Língua bífida
O aparente servilismo de hoje será apagado pelo sucesso das inflecções a que a posição de Draghi vai obrigar a Comissão Europeia.
A Europa hoje divide-se entre os que apenas leram o discurso escrito de Mário Draghi e aqueles que conheceram o que ele disse para além do texto. O ponto essencial respeita aos riscos de uma declinante e prolongada inflação para baixo de 2%. O texto inicial menciona o problema sem anotar riscos: “A inflação tem seguido uma tendência declinante desde cerca de 2,5%, no verão de 2012, para 0,4% mais recentemente. Tendo isto em conta, o Conselho de Governadores (do BCE) terá que usar todos os meios não convencionais para garantir que as expectativas de inflação têm que ser solidificadas no médio e longo prazo” (tradução livre deste autor). No final da primeira frase, Draghi intercalou uma “bucha”, enumerando diversas razões para a tendência declinante da inflação as quais já havia abordado há um mês atrás: baixa de preços de alimentação e combustíveis, impacto da subida das taxas de câmbio, riscos geopolíticos do conflito Rússia-Ucrânia e naturalmente o ajustamento dos preços relativos que ocorreram nos países em dificuldades, acompanhado de elevado desemprego. Muitos destes efeitos, mas não todos, se desvanecerão por serem temporários. Tal como afirmara há um mês, se este período de baixa inflação durar muito tempo, aumentará o risco de instabilidade de preços. O problema está em que o modelo usado para estimar a inflação no médio prazo, atira a inflação para abaixo dos 2%, valor que se vai agravar no curto prazo. Daí a promessa de usar todos os instrumentos ao seu dispor para evitar este perigo. Como foi referido por vários comentadores, Draghi não estava apenas à procura de desculpas para a baixa inflação. Ele estaria a reconhecer uma real deterioração que não pode ser apenas explicada pela situação na Ucrânia ou pela baixa dos preços alimentares. Como Rui Peres Jorge escreveu no blogue do “Negócios”, Draghi partiu da análise dos percursos quase opostos do desemprego nos dois lados do Atlântico, afirmando que a procura agregada, estimulada pelas políticas monetária e orçamental é essencial para reduzir o desemprego na Europa; que a crise das dívidas soberanas se deveu em grande medida ao facto de o banco central não actuar como credor de último recurso dos governos, ao contrário do que acontece no Japão e nos EUA; remata com a recomendação de políticas orçamentais menos restritivas ao nível da Zona Euro, afirmando haver espaço para tal.
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A Europa hoje divide-se entre os que apenas leram o discurso escrito de Mário Draghi e aqueles que conheceram o que ele disse para além do texto. O ponto essencial respeita aos riscos de uma declinante e prolongada inflação para baixo de 2%. O texto inicial menciona o problema sem anotar riscos: “A inflação tem seguido uma tendência declinante desde cerca de 2,5%, no verão de 2012, para 0,4% mais recentemente. Tendo isto em conta, o Conselho de Governadores (do BCE) terá que usar todos os meios não convencionais para garantir que as expectativas de inflação têm que ser solidificadas no médio e longo prazo” (tradução livre deste autor). No final da primeira frase, Draghi intercalou uma “bucha”, enumerando diversas razões para a tendência declinante da inflação as quais já havia abordado há um mês atrás: baixa de preços de alimentação e combustíveis, impacto da subida das taxas de câmbio, riscos geopolíticos do conflito Rússia-Ucrânia e naturalmente o ajustamento dos preços relativos que ocorreram nos países em dificuldades, acompanhado de elevado desemprego. Muitos destes efeitos, mas não todos, se desvanecerão por serem temporários. Tal como afirmara há um mês, se este período de baixa inflação durar muito tempo, aumentará o risco de instabilidade de preços. O problema está em que o modelo usado para estimar a inflação no médio prazo, atira a inflação para abaixo dos 2%, valor que se vai agravar no curto prazo. Daí a promessa de usar todos os instrumentos ao seu dispor para evitar este perigo. Como foi referido por vários comentadores, Draghi não estava apenas à procura de desculpas para a baixa inflação. Ele estaria a reconhecer uma real deterioração que não pode ser apenas explicada pela situação na Ucrânia ou pela baixa dos preços alimentares. Como Rui Peres Jorge escreveu no blogue do “Negócios”, Draghi partiu da análise dos percursos quase opostos do desemprego nos dois lados do Atlântico, afirmando que a procura agregada, estimulada pelas políticas monetária e orçamental é essencial para reduzir o desemprego na Europa; que a crise das dívidas soberanas se deveu em grande medida ao facto de o banco central não actuar como credor de último recurso dos governos, ao contrário do que acontece no Japão e nos EUA; remata com a recomendação de políticas orçamentais menos restritivas ao nível da Zona Euro, afirmando haver espaço para tal.
O efeito destas declarações foi quase imediato, em extremos: num extremo, Arnaud de Montebourg, ministro francês da economia, criticou as políticas do seu governo alinhadas com a obsessão germânica pela austeridade. No outro extremo, o ministro alemão das Finanças, Schauble, afirmou que, por bem conhecer Draghi, considerava que as suas palavras haviam sido mal interpretadas. Logo seguido por quem? Pela nossa inefável ministra das finanças, pois então! No meio dos extremos, os mercados rejubilaram e deram um salto em frente.
Foram necessários quatro longos anos para que a Europa comece a reconhecer os erros da sua política pró-cíclica: se o doente não melhora, corta-se na alimentação e nos remédios; quando recuperar terá melhoras maravilhosas! As curvas do desemprego que Draghi projectou na sua conferência são eloquentes por reflectirem as políticas opostas da Europa face aos EUA. Levam-nos agora à proximidade absurda da deflação. Se nela cairmos, será tudo bem pior para os países pesadamente endividados, que verão a sua receita fiscal e de exportações diminuir, para cobrir encargos da dívida que não acompanham a baixa dos preços. Vejamos os factos recentes: Schauble resiste a aceitar os erros seus e de outros; se o conflito na Ucrânia se mantiver ou até piorar, a economia germânica virada para leste declinará. Vai demorar ainda algum tempo, mas acabará por reconhecer o oximoro. Terá que aumentar salários, importações e investimento; terá que aceitar que a União Europeia adopte políticas análogas, isto é, mais flexibilidade do “Semestre Europeu” perante o défice, um fundo europeu de investimento para uso das PME, relançando a economia e o emprego e a operacionalização rápida do programa Connecting Europe (redes de energia, redes de caminhos de ferro e estradas, banda larga e menos dispendiosas telecomunicações). Pelo meio, é difícil entender Maria Luís: puro servilismo a Schauble, de quem se diz estar em graça, consistência com o passado, ou real convicção científica/ideológica? Seja qual for a razão, o certo é que ela beneficiará sempre da boleia futura. O aparente servilismo de hoje será apagado pelo sucesso das inflecções a que a posição de Draghi vai obrigar a Comissão Europeia. Liberta da irrelevância de Barroso, esta já se pronunciou antes de Draghi, pela voz de Juncker. A Europa vai mudar. Poderemos ter, agora, uma verdadeira política anti-cíclica.
Falta referir a desgraça que é hoje a política francesa: eleito para nada mudar e tudo manter, sobretudo a dispendiosa administração descentralizada, Hollande depressa reconheceu que nada poderia continuar como dantes. Governos fracos intercalados pelo escândalo pessoal, conduziram ao híbrido do primeiro governo Valls. Draghi, lá do Wyoming profundo, em Jackson Hole, deu argumentos a Montebourg, mas não os suficientes para substituir Valls. Nenhum presidente, por mais fraco que esteja, aceita um governo dividido na praça pública. Hollande emprestou a Valls o economista da presidência para substituir Montebourg. O PS francês partiu-se, ao ponto de o Presidente ter adiado o voto de confiança parlamentar no novo governo. Todos ralham e ninguém tem razão. E a casa vai tendo cada vez menos pão, ou pelo menos um défice que não recua. Não tem razão Montebourg, enquanto a França não conseguir fazer, entre outras, a reforma da administração descentralizada eliminando os conselhos gerais; e enquanto não reduzir o peso da administração central que pouco contribui para o respirar da economia. Não tem razão Valls em alinhar num servilismo tardio a Merkel, tentando forçar uma reforma para a qual não conquistou consenso. E assim temos a segunda potência económica europeia completamente bloqueada.
Se a França não estivesse prenhe de contradições, se o Reino Unido não se encontrasse a braços com uma violenta cisão na sua direita com o populismo do centro e até da esquerda a alinhar com o Partido da Independência (UKIP), se a esquerda italiana já tivesse concretizado ao menos um quarto do que prometeu, se o PSOE em Espanha não estivesse reduzido aos mínimos, sugado pelos pequenos partidos, qualquer que fosse o governo nosso, estaríamos protegidos. Não estamos. Pelo contrário, a continuação do servilismo só nos prejudica. Os répteis têm língua bífida por serem surdos, para captarem as vibrações da proximidade do perigo. Em geral, a espécie humana nem é surda nem cega.