Este livro é um homem aberto

Inside/Outside, do designer Eduardo Aires, é um objecto diferente. Tem a textura e o peso dos materiais e fala dos valores que fazem os homens ser o que são. Tudo a propósito de design

Foto

O livro tem uma textura. Ou melhor, tem mais do que uma — a caixa cinzenta onde o interior encaixa através das aberturas laterais tem uma textura ligeiramente mais áspera, porosa e, quando esvaziada, tem som. E peso. O livro, no interior, é branco, macio, mais suave. Criamos uma relação física com ele, antes mesmo de o abrirmos.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O livro tem uma textura. Ou melhor, tem mais do que uma — a caixa cinzenta onde o interior encaixa através das aberturas laterais tem uma textura ligeiramente mais áspera, porosa e, quando esvaziada, tem som. E peso. O livro, no interior, é branco, macio, mais suave. Criamos uma relação física com ele, antes mesmo de o abrirmos.

Inside/Outside é um livro do designer de comunicação Eduardo Aires, fundador do atelier White Studio, no Porto, vencedor de três prémios Graphis (um ouro e dois prata) e professor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto. “O design não é só uma relação visual, é também de tacto”, diz-nos, numa conversa por telefone. O livro branco entra e sai da sua caixa, tal como, ao longo dos anos, muitas influências e experiências entraram em Eduardo Aires e muitos trabalhos saíram dele. “O invólucro exterior está ali para se deixar impregnar pelo dia-a-dia e proteger o interior, que é imaculadamente branco.”

Mas este é também um livro diferente — não estamos habituados a ouvir falar assim sobre design. O autor quis fugir daquilo que descreve como “o discurso muito ensimesmado dos designers”, por isso o texto é um relato, muito pessoal, do seu percurso, e de tudo aquilo que, ao longo da vida, o foi influenciando, tornando-o o designer que é. O que faz, por exemplo, a imagem de um par de sapatos numa das páginas? Serve para o autor falar da sua relação com os materiais — “Olho para esta imagem e fico fascinado pelos pespontos, pelo casamento da sola com a estrutura superior […].”

Passando as páginas, vamos encontrando papéis cinzento-claro com texto em letra pequena, colados como se fossem post-it, criando pequenas janelas, convidando-nos a espreitar debaixo deles e a descobrir desenhos ou imagens escondidos.

Podem funcionar como um hipertexto no mundo digital, desviando-nos por momentos do texto principal, mas não foi essa a intenção do designer. Até porque, diz-nos, o seu universo é muito mais analógico do que digital. Veja-se, por exemplo, o trabalho que fez para a conferência A Ciência Terá Limites?, na Fundação Gulbenkian: as letras S e C como se fossem desenhadas a mercúrio, por pequenas bolas, nas quais se reflecte a palavra Science. A primeira impressão é de que se trata de um trabalho feito inteiramente no computador. Mas na página seguinte, e levantando um post-it, descobrimos os bastidores do projecto e a montagem com rolamentos mecânicos fotografados através de um cone onde foi escrita a palavra “science”.

The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/IMAGEM_368_245.cshtml' was not found. The following locations were searched: ~/Views/Layouts/Amp2020/IMAGEM_368_245.cshtml
IMAGEM_368_245

Eduardo Aires escreve num texto inicial que os post-it são “portas e janelas, metáforas visuais e gráficas que representam a vida da nossa ‘casa’ e deixam perceber os valores onde estão colocados os nossos alicerces, como a lealdade, justiça, verdade, transparência, a honestidade, o amor e a família”. Debaixo deles podemos encontrar uma foto dele pequeno, com os pais, um logótipo (do banco Stadtsparkasse) que o impressionou, uma revista que coleccionava, o Anikibobó como “lugar de referência na noite do Porto”, ou, mais à frente, os projectos que desenvolveu para diversos clientes, dos CTT (para os quais fez os selos do Ano Europeu das Pessoas com Deficiência) ao empreendimento turístico Roncão d’El Rei, do grupo Esporão.

Paremos por um momento no projecto do Roncão para perceber o método de trabalho de Eduardo Aires. “A minha primeira diligência foi pedir para contratar um documentalista, visto que precisava de saber que matéria tinha realmente entre mãos”, escreve. Para criar uma identidade visual para este espaço no Alentejo que pertenceu à coroa portuguesa, teve de mergulhar a fundo na história do local — como faz com todos os seus projectos.

The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/IMAGEM_368_245.cshtml' was not found. The following locations were searched: ~/Views/Layouts/Amp2020/IMAGEM_368_245.cshtml
IMAGEM_368_245

Esta disponibilidade para se abrir a uma realidade, para a absorver inteiramente — mesmo que isso implique longas conversas e, muitas vezes, negociações desgastantes — é essencial para um designer, acredita Eduardo Aires. Um dos pontos que foca já no final do livro é aquilo a que chama o “efeito pavão” — “é relativamente fácil criar uma atmosfera cénica, artificial, sobre os nossos logros e os nossos êxitos”. Alerta também para os riscos do designer-artista — este tem que “pôr de lado a sua vaidade e deixar que cada projecto tenha uma voz própria” em vez de querer impor uma marca reconhecível em todos eles.

Mas se a capacidade do designer para ouvir os outros é importante, é igualmente fundamental que “os outros” (e estamos a falar geralmente dos clientes) não desviem a conversa para a questão do gosto, percebam que o design é uma disciplina e que há uma fundamentação para o que é proposto. “Quando alguém interfere e veicula a análise de um projecto através do seu gosto pessoal, perturba a leitura objectiva do trabalho que tem pela frente.” Eduardo Aires está, contudo, optimista quanto ao futuro do design em Portugal, sobretudo porque, ao contrário do que acontecia no passado, os designers “começam a participar das decisões estratégicas das empresas”. Só lamenta que falte ainda uma regulação da própria classe que torne “os limites do design menos ténues”, impedindo que toda a gente ache que é, de alguma maneira, um designer.

Espera que aquilo que aqui partilha, todas as “janelas e portas” que abre, contribua para que se perceba o processo humano e complexo que está por trás da criação de uma imagem — e dedica o seu livro “a todos os que têm a capacidade para se realizar e entregar aos outros”.