Nas montanhas, as flautas tocavam

Vassili Grossman à procura da Arménia

Foto
O lago Sevan para Vassili Grossman: “um azul quase infinito, num prato de pedra de cores preta, ruiva e castanha”
Bem Hajam! Apontamentos de Viagem à Arménia

, escrito dois anos antes da morte de Vassili Grossman (1905-1964), é um livro bem diferente da sua obra maior,

Vida e Destino

, e de 

Tudo Passa

. Em comum, o facto de terem sido interditados e confiscados pelo KGB (

Vida e Destino

 sobreviveria graças a um microfilme conservado por Sakharov).

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Bem Hajam! Apontamentos de Viagem à Arménia

, escrito dois anos antes da morte de Vassili Grossman (1905-1964), é um livro bem diferente da sua obra maior,

Vida e Destino

, e de 

Tudo Passa

. Em comum, o facto de terem sido interditados e confiscados pelo KGB (

Vida e Destino

 sobreviveria graças a um microfilme conservado por Sakharov).

Grossman nascera na Ucrânia, em Berditchev, uma zona de forte presença judaica (a sua mãe morreria em Auschwitz). Formou-se em engenharia química na Universidade de Moscovo (o pai era químico), mas cedo se dedicaria às letras (a mãe, professora de francês, logo o familiarizou com a literatura). Chegou a trabalhar em minas. E, talvez a conselho de Gorki, escreveu sobre o quotidiano dos mineiros, estilisticamente ainda no quadro do realismo socialista. A sua geração, de resto, aplaudiria Estaline. Desde o princípio da Segunda Guerra Mundial, trabalha para o jornal do Exército Vermelho, Estrela Vermelha, e será nesse contexto que acompanhará a batalha de Estalinegrado, que irá até Berlim e que escreverá sobre as fábricas nazis de morte (O inferno de Treblinka). As suas reportagens como correspondente de guerra são apreciadas pelos soldados. Será porém o testemunho vivencial de dois horrores — o estalinismo, também ele anti-semita (judeus eram os sem-pátria), e o nazismo — que produz uma modificação radical da sua percepção do mundo. 

Poucas obras de valor o regime soviético escreveu sobre a Arménia e os arménios. Bem Hajam! é uma excepção quase mítica, se bem que Mandelstam, outro judeu, antes de perecer num gulag perto de Vladivostok, tivesse até escrito uma Viagem na Arménia.

Durante dois meses, em 1961, Grossman, caído em desgraça, proibido de publicar fosse o que fosse, aceitou deslocar-se à Arménia a fim de traduzir um livro, embora não falasse arménio e nem sequer apreciasse o livro que, vertido literalmente para russo, seria por ele reescrito. Andará vagueando à procura de uma espécie de armenidade que ainda acreditava poder ser sensível. A existir, ela mantinha-se difusa, pneuma inabsorvível. Algo que a dureza encontrada parecia repetidamente negar. Só no fim ela torna a reverberar. O que então escreve são de facto de apontamentos, fragmentos dispersos e disfóricos da realidade, da dureza atravessada, humana e paisagística, narrados com extrema sensibilidade, desconcerto, melancolia, atenção generosa ao outro, ao humano no outro, e até ao animal (há misericórdia pelo olhar da ovelha pronta a ser sacrificada). O estilo é aparentemente leve, discreto, delicado, pontuado por um humor difuso, um ethos meio deceptivo, como se estivesse a ver, a pensar e a viver já num depois qualquer. 

Grossman viaja de comboio, de Moscovo a Yerevan, uma longa viagem. À partida, o companheiro de compartimento tinha a face bem escanhoada; à chegada, os pêlos negros despontavam. Prescinde da orientação daquele, crendo ter alguém à sua espera na gare. Engano seu. O mundo literário local desconhece-o. “Parti de Yerevan tendo nela dois conhecidos: o escritor Martirossian e família, e a tradutora Hortênsia.” Ao mesmo tempo, algumas problemáticas politicas são trazidas. O que ao escritor começa por ser sensível é a paisagem em pedra, a cor da pedra, o tempo nela albergado, até ao pó. As impressões da paisagem rude são recorrentes, entre elas várias considerações: “De manhã, no comboio. A pedra cinzento-esverdeada não se ergue em monte ou penedo, é um esparramado no terreno plaino, um campo pedregoso; o monte morreu, o seu esqueleto espalhou-se pelo campo. O tempo envelheceu e mortificou o monte, e jazem aqui os seus ossos.” Sobre a capital, zela ainda uma grandiosa estátua de 17 metros de Estaline — este já tinha morrido, mas faltavam 30 anos para a queda do muro. Várias figuras são quase afectuosamente convocadas pela pena de Grossman, oriundas de povoações e aldeias de planície e de montanha; múltiplas profissões, diversas fisionomias. 

Podem eleger-se pelo menos três temas em que o autor insiste, sobre as quais se pronuncia mais detalhadamente. Em primeiro lugar, o(s) nacionalismos(s) e a liberdade: “O que junta todas essas diversas individualidades [de soldados ou camponeses a médicos] humanas numa unidade a que se possa chamar nacional (...). A condição principal, prioritária e necessária desta riqueza é a liberdade.” O escritor rejeita, naturalmente, a superioridade de um povo ou de um Estado sobre outro (os apontamentos a este propósito são particularmente interessantes), assim como, paralelamente, declina qualquer afirmação de essências ou supremacias nacionais (“A exaltação nacionalista dos pequenos povos oprimidos surge como um meio de defesa da sua dignidade e liberdade”). Em segundo lugar, cenários da natureza que lhe entraram na alma com uma força absolutamente divina, poeticamente celebrados: a cor do lago Sevan, “um azul quase infinito, num prato de pedra de cores preta, ruiva e castanha”; e, naturalmente, o monte Ararat (hoje na Turquia), que lhe acende a mitologia bíblica, a matriz judaica. Segundo o Génesis, terá sido nele que a Arca de Noé encalhou. Por fim, um casamento numa aldeia, numa zona pobre em que algumas famílias vivem em grutas. Vassili Grossman é convidado, aí vai sentir uma comunhão, uma real proximidade com o povo arménio. Vem à tona uma espécie de leit-motiv de Bem Hajam!: a contiguidade entre a tragédia dos judeus e a tragédia dos arménios, os seus genocídios e diásporas. Martirossian traduz, o carpinteiro do kolkhoze dirige-se ao escritor: “Contou-me como foram mortos os seus camaradas judeus. Falou da sua compaixão e amor pelas mulheres e crianças judias que morreram nas câmaras de gás de Auschwitz. Disse que tinha lido os meus artigos escritos na guerra onde se falava dos arménios, e que pensou: um homem cujo povo passou por tantos sofrimentos escreve sobre os arménios. O velho gostaria que um filho do povo arménio sofredor escrevesse sobre os judeus. Era por isso que erguia o seu copo de aguardente e brindava.”