Um inglês, uma vila ribatejana e um festival
Quando Nick Allport se mudou para Portugal julgava ter deixado a música para trás. Cinco anos depois, a música ocupa-lhe a maior parte do tempo. Está a chegar o Reverence Valada. Será uma Meca psicadélica, com Hawkwind, Black Angels, Woods ou Electric Wizard.
Em 2012, começámos a ouvir falar das Cartaxo Sessions, organizadas no Centro Cultural do Cartaxo, e prestámos atenção às bandas que ali foram sendo programadas – os históricos Psychic TV de Genesis P-Orridge, os A Place to Bury Strangers, os Telescopes. Nick Allport não resistira. A música voltara à sua vida.
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Em 2012, começámos a ouvir falar das Cartaxo Sessions, organizadas no Centro Cultural do Cartaxo, e prestámos atenção às bandas que ali foram sendo programadas – os históricos Psychic TV de Genesis P-Orridge, os A Place to Bury Strangers, os Telescopes. Nick Allport não resistira. A música voltara à sua vida.
Nos próximos dias 11, 12 e 13 de Setembro – a partir da próxima quinta-feira, portanto – decorrerá o primeiro Reverence Valada, festival recheadíssimo de nomes gratos do rock psicadélico e do shoegaze (inglês, americano, português), co-organizado pela Associação Cartaxo Sessions e pela autarquia local, em colaboração com a editora/promotora portuense Lovers & Lollypops, com o lisboeta Sabotage Rock Club e com a promotora londrina Club AC30. O mundo psicadélico, nas suas mais diversas formas, em Valada e o resto do mundo a olhar – o Reverence tem sido alvo de atenção em publicações como o New Musical Express ou a Kerrang! e o influente site Pitchfork também deu conta dele recentemente.
A vila
Passamos a estação ferroviária do Reguengo, depois de alguns quilómetros entre pequenas localidades e o amarelo brilhante dos campos num dia de Verão. Chegaremos a uma recta com campos vastos à esquerda (pintalgados de vermelho, são as plantações de tomate) e à direita (espigas de trigo ondulando ao vento). Entraremos depois dela em Valada, vila ribatejana a dez quilómetros do Cartaxo.
Avançamos mais. Uma rua onde entre cafés, casas e um pequeno largo, o Humberto Delgado, com escultura de homenagem, caminham lentamente os moradores, sob o calor intenso de um início de tarde. Frente a eles, uma elevação de pedra, construída com mão humana. De 11 a 13 de Setembro, quem subir as escadas nela escavadas verá mais do que vemos agora. Entre as águas do rio Tejo e o muro inclinado, entre as árvores e as mesas do Parque de Merendas e no campo de futebol do Ribatejano Futebol Clube Valadense, ver-se-ão três palcos, ver-se-ão tendas de campismo numa zona adjacente. Ouvir-se-á música que a paisagem bucólica agora vista não prenuncia (mas que viverá muito bem, imaginamos, neste cenário).
O festival
De 11 de Setembro, dia de recepção aos visitantes, até 13, será aquele o cenário da primeira edição do Reverence Festival Valada. Um festival surpreendente. Um maná para quem gosta de viajar ao som daquilo a que chamamos psicadelismo (versão rock’n’roll). Um psicadelismo sem fronteiras de género: dos históricos Hawkwind, ingleses fundadores do space-rock na década de 1970, aos americanos Black Angels, novos mestres psicadélicos (ambos dia 13); a revelação britânica Wytches, o shoegaze dos Telescopes e o neo-shoegaze dos Ringo Deathstarr (todos dia 12); a intensidade hard-rock dos suecos Graveyard e dos americanos Red Fang ao lado da metalada escapista dos históricos britânicos Electric Wizard (dia 12); e, nesse mesmo dia, os barcelenses Black Bombaim, uma das melhores bandas actuais a aplicar propriedades psicadélicas ao rock (e a banda portuguesa preferida de Nick Allport, “claramente”), e as descargas sónicas dos lisboetas Sunflare, contrapostos à gentileza folk, delicadamente alucinogénica, dos Woods de Brooklyn, ou à intensidade folk do cantautor americano James Jackson Toth, que assina como Wooden Wand. A lista é, de facto, impressionante.
Caminhamos pelo espaço ainda vazio guiados por Nick Allport, t-shirt e sandálias, barba descendo longa desde o queixo. Vai apontando os locais onde estarão o palco Sabotage, a pouca distância da praia fluvial, o palco Reverence, o principal, no campo de futebol, ou o palco Rio, mais próximo da margem do Tejo. “O alinhamento de sábado é o meu alinhamento de sonho”, confessava pouco antes de nos guiar pelo parque que acolherá os cerca de cinco mil espectadores esperados diariamente. “Psychic TV, Mão Morta, Hawkwind, Black Angels”, elenca. “É perfeito."
E não referiu os Bardo Pond, os The Oscillation, os Moon Duo, nem os portugueses Asimov, Quartet of Woah!, Murdering Tripping Blues, 10000 Russos ou Jibóia, outros entre os quase 60 nomes que compõem um cartaz que, durante dois dias, transformará Valada do Ribatejo numa verdadeira Meca para a música enquanto fuga para outra realidade. Os primeiros concertos têm início às 12h, facto pouco habitual em festivais portugueses, e os últimos começam cerca das 5h. O passe para os dois dias custa 70€, o bilhete diário 38€.
O inglês
Nick Allport nasceu em Chichester, no Sul de Inglaterra, mudou-se para a pequena cidade de Lampeter, no País de Gales, quando tinha quatro anos, acompanhando o pai, trabalhador da marinha mercante. Chegou a Londres aos 18, em 1985, para ver todos os concertos que conseguisse, principalmente os das bandas que idolatrava (Jesus & Mary Chain, Cocteau Twins, The Smiths). Tornar-se-ia criador de fanzines (a Sowing Seeds, título retirado a uma canção dos Jesus & Mary Chain), promotor de concertos e editor discográfico. Na Cheree Records, que co-fundou no final dos anos 1980, editou bandas como Loop, Telescopes, Spacemen 3, Bark Psychosis ou Jonathan Richman.
Quase três décadas depois de chegar adolescente a Londres, encontramo-lo em Valada. Vive numa casa a quatro quilómetros dali com a mulher, uma londrina filha de portugueses, e os dois filhos. A cerca de duas semanas do início do Reverence, Nick Allport está ansioso (nota-se, apesar da bonomia com que fala) e está entusiasmado. Apesar do seu percurso rico no meio musical, nunca se havia metido na organização de um festival e este é à sua medida.
Tudo começou quando, já em Portugal, o irmão o convidou para acompanhá-lo com os Ringo Deathstarr, que agenciava através da promotora Club AC30 (co-fundada por Nick em 2003), ao Fuji Festival no Japão. “O festival acontece num resort de esqui. É uma zona muito verde [naquela altura do ano]. Não choveu mas havia uma neblina húmida constante. Foi uma experiência muito 'tripada'”, conta. Estar ali no centro da acção, a tratar de pormenores logísticos, a ver o concerto e a filmá-lo ao lado do palco, deixou marcas. Lembra-se de pensar na “chatice” que era regressar e não “voltar a ter oportunidade de fazer este tipo de coisas”. Não demoraria.
Pouco depois, os Ringo Deathstarr passariam por Portugal para duas noites no Campo Pequeno, integrados na digressão europeia dos Smashing Pumpkins. Acabaram em casa de Allport, a questioná-lo sobre as possibilidades de um concerto em nome próprio por cá. “Nessa altura, a única pessoa que conhecia no Cartaxo que percebia alguma coisa de música era o Ricardo, o meu optometrista.” Falou com ele, através dele chegou ao Centro Cultural do Cartaxo. Fez-se o concerto. Ficou a vontade de fazer mais. Nick Allport estava de volta, inserido numa realidade completamente diferente. Por exemplo: “Percebi que, além dos grandes concertos e dos festivais, não existe em Portugal a cultura de ir ver bandas ao vivo. Ou melhor, existe, mas numa dimensão reduzida. Levo os Wooden Shijps ao Centro Cultural e estão 200 pessoas. Depois apanhas um concurso de bandas locais e fica a abarrotar”, ri-se.
O Reverence começa a tomar forma quando do concerto dos Psychic TV no Centro Cultural do Cartaxo, em Abril de 2013. Nick Allport a dizer a Genesis P-Orridge, em tom de piada, que da próxima vez que a banda viesse às Cartaxo Sessions tocaria num espaço aberto às portas do Centro Cultural. Era piada, mas a ideia ficou a fermentar.
Entra em cena Pedro Magalhães Ribeiro, que fora responsável pelo Festival Tejo, dedicado à música portuguesa, que se realizou no Parque de Merendas de Valada entre 2001 e 2005. Quando foi abordado por Nick Allport, Pedro Magalhães Ribeiro era candidato à Câmara Municipal do Cartaxo. Hoje é o seu presidente. Através dele, Nick conheceu o espaço onde fala agora com o Ípsilon. As inquietações começavam a ser ultrapassadas. Para Nick, era indispensável contar com o campo de futebol para instalar o palco principal. “Mas nunca pensei que tivéssemos qualquer hipótese de o clube nos deixar utilizá-lo.” O contacto com o presidente do mesmo, Rogério Mendonça, provaria o contrário. “Mostrou-se bastante aberto. Disse-nos logo: ‘Esta vila precisa de animação, precisa que aconteçam aqui coisas’.” Para Nick Allport, esse foi o ponto de viragem. Reuniram-se os colaboradores, fez-se uma lista de bandas, os Hawkwind aceitaram sem regatear o que quer que fosse, os Electric Wizard foram confirmados logo a seguir. A partir daí, "tudo se encaixou”.
Psicadélico? O que é isso?
Eis então o Reverence Festival a apresentar-se em Valada, Meca do psicadelismo no próximo fim-de-semana. Psicadelismo? “Já nem sei o que significa psicadélico hoje em dia”, confessa Nick com uma gargalhada. “Quando comecei a ir ver concertos em Londres havia o indie mais ruidoso, havia os góticos, os Mission e por aí fora, os punks psicadélicos, que seriam os Psychic TV, e depois os Loop ou os Spacemen 3, hoje classificados como psicadélicos, mas que eram então mais alinhados com o rock’n’roll dos MC5. Para mim, o psicadelismo é o rock clássico dos anos 1960 e 1970, são uns The Seeds."
Nick Allport concretiza: “Nunca disse que o Reverence seria um psych-fest [como existe o Austin Psych Fest criado pelos Black Angels, de protagonismo crescente e dedicado inteiramente ao psicadelismo], mas é definitivamente um festival underground, alternativo. Nunca teremos os Coldplay ou algo semelhante. Teremos bandas que adoramos, bandas que terão que ter qualquer coisa ligeiramente errada. Os Die Antwoord [banda de hip-hop sul-africana] seriam perfeitos. Não têm nada a ver com psicadelismo, mas há algo de errado neles que seria perfeito para nós.”
Nick Allport deseja que esta primeira edição sirva para guardar um espaço para o Reverence no roteiro de festivais portugueses, sempre com um “bom contingente de bandas portuguesas”.
A poucos dias do seu início, confessa: “Ainda nem acredito que vá acontecer. É preciso dizer que tudo o que fiz foi contratar as bandas e reunir o dinheiro e a equipa. Nunca organizei um festival e ainda não consigo visualizar como vai ficar tudo aqui."
Nós também não conseguimos imaginar. Mas temos o cartaz na cabeça e a visão do rio. Nunca mais chega a hora de vermos o que só podemos imaginar.