“O Portugal dos Maias é igual ao Portugal de hoje”
Dificilmente encontraríamos cineasta menos unânime para adaptar Os Maias ao grande écrã, mas João Botelho atirou-se ao romance de Eça sem medo. “Isto” – o cinema, o dinheiro para o fazer – “é tão raro que um gajo só pode filmar coisas importantes”, diz. Para lá das telas pintadas, do guarda-roupa de época, do artifício, Os Maias é um filme sobre Portugal, hoje.
“Não quero fazer um filme de época”, diz numa esplanada com vista sobre a Avenida da Liberdade, numa tarde de fim de Verão, referindo-se ao artificialismo assumido de um filme todo ele em interiores sobre uma Lisboa impossível de recriar fisicamente em exteriores. Pelo meio de muitos cigarros e de um discurso entusiasmado, num intervalo entre a finalização de A Arte da Luz Tem 20.000 Anos (média-metragem que estreará este fim de semana em Foz Côa no âmbito do festival Cinecoa) e as exigências do lançamento de Os Maias, que chega esta semana ao circuito de exibição (em duas versões, uma “curta” de 2h20 e outra, “longa”, com três horas), Botelho explica como o seu filme aposta num “distanciamento pelo artifício”: fiel à narrativa e ao espírito, mesmo que não à letra, de um romance sobre o Portugal de ontem que fala muito ao Portugal de hoje.
Qual é a verdadeira duração de Os Maias: um filme de duas horas que expande para três, ou um filme de três horas encurtado para duas?
Se fôssemos fiéis ao Eça, deveriam ser 20... Mas é um filme de três horas. A Lusomundo mostrou-se interessada em distribuir – nem é por mim, é pelos Maias, pelo Eça... – e pediram-me uma versão mais curta. Que não é muito diferente – é mais concentrada, mais rápida, as cenas são mais curtas, vai mais pela narrativa dos costumes e do incesto. Vou ter a versão longa apenas no Cinema Ideal, em Lisboa, mas depois vou fazer a mesma distribuição do Filme do Desassossego [no circuito das escolas e dos cine-teatros de província], com a curta à tarde, e à noite a versão longa. E ainda há uma versão maior, para televisão, com quatro horas.
Como é que se “desbasta” Os Maias para três horas?
O grande trabalho foi conseguir concentrar. O [Filme do] Desassossego foi mais fácil porque apesar de [o livro] ser mais abstracto era mais fragmentado, mais disperso. Este não, é uma narrativa entrelaçada. O trabalho de adaptação levou meses. Mas esse é o trabalho do cinema: corta e cola. O que tentei fazer foi encontrar equivalências às descrições maravilhosas do Eça, tentar fazer isso com a luz e não com a voz-off. A chave do filme está no genérico; a partir do momento em que mostro os desenhos, as maquetas, o guarda-roupa e ponho o Jorge Vaz de Carvalho, que é cantor de ópera, a fazer de narrador, instalei o artifício. A partir do momento em que há uma instalação do artifício, os dados estão lançados e o que me interessa é o texto ou os gestos que as personagens fazem a dizer aquele texto.
Para mim, o fundamental é o texto do Eça. Que tem invenções prodigiosas; ele tem outros romances maravilhosos, mas este é o livro que posso transpor para hoje. O Portugal dos Maias é igual ao Portugal de hoje, e permite-me falar desta raiva. Das imitações da D. Branca, que, coitadinha, inventou a pirâmide ou copiou de outros sítios e foi presa e aquilo correu-lhe muito mal. Estes Salgados todos do mundo copiaram-lhe o sistema e nem lhe pagaram direitos de autor e andam aí à solta. E esta ronceirice portuguesa é muito engraçada, porque se mantém – a intriga do Silveirinha, o Dâmaso Salcede, o tédio dos ricos que vivem de rendimentos... Mesmo o incesto é um incesto político, é um incesto de classes: como já não tem ninguém com quem dormir, para se manter a raça dorme-se com a irmã! E depois aquela história dos portugueses não correrem nem para o governo nem para a glória, mas para o jantarinho sim... Estão sempre atrasados e só se apressam para a comidinha... Os padres, a demagogia, os políticos, os poetas, a música, a Sonata Patética... O jantar do Central é uma invenção incrível – começam por criticar os fadistas e os faias e as facadas com uma distância de aristocratas, de civilizados, e passado um bocado estão piores do que eles!
Portugal é um tema recorrente desde sempre no teu cinema.
Filmei o Frei Luís de Sousa do Almeida Garrett numa altura em que a Avenida da Liberdade era toda espanhola – as lojas, os bancos eram todos espanhóis, e os Filipes eram o dinheiro. O Quem És Tu? [2001] era uma ideia de falar disso. Quando fiz Tempos Difíceis [1988], tinha acabado o Adeus Português [1986] e precisava de um texto forte, e o que me levou aos Tempos Difíceis foi o Eisenstein, que disse que quem inventou o cinema foi o Dickens e não o Griffith, que aquilo estava cheio de formulações cinematográficas. E estávamos naquela euforia dos novos-ricos em Portugal a seguir ao 25 de Abril. O Jacques, o Fatalista do Diderot [O Fatalista, 2005] também, foi a ideia de falar sobre a libertinagem, sobre o falso destino; quando fiz Tráfico [1998], era para anunciar esta bandalheira que ia acontecer...
Há um lado de teatrinho de ridículos, de fogueira das vaidades.
Gostei de criar uma espécie de montagem de atracções, quase como quadros numa ópera – porque aquilo é aberto de mais para ser teatro. O espectáculo mais fantástico do ponto de vista das emoções é a ópera. Pode-se ter uma senhora gorda de 60 anos mas que cante bem a fazer uma adolescente de 17, e as pessoas podem chorar, podem ir às lágrimas com isso desde que ela cante bem e represente bem.
Falando de ópera, é impossível não pensar em Visconti.
Que é muito melhor do que eu. Mas o único filme que mostrei aos actores no início do trabalho foi O Intruso [1976], do Visconti. Não mostrei mais nada. [pausa] Porque não é aquilo, mas é uma ideia muito parecida, sobretudo para a representação. A atitude artística deste filme, que é fazer papelão, não é Visconti. Fiz papelão por duas razões: primeiro porque gosto do artifício, em segundo lugar porque é economicamente justo para Portugal. É impossível filmar o Chiado hoje, ficava ridículo, fazer enquadramentos à volta dos carros e dos sinais de trânsito, dos eléctricos. Não podia ser e não tinha dinheiro para fazer isso. O filme está cheio de anacronismos e de brincadeiras: ponho lá uma senhora a ler A Capital, que só saiu depois de o Eça morrer, tenho uma Brasileira que não existe, só abriu em 1905, não há nenhum exterior, são tudo telões, é tudo falso. O que não é falso é o texto e as situações. Joguei muito com a ideia de levar o artifício ao limite para ficar verdade.
Mas o mérito é do Eça. Não inventei nada, está lá tudo – o Beethoven, o Meyerbeer, o fado... Mesmo a Traviata, que me deu um jeito enorme, estava no São Carlos na altura em que ele escreveu Os Maias e quando se passa a acção. As descrições do Ramalhete [no livro] são o Son Nom de Venise dans Calcutta désert da Marguerite Duras: corres as paredes, lês o texto em off e aquilo dá um filme fantástico. Eu respeito os textos, mesmo que os corte. O Pessoa dizia que a luz que ilumina os sapatos tem de ser igual à luz que ilumina as caras dos santos. É um termo que me indica a luz que eu devo fazer! Eu gosto muito da frase do Manoel de Oliveira: “Não há dinheiro para filmar a carruagem? Filma-se a roda, mas tens de filmar bem a roda.” O cinema é uma coisa falsa. A verdade é o que as pessoas sentem, porque o que lá está é tudo falso. Para mim, as premissas do cinema são duas. A primeira, a luz e as sombras e seres humanos aflitos lá no meio, a saírem da luz para a sombra quando são pessimistas ou da sombra para a luz quando são optimistas. A segunda é que o cinema não é o que se passa nem quando se passa: é como se filma. Os Maias com dez realizadores diferentes dá dez filmes diferentes. É aquela brincadeira do Flaubert, “a Madame Bovary sou eu” – e depois há quantas Bovary maravilhosas e diferentes?
Então quem nos Maias é o João Botelho?
Mais o Ega. Mas nós não inventamos nada, roubamos aos outros todos. O cineasta é um vampiro, vai buscar à literatura, ao teatro, à poesia, às artes abstractas, à arquitectura. O cinema é um ponto de vista. Quando vês um filme do Oliveira, do Pedro Costa, do José Álvaro Morais, desses miúdos novos, do Miguel Gomes, do João Salaviza, há um ponto de vista. As pessoas escolhem. Escolhem um modo de filmar. Não temos mercado, não temos indústria... Quando as pessoas falam de indústria, acho que deviam emigrar para os EUA. Porque ali é que é a indústria; aqui é outra coisa, é o artesanato. É uma coisa que não tem mercado, não tem sentido, mas é um luxo. Não há nenhum filme português que se tenha pago no mercado. Nenhum. O que nos dá uma impotência grande em relação à vida, mas dá-nos uma liberdade que não tem preço. Poder filmar assim Os Maias é um luxo, um privilégio. Outra coisa que aprendi com o senhor Oliveira: uma pessoa deve-se prostituir para arranjar dinheiro para filmar, para vender o filme, mas durante o filme nunca, não se pode interferir na obra. A única imposição que tive [aqui] foi em relação à versão mais curta, para poder fazer quatro sessões por dia e não duas. Quando fiz o Desassossego em Lisboa e no Porto perdi muita gente porque fiz poucas exibições. Mas fiz muito bem na província, nos cine-teatros, à tarde fazia duas sessões para os miúdos das escolas e à noite para os pais, e as pessoas vestiam-se a rigor. Já não via disto há muito tempo. Casacos de pele, os senhores de fato e gravata...
Um acontecimento?
Era um sarau! Uma vez, no Teatro D. Maria II, fui ver o Miserere do Luís Miguel Cintra num dia em que aquilo estava cheio de putos. Um barulho incrível, uma agitação, de repente eles pediram para desligar os telemóveis que ia começar a peça e calaram-se todos. Porque é que não posso ter esta atitude com o cinema? Porque é que o teatro tem esta relação com os espectadores mas no cinema chegam lá para a bandalheira e para as pipocas? Porque é que não posso ter essa dignidade? E criei-a. Agora, saíu-me do pêlo: fiz 160 sessões e estive lá, a apresentar o filme. Portanto, é preciso criar acontecimentos. Não podemos combater a indústria americana, não posso mentir com os filmes. Não posso dizer que isto é um filme americano nem um policial francês ou uma comédia espanhola. Isto é um filme português. É o que é. O cinema não é uma coisa única. E ao criar estas situações encontrei pessoas que não iam ao cinema há dez anos e que foram porque houve um acontecimento. E dá trabalho, mas é bom.
Ouvi várias pessoas dizerem que vão ao cinema para se divertirem e para não pensar em nada. Eu gosto é da inquietação. Eu gosto da frase do Kafka em que ele diz que um romance não é para confortar, é para inquietar. As pessoas são todas diferentes. Tenho de permitir às pessoas uma hipótese de escolha, entre uma que se interesse mais pela luz nos olhos de um actor e outra que se interesse mais pela voz, ou pelo pontapé que o Ega dá. Aquilo tem de mudar um bocadinho a vida das pessoas. Não é dar aulas, porque o cinema não dá lições de nada a não ser de cinema. Mas é preciso uma abertura para que as pessoas fiquem inquietas, não fiquem confortáveis.
Antes dos Maias, filmaste Agustina Bessa-Luís (A Corte do Norte, 2008), Fernando Pessoa, e agora o Eça. Como se te estivesses a medir com os “vultos”.
Isto é tão raro que um gajo só pode filmar coisas importantes. Não vou fazer os Lusíadas porque não tenho 50 horas, mas adorava fazer um D. João II... Há coisas em Portugal que são importantes e que as pessoas estão a desleixar. A Agustina não é importante? O Pessoa não é importante? É como se nos tivéssemos tornado no reino dos best-sellers que vendem muito...
Mas são os grandes nomes da literatura portuguesa.
Porque eu gosto muito de adaptar textos. Adoro. Se eles escrevem melhor do que eu, porque é que vou eu escrever? Escrevi dois ou três filmes na minha vida, e é difícil. Mas isto tem também a ver com a idade, com o desejo de fazer. Tenho três filhos criados, têm vidas autónomas, estou sozinho, adoro trabalhar. Gosto de fazer coisas, estou cá para isto, não estou cá para engonhar, não estou naquela coisa de mudar o mundo, da perfeição, de ganhar 10% num filme quando posso corrigir os erros no seguinte. Tenho esta atitude em relação à vida – é tão rápida que uma pessoa não pode brincar com ela. Divirto-me imenso mas no trabalho é a sério. Houve coisas que falhei no Desassossego e neste foram melhoradas, e espero que o próximo seja melhor do que este. Os erros e as virtudes são meus. Não são de mais ninguém.
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“Não quero fazer um filme de época”, diz numa esplanada com vista sobre a Avenida da Liberdade, numa tarde de fim de Verão, referindo-se ao artificialismo assumido de um filme todo ele em interiores sobre uma Lisboa impossível de recriar fisicamente em exteriores. Pelo meio de muitos cigarros e de um discurso entusiasmado, num intervalo entre a finalização de A Arte da Luz Tem 20.000 Anos (média-metragem que estreará este fim de semana em Foz Côa no âmbito do festival Cinecoa) e as exigências do lançamento de Os Maias, que chega esta semana ao circuito de exibição (em duas versões, uma “curta” de 2h20 e outra, “longa”, com três horas), Botelho explica como o seu filme aposta num “distanciamento pelo artifício”: fiel à narrativa e ao espírito, mesmo que não à letra, de um romance sobre o Portugal de ontem que fala muito ao Portugal de hoje.
Qual é a verdadeira duração de Os Maias: um filme de duas horas que expande para três, ou um filme de três horas encurtado para duas?
Se fôssemos fiéis ao Eça, deveriam ser 20... Mas é um filme de três horas. A Lusomundo mostrou-se interessada em distribuir – nem é por mim, é pelos Maias, pelo Eça... – e pediram-me uma versão mais curta. Que não é muito diferente – é mais concentrada, mais rápida, as cenas são mais curtas, vai mais pela narrativa dos costumes e do incesto. Vou ter a versão longa apenas no Cinema Ideal, em Lisboa, mas depois vou fazer a mesma distribuição do Filme do Desassossego [no circuito das escolas e dos cine-teatros de província], com a curta à tarde, e à noite a versão longa. E ainda há uma versão maior, para televisão, com quatro horas.
Como é que se “desbasta” Os Maias para três horas?
O grande trabalho foi conseguir concentrar. O [Filme do] Desassossego foi mais fácil porque apesar de [o livro] ser mais abstracto era mais fragmentado, mais disperso. Este não, é uma narrativa entrelaçada. O trabalho de adaptação levou meses. Mas esse é o trabalho do cinema: corta e cola. O que tentei fazer foi encontrar equivalências às descrições maravilhosas do Eça, tentar fazer isso com a luz e não com a voz-off. A chave do filme está no genérico; a partir do momento em que mostro os desenhos, as maquetas, o guarda-roupa e ponho o Jorge Vaz de Carvalho, que é cantor de ópera, a fazer de narrador, instalei o artifício. A partir do momento em que há uma instalação do artifício, os dados estão lançados e o que me interessa é o texto ou os gestos que as personagens fazem a dizer aquele texto.
Para mim, o fundamental é o texto do Eça. Que tem invenções prodigiosas; ele tem outros romances maravilhosos, mas este é o livro que posso transpor para hoje. O Portugal dos Maias é igual ao Portugal de hoje, e permite-me falar desta raiva. Das imitações da D. Branca, que, coitadinha, inventou a pirâmide ou copiou de outros sítios e foi presa e aquilo correu-lhe muito mal. Estes Salgados todos do mundo copiaram-lhe o sistema e nem lhe pagaram direitos de autor e andam aí à solta. E esta ronceirice portuguesa é muito engraçada, porque se mantém – a intriga do Silveirinha, o Dâmaso Salcede, o tédio dos ricos que vivem de rendimentos... Mesmo o incesto é um incesto político, é um incesto de classes: como já não tem ninguém com quem dormir, para se manter a raça dorme-se com a irmã! E depois aquela história dos portugueses não correrem nem para o governo nem para a glória, mas para o jantarinho sim... Estão sempre atrasados e só se apressam para a comidinha... Os padres, a demagogia, os políticos, os poetas, a música, a Sonata Patética... O jantar do Central é uma invenção incrível – começam por criticar os fadistas e os faias e as facadas com uma distância de aristocratas, de civilizados, e passado um bocado estão piores do que eles!
Portugal é um tema recorrente desde sempre no teu cinema.
Filmei o Frei Luís de Sousa do Almeida Garrett numa altura em que a Avenida da Liberdade era toda espanhola – as lojas, os bancos eram todos espanhóis, e os Filipes eram o dinheiro. O Quem És Tu? [2001] era uma ideia de falar disso. Quando fiz Tempos Difíceis [1988], tinha acabado o Adeus Português [1986] e precisava de um texto forte, e o que me levou aos Tempos Difíceis foi o Eisenstein, que disse que quem inventou o cinema foi o Dickens e não o Griffith, que aquilo estava cheio de formulações cinematográficas. E estávamos naquela euforia dos novos-ricos em Portugal a seguir ao 25 de Abril. O Jacques, o Fatalista do Diderot [O Fatalista, 2005] também, foi a ideia de falar sobre a libertinagem, sobre o falso destino; quando fiz Tráfico [1998], era para anunciar esta bandalheira que ia acontecer...
Há um lado de teatrinho de ridículos, de fogueira das vaidades.
Gostei de criar uma espécie de montagem de atracções, quase como quadros numa ópera – porque aquilo é aberto de mais para ser teatro. O espectáculo mais fantástico do ponto de vista das emoções é a ópera. Pode-se ter uma senhora gorda de 60 anos mas que cante bem a fazer uma adolescente de 17, e as pessoas podem chorar, podem ir às lágrimas com isso desde que ela cante bem e represente bem.
Falando de ópera, é impossível não pensar em Visconti.
Que é muito melhor do que eu. Mas o único filme que mostrei aos actores no início do trabalho foi O Intruso [1976], do Visconti. Não mostrei mais nada. [pausa] Porque não é aquilo, mas é uma ideia muito parecida, sobretudo para a representação. A atitude artística deste filme, que é fazer papelão, não é Visconti. Fiz papelão por duas razões: primeiro porque gosto do artifício, em segundo lugar porque é economicamente justo para Portugal. É impossível filmar o Chiado hoje, ficava ridículo, fazer enquadramentos à volta dos carros e dos sinais de trânsito, dos eléctricos. Não podia ser e não tinha dinheiro para fazer isso. O filme está cheio de anacronismos e de brincadeiras: ponho lá uma senhora a ler A Capital, que só saiu depois de o Eça morrer, tenho uma Brasileira que não existe, só abriu em 1905, não há nenhum exterior, são tudo telões, é tudo falso. O que não é falso é o texto e as situações. Joguei muito com a ideia de levar o artifício ao limite para ficar verdade.
Mas o mérito é do Eça. Não inventei nada, está lá tudo – o Beethoven, o Meyerbeer, o fado... Mesmo a Traviata, que me deu um jeito enorme, estava no São Carlos na altura em que ele escreveu Os Maias e quando se passa a acção. As descrições do Ramalhete [no livro] são o Son Nom de Venise dans Calcutta désert da Marguerite Duras: corres as paredes, lês o texto em off e aquilo dá um filme fantástico. Eu respeito os textos, mesmo que os corte. O Pessoa dizia que a luz que ilumina os sapatos tem de ser igual à luz que ilumina as caras dos santos. É um termo que me indica a luz que eu devo fazer! Eu gosto muito da frase do Manoel de Oliveira: “Não há dinheiro para filmar a carruagem? Filma-se a roda, mas tens de filmar bem a roda.” O cinema é uma coisa falsa. A verdade é o que as pessoas sentem, porque o que lá está é tudo falso. Para mim, as premissas do cinema são duas. A primeira, a luz e as sombras e seres humanos aflitos lá no meio, a saírem da luz para a sombra quando são pessimistas ou da sombra para a luz quando são optimistas. A segunda é que o cinema não é o que se passa nem quando se passa: é como se filma. Os Maias com dez realizadores diferentes dá dez filmes diferentes. É aquela brincadeira do Flaubert, “a Madame Bovary sou eu” – e depois há quantas Bovary maravilhosas e diferentes?
Então quem nos Maias é o João Botelho?
Mais o Ega. Mas nós não inventamos nada, roubamos aos outros todos. O cineasta é um vampiro, vai buscar à literatura, ao teatro, à poesia, às artes abstractas, à arquitectura. O cinema é um ponto de vista. Quando vês um filme do Oliveira, do Pedro Costa, do José Álvaro Morais, desses miúdos novos, do Miguel Gomes, do João Salaviza, há um ponto de vista. As pessoas escolhem. Escolhem um modo de filmar. Não temos mercado, não temos indústria... Quando as pessoas falam de indústria, acho que deviam emigrar para os EUA. Porque ali é que é a indústria; aqui é outra coisa, é o artesanato. É uma coisa que não tem mercado, não tem sentido, mas é um luxo. Não há nenhum filme português que se tenha pago no mercado. Nenhum. O que nos dá uma impotência grande em relação à vida, mas dá-nos uma liberdade que não tem preço. Poder filmar assim Os Maias é um luxo, um privilégio. Outra coisa que aprendi com o senhor Oliveira: uma pessoa deve-se prostituir para arranjar dinheiro para filmar, para vender o filme, mas durante o filme nunca, não se pode interferir na obra. A única imposição que tive [aqui] foi em relação à versão mais curta, para poder fazer quatro sessões por dia e não duas. Quando fiz o Desassossego em Lisboa e no Porto perdi muita gente porque fiz poucas exibições. Mas fiz muito bem na província, nos cine-teatros, à tarde fazia duas sessões para os miúdos das escolas e à noite para os pais, e as pessoas vestiam-se a rigor. Já não via disto há muito tempo. Casacos de pele, os senhores de fato e gravata...
Um acontecimento?
Era um sarau! Uma vez, no Teatro D. Maria II, fui ver o Miserere do Luís Miguel Cintra num dia em que aquilo estava cheio de putos. Um barulho incrível, uma agitação, de repente eles pediram para desligar os telemóveis que ia começar a peça e calaram-se todos. Porque é que não posso ter esta atitude com o cinema? Porque é que o teatro tem esta relação com os espectadores mas no cinema chegam lá para a bandalheira e para as pipocas? Porque é que não posso ter essa dignidade? E criei-a. Agora, saíu-me do pêlo: fiz 160 sessões e estive lá, a apresentar o filme. Portanto, é preciso criar acontecimentos. Não podemos combater a indústria americana, não posso mentir com os filmes. Não posso dizer que isto é um filme americano nem um policial francês ou uma comédia espanhola. Isto é um filme português. É o que é. O cinema não é uma coisa única. E ao criar estas situações encontrei pessoas que não iam ao cinema há dez anos e que foram porque houve um acontecimento. E dá trabalho, mas é bom.
Ouvi várias pessoas dizerem que vão ao cinema para se divertirem e para não pensar em nada. Eu gosto é da inquietação. Eu gosto da frase do Kafka em que ele diz que um romance não é para confortar, é para inquietar. As pessoas são todas diferentes. Tenho de permitir às pessoas uma hipótese de escolha, entre uma que se interesse mais pela luz nos olhos de um actor e outra que se interesse mais pela voz, ou pelo pontapé que o Ega dá. Aquilo tem de mudar um bocadinho a vida das pessoas. Não é dar aulas, porque o cinema não dá lições de nada a não ser de cinema. Mas é preciso uma abertura para que as pessoas fiquem inquietas, não fiquem confortáveis.
Antes dos Maias, filmaste Agustina Bessa-Luís (A Corte do Norte, 2008), Fernando Pessoa, e agora o Eça. Como se te estivesses a medir com os “vultos”.
Isto é tão raro que um gajo só pode filmar coisas importantes. Não vou fazer os Lusíadas porque não tenho 50 horas, mas adorava fazer um D. João II... Há coisas em Portugal que são importantes e que as pessoas estão a desleixar. A Agustina não é importante? O Pessoa não é importante? É como se nos tivéssemos tornado no reino dos best-sellers que vendem muito...
Mas são os grandes nomes da literatura portuguesa.
Porque eu gosto muito de adaptar textos. Adoro. Se eles escrevem melhor do que eu, porque é que vou eu escrever? Escrevi dois ou três filmes na minha vida, e é difícil. Mas isto tem também a ver com a idade, com o desejo de fazer. Tenho três filhos criados, têm vidas autónomas, estou sozinho, adoro trabalhar. Gosto de fazer coisas, estou cá para isto, não estou cá para engonhar, não estou naquela coisa de mudar o mundo, da perfeição, de ganhar 10% num filme quando posso corrigir os erros no seguinte. Tenho esta atitude em relação à vida – é tão rápida que uma pessoa não pode brincar com ela. Divirto-me imenso mas no trabalho é a sério. Houve coisas que falhei no Desassossego e neste foram melhoradas, e espero que o próximo seja melhor do que este. Os erros e as virtudes são meus. Não são de mais ninguém.