade.
É difícil fazer um prognóstico sobre a decisão do TEDH não conhecendo concretamente a queixa e os factos, mas uma coisa é certa: até esta data, o TEDH não reconheceu a existência de um direito a morrer, reverso do direito à vida, este sim consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
O TEDH, nos casos em que já se pronunciou sobre a eutanásia, salientou sempre que esta é uma matéria em que cada Estado tem uma ampla margem para decidir livremente, uma vez que não há qualquer consenso entre os Estados membros do Conselho da Europa quanto ao direito dos cidadãos poderem escolher como e quando porem termo à vida. Apesar de o auxílio ao suicídio já ter sido descriminalizado em alguns Estados, a verdade é que a maioria deles dá uma grande importância ao direito à vida e pouca ao direito a pôr termo à mesma.
Neste caso o que se pretende – de alguma forma como no caso de Vincent Lambert que se encontra pendente no TEDH e que aqui comentámos em 27 de Junho – é pôr em causa a legislação sobre a eutanásia em nome do direito à vida. Se no caso de Vincent Lambert, a decisão do tribunais franceses de descontinuar a sua alimentação e a hidratação parece estar solidamente sustentada, tanto factual como legalmente, sendo improvável que o TEDH condene a França por violação do direito à vida, já no caso de Godelieva De Troyer, segundo o que é afirmado pelo filho activista, haverá diversas zonas cinzentas a partir das quais o TEDH poderá descobrir uma violação do direito à vida.
De qualquer forma, decida o TEDH como decidir, sempre o direito à eutanásia será cada vez mais uma realidade individual e social.