Temos todos Ébola

O Ébola é, no fundo, a imagem perfeita dos estereótipos construídos no autoproclamado mundo desenvolvido em relação a África

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Luc Gnago/Reuters

Alguns países continentais africanos enfrentam uma epidemia de Ébola. De acordo com especialistas e organizações internacionais, nunca a ameaça do vírus foi tão grande. Os números não param de aumentar e, enquanto escrevo esta crónica, perto de duas mil pessoas já perderam a vida, muitas mais contraíram a doença.

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Alguns países continentais africanos enfrentam uma epidemia de Ébola. De acordo com especialistas e organizações internacionais, nunca a ameaça do vírus foi tão grande. Os números não param de aumentar e, enquanto escrevo esta crónica, perto de duas mil pessoas já perderam a vida, muitas mais contraíram a doença.

Por viver em Cabo Verde, sigo com atenção o evoluir da situação. O governo cabo-verdiano adoptou um conjunto de medidas para evitar que o cenário vivido na Serra Leoa, Libéria, Guiné-Conacri, Nigéria, Senegal (com um único caso) e República Democrática do Congo (neste caso o vírus é de uma estirpe diferente e, provavelmente, menos perigoso) se repita no arquipélago.

A tragédia humana associada à epidemia assume proporções cada vez maiores e os sinais não são encorajadores. As consequências do vírus, altamente mortal, vão muito além da perda de vidas. Nos países atingidos, mas também em muitos outros Estados africanos, os efeitos colaterais fazem-se sentir em muitos outros sectores. Por exemplo, existem preocupações reais quanto à segurança alimentar e a UNICEF já alertou para o impacto nos sistemas de saúde e educação.

O Ébola está directamente associado à pobreza e ao que daí resulta. Não sendo uma “doença de pobres”, encontra nos meios mais desfavorecidos as condições ideais para se propagar. Deficientes condições higiénico-sanitárias, acesso limitado a cuidados de saúde, pouca informação sobre a própria doença.

O Ébola é, no fundo, a imagem perfeita dos estereótipos construídos no autoproclamado mundo desenvolvido em relação a África e está por isso a ser usado como argumento para se recuperar uma ideia de continente que não tem correspondência real. O primeiro é de que “isto” é uma mancha única, onde toda a gente é igual (e por isso já fomos todos contaminados). O segundo é que daqui só resulta pobreza, fome e criancinhas com a barriga cheia de vermes.

O maior perigo da situação actual está, por isso, nos seus danos colaterais. Da ignorância nunca resultam boas decisões. O desconhecimento está a dar origem a medidas exageradas, como a quarentena de países inteiros.

A epidemia justifica o empenho da comunidade internacional. Para lá de todas as teorias da conspiração — de que não há ameaça nenhuma e que a epidemia é irrelevante — basta olhar para os gráficos da Organização Mundial da Saúde (OMS) e perceber o sentido ascendente dos números, com um crescimento acentuado na última semana. Os países afectados precisam de ajuda, sim. Mas todo o continente precisa, acima de tudo, da vossa razoabilidade. Do lado de cá, somos mais de mil milhões e, acreditem ou não, nem todos temos Ébola.

(Até terminava com um abraço, mas tenho medo de vos pegar alguma coisa.)