Rogério de Carvalho encena acreditando que as palavras salvam vidas
Um modo desarmante de contar a história da África do Sul segregacionista sem o medo de a olhar de frente.
A resposta de Rogério de Carvalho faz-se a partir de uma construção dialogante entre a musicalidade das palavras e a violência do que dizem, entre a liberdade da imaginação e o confinamento dos corpos na aridez do espaço, entre a auto-ficção instituída pela reconstrução dos factos e a projecção sobre a realidade contemporânea. Das fissuras da voz, do corpo e da escuta nasce um espectáculo que nos mergulha na África do Sul segregacionista e nos mostra a falência moral, social e política de um país.
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A resposta de Rogério de Carvalho faz-se a partir de uma construção dialogante entre a musicalidade das palavras e a violência do que dizem, entre a liberdade da imaginação e o confinamento dos corpos na aridez do espaço, entre a auto-ficção instituída pela reconstrução dos factos e a projecção sobre a realidade contemporânea. Das fissuras da voz, do corpo e da escuta nasce um espectáculo que nos mergulha na África do Sul segregacionista e nos mostra a falência moral, social e política de um país.
Publicado em 1985, três anos depois da libertação do autor, acusado de conspiração e transferido de prisão em prisão durante oito anos, The True Confessions of an Albino Terrorist é um relato que recusa permanentemente a violência da exposição, usando-se da palavra para descrever um outro modo de agir perante a incompreensão e a injustiça. É, no levantamento que vai fazendo, à escala do indivíduo, um retrato da África do Sul que ainda hoje é difícil de perceber. É, por isso, uma tentativa de compreender o porquê e o como do que aconteceu ao autor. Mas é, sobretudo, uma tentativa de construir modos e defesas para continuar a viver depois de tudo o que se passou, perguntando constantemente como o fazer.
Num posfácio ao texto, Breyenbacht explicava que o livro “havia tomado forma da urgência obsessiva, nas primeiras semanas e meses após a sua libertação, de falar, falar, falar, contar a minha e outras histórias”. Às vezes gostaríamos de acreditar que As Verdadeiras Confissões... é um trabalho de ficção e quando a certo momento um dos actores diz que o que acabou de revelar era inventado, respiramos de alívio. Por quanto tempo se conseguem aguentar os relatos de violência física e psicológica, de contra-informação e de manipulação dos destinos dos outros? Mas depois a culpa por o termos pensado, perante a verdadeira dor a que assistimos, incomoda-nos.
O que a encenação e a dramaturgia de Rogério de Carvalho fazem é libertar-nos dessa culpa. É usar, e usar-se, do teatro como mecanismo reestruturante da realidade, tornando-a matéria com a qual nos podemos envolver, e sobretudo, reflectir. O gesto de divisão do discurso entre os sete actores, indiferenciado sexo, raça e idade, vem daí, de ir para lá da transformação do individual em colectivo.
É um olhar que se organiza a partir de uma crença profunda de que a primeira partilha do potencial transformador da palavra ocorre entre os corpos que a devem dizer perante os corpos que a escutam. Há um gosto pela palavra que reconhece o medo de a pensar, depois o cuidado de a escrever, e, por fim, o perigo de a dizer. Mas, afastando esse medo através de uma disposição que recusa artifícios e nos mostra, em todo o seu esplendor, a relação física que existe entre o pensamento e o som, o trabalho que Rogério de Carvalho vai minuciosa e delicadamente construindo devolve à palavra o seu potencial de transformação.
O texto constrói-se num vaivém de memórias, que, concentradas no olhar de quem se sente ultrapassado pela própria realidade, encontra naquilo que vê cumplicidades, paralelos ou antagonismos. A crueza das palavras nunca abandona uma poética emocional. No momento em que, da prisão, segue para o tribunal que lhe confirmará a descrição, as palavras atropelam-se não de entusiasmo mas de medo. Um medo construído na descrença, na inverosimilhança, na dúvida ao qual a encenação de Rogério de Carvalho se dedica num trabalho com os actores que vai muito para lá da interpretação. A cada um deles é entregue mais do que a tarefa de narrar, transformando a sua presença numa ritualização do próprio acto de interpretar. Cada um deles, no modo como vão deixando expostas as linhas que cosem a memória evocada pelo texto, vão-se deixando guiar por uma encenação que pensa as implicações da presença de um corpo num espaço. Uma presença que começa por ser física mas que depressa se percebe que se estrutura a partir do tempo e da música, do movimento e da imaginação. É, afinal, um trabalho de construção sobre aquilo que é invisível mas que dá forma ao que só podemos intuir. É, afinal, um modo desarmante de contar uma história sem o medo de a olhar de frente.