A turistificação de Lisboa ainda pode crescer

Lisboa está na moda. Há um boom do turismo. A taxa de crescimento das dormidas estrangeiras é superior a 15%. Quando é que o boom começou? Que benefícios traz a “turistificação” de Lisboa e que problemas coloca? Quais os desafios que o turismo da cidade enfrenta a partir de agora? Que estratégias seguir? “Temos de nos preparar para não matar a galinha dos ovos de ouro.”

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Subimos as escadas esguias, como muitas de prédios no Príncipe Real, até ao terceiro andar. O chão cobre-se de pó, trabalhadores colocam azulejos brancos na parede de uma futura casa de banho. Daquela que será em breve uma varanda vê-se o rio, os tejadilhos lisboetas, o céu. Grace Yacoub, libanesa, 52 anos, mostra entusiasmada o seu apartamento, onde irá receber turistas. “Se eu gosto de Lisboa, significa que outras pessoas também vão gostar”, explica no café do jardim do bairro, quando lhe perguntamos porque decidiu investir na cidade.

Designer, Grace viaja imenso. Vive no Dubai, já viveu em Nova Iorque, no Cairo, em Frankfurt. “Lisboa tem o equilíbrio certo. É culturalmente interessante, autêntica. Tem muita história, tem as quatro estações do ano. É uma cidade jovem, há uma mistura de gerações, gosto disso e sinto que para os outros é igual: vejo imensos turistas em todo o lado.”

Ela quer atrair turistas de topo, por isso escolheu boas localizações: além do apartamento no Príncipe Real, comprou outro, maior, no Chiado. “Há muitos hostels para pessoas que têm menos dinheiro, e trazem um determinado tipo de turismo, há hotéis de luxo, mas não há muitos apartamentos de luxo”, analisa.  

Por estes dias, a libanesa ainda é uma turista em Lisboa, mesmo que além do mais esteja à procura do talento português na sua área, porque “é preciso investir nas pessoas e exportar as suas capacidades sem sair de Portugal”. Tem comido em restaurantes, passeado pela cidade e conhecido a forma de o país funcionar enquanto investidora. Procurar e comprar casa foi fácil, diz.

Pelas contas do Instituto Nacional de Estatística, ela foi uma das que contribuíram para o aumento da taxa de crescimento de 15,3% de dormidas de turistas estrangeiros em Lisboa no primeiro semestre de 2014 (quase 4 milhões de dormidas). O aumento da taxa é um valor “extraordinário”, diz o presidente do Turismo de Portugal, João Cotrim de Figueiredo. Para se ter uma ideia, de 2012 para 2013, este aumento foi de 8,5%.

Portanto, para quem anda nas ruas do centro de Lisboa e faz fintas nos passeios, nos autocarros, nas lojas, a sensação de que a cidade se encheu de turistas confirma-se pelos números. Aos vários prémios que tem ganho nos últimos anos­ — como os “Óscares do turismo” World Travel Awards para destino número um de “city-break”, 2.º melhor destino da Europa, 4.ª cidade mais bonita do mundo — somam-se os milhões de visitantes que deverão aumentar as cerca de 10 milhões de dormidas na cidade só no ano passado.  

Portugal é dos países em que o turismo vale mais para a economia. Um estudo do Conselho Mundial de Viagens e Turismo, com análise do impacto económico do sector em 184 países baseado em dados de 2013, revela que o contributo para o Produto Interno Bruto (PIB) é de 5,8% em Portugal, na Europa é de 3,1% e no mundo 2,9%. O país tem-se vendido como destino de sol e praia, mas os recentes prémios e projecções de Lisboa e Porto nos media internacionais têm contribuído para mudanças na imagem. O turismo mexe na economia, mas mexe também na cidade. Grace Yacoub está longe de ser um caso original no investimento do mercado imobiliário para estrangeiros — mas já lá vamos. 

Serão coisas a mais para Lisboa?

Agosto, para os lisboetas, deixou de ser aquele mês em que era fácil circular, estacionar o carro, arranjar lugar em restaurantes sem marcação. Há qualquer coisa a mudar — e rapidamente — na cidade onde circulam agora os tuk tuks que se viam na Tailândia e os autocarros anfíbios que podiam ter vindo de Boston. Assiste-se à criação de segmentos como o turismo solidário, que implica fazer voluntariado, e à expansão de lojas de souvenirs, restaurantes, cafés, vemos marcas como “Chiado” a espalharem-se por lojinhas e cafés de bairros contíguos que aproveitam o marketing à volta dos nomes fortes.

Em sítios como Alfama, há turistas de porta em porta, novas lojas que abrem, apartamentos para alugar em cada prédio, moradores que vendem as suas casas, vizinhos que já não conhecem vizinhos, mas que gostam de ver as ruas animadas com jovens.

E, no entanto, as taxas de ocupação das unidades hoteleiras ainda podem subir: os últimos dados de Junho dizem que em Lisboa não chegava aos 60%. Há também as dormidas em apartamentos particulares através de sites como o Airbnb, que em Julho tinham 15.700 imóveis registados em Portugal, mais 85% do que no período homólogo de 2013.

Serão coisas a mais para uma cidade tão pequena como Lisboa? Com cerca de 65 hostels, o que representa cerca de 4 mil camas, a cidade está com excesso deste tipo de alojamento, considera Rita Rocha Brito, 27 anos, sócia-gerente do Lisb’on Hostel no Chiado. “O mercado está lotado”, analisa. “A nossa cama em camarata representa um tipo de hóspede particular. Este boom de turismo pode gerar a sensação de investimento e de que há espaço para todos mas distribuído por muita gente não é assim tão boom. A oferta está a crescer mais do que a procura”, diz.

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Tuk tuks à porta da Sé de Lisboa Rui Gaudêncio

Rita Rocha Brito defende que o grande desafio, para ela, é uniformizar o turismo ao longo do ano, isto é, subir os números em meses mais fracos, como no Inverno. “Portugal precisa muito da alavanca do turismo”, lembra. “Ou vamos defender, fechar as portas e manter a casinha como sempre, ou abrimos as portas e vamo-nos adaptando. Não sei muito bem onde se vai encontrar o equilíbrio, mas todos estes prémios e o esplendor que Lisboa está a ter deve ser amadurecido, porque se criaram muitos negócios que não são sustentáveis a longo prazo. Deve-se ter consciência de que tudo isto é muito vulnerável e há muitos factores influenciadores.”

A um dia de semana, passam turistas com os seus trolleys ou mochilas enormes às costas em Alfama. Três franceses sentados à porta do apartamento que alugaram fumam um cigarro e admiram um bairro invulgar, que preserva a autenticidade e alma portuguesas, como diz Cristina Pereira, 39 anos, francesa, filha de emigrantes. Ela defende o fim dos tuk tuks e dos carros no bairro — a nossa conversa é interrompida de minutos a minutos por causa dos veículos que passam na rua estreita em que estamos.

Um pouco mais acima da colina, na zona da Sé, os turistas atropelam-se nos passeios estreitos, o trânsito complica-se, os miradouros atafulham-se de gente, o eléctrico 28 nem pára em algumas paragens onde esperam uns 30 passageiros (nos primeiros sete meses do ano, circularam 2,53 milhões de passageiros no 28, dados da Carris; Pedro Dias, condutor há quase 20 anos, assegura que 95% deles são estrangeiros).

A fugir das ruas mais movimentadas do Castelo estão os nova-iorquinos Brady Welch, 30 anos, realizador e produtor, e Nazy Karimi, 28 anos, assistente de David Byrne. Estiveram em várias cidades, primeiro em Espanha, e desembarcaram em Lisboa há duas horas. “Trabalhamos em artes, nas áreas criativas, e as pessoas falam de Lisboa, do Porto, há artistas internacionais que vivem cá…”, explica Brady. “Muitos turistas, muitos sítios para comer, portas pequenas, e está calor”, descrevem assim Lisboa. “É linda. Estas ruas muito estreitas que não vão dar a lado nenhum são muito charmosas.”

Os dois fogem a sete pés dos turistas, até porque se descrevem como “exploradores”, diz Brady numa frase que termina com tom de suspense. Querem fugir de tudo o que tenha filas, de multidões, procuram as feiras da ladra, os eventos culturais. Brady continua. “A grande mais-valia de Lisboa é ser barata; todas as grandes cidades como Paris, Londres, Nova Iorque são extremamente caras, e Portugal tem tudo o que se quiser para todo o tipo de pessoas. Digo à Nazy que Portugal junta as boas coisas da Europa — pode-se beber a água da torneira, o duche é quente, os transportes são modernos e pontuais — com as melhores coisas da América Latina — a comida é maravilhosa, é barato, as pessoas são muito simpáticas.” Se se sentarem num restaurante, a atitude vai ser: “‘Ajudem-nos a perceber a vossa cidade’ mais do que ‘ajudem-me a sentir o mais confortável possível’”, resume Nazy.  

Mas, ironicamente, não podiam estar num sítio mais turístico. O Castelo de São Jorge é o lugar mais visitado por turistas: foram em média cinco mil visitantes diários entre 1 e 17 de Agosto — receberam quase 700 mil nos primeiros sete meses, uma subida de mais de 20% relativamente ao mesmo período de 2013, ano que terminou com mais de um milhão. A fila à porta da bilheteira faz um caracol, e é assim todos os dias, descreve uma das vizinhas. “Não é bom para mim, mas é bom para a economia”, diz.

Os hipsters americanos não são os únicos a fugir das massas. Quem passou por Santa Apolónia e olhou para um dos prédios em frente da estação pode ter visto a instalação da organização espanhola Left Hand Rotation, que tem feito umas intervenções em Lisboa e está a filmar um documentário sobre turismo. No alto lê-se a palavra “Terramotourism”, um trocadilho com o terramoto de 1755 e aquilo a que chamam “invasão” do turismo.

Estes activistas que não querem ser identificados pessoalmente dizem não ter nada contra o turismo, mas têm um papel crítico sobre a gentrificação e turistificação de Lisboa. São contra a gestão da cidade “só para os turistas”, porque isso reduz a complexidade da vida urbana, promove a privatização do património arquitectónico para fazer hotéis, o deslocamento do comércio tradicional e da população e leva ao abandono das zonas não turísticas da cidade. “A crise legitima o processo de turistificação de Lisboa sob o modelo Barcelona e não é a melhor solução: os empregos no sector turístico são precários, têm baixos salários e contratos temporários.” Quem nos fala é um espanhol, que vive num dos bairros históricos de Lisboa há quatro anos e tem visto a cidade transformar-se rapidamente.

Disneylândia à portuguesa

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Miguel Manso

Foi também rápido o salto que as zonas da Sé e da Baixa, desde sempre lugares turísticos, deram nos últimos anos, observa o professor universitário e especialista em imagem Sérgio Mah. Há cinco anos que vê a Sé e o Largo de Santo António da sua janela. “A diferença radical” da circulação de turistas aconteceu nos últimos dois anos. “A cidade está a abrir-se ao turismo e pode recuperar alguma actividade económica no centro”, analisa na sua sala de estar. “O centro era uma zona desqualificada. Os primeiros gentrifiers encontraram uma realidade ainda mais dissonante. No último ano, tornou-se mais problemático, porque [o turismo] se tornou massificado.”

Sinal de que começa a haver um excesso: quando os turistas se irritam com os próprios turistas. “Há aquela reacção típica do excesso de tráfego na zona, dos carros e pessoas no passeio e é nessa altura que percebemos que é preciso interferir e regrar este fenómeno.” É absurdo, exemplifica, que sejam permitidos autocarros de turismo à porta da catedral, algo que “tem um efeito cadeia” no tráfego da zona. Mas acrescenta: “Não estou a dizer que tenho uma atitude de irritação em relação ao turismo. Quem vive no centro não pode ter o mesmo juízo de valor do que quem vive numa zona residencial. A partir do momento que o centro se tornou mais visitável, é preciso acompanhar o fenómeno e reagir em proporção.”

Mah nota que, na verdade, o centro de Lisboa é “pouco confortável para se estar”: “Ninguém vai relaxar para o meio da Praça do Comércio, da Praça da Figueira ou da Rua Augusta, são sítios de passagem onde as pessoas não param. A economia da cidade precisa destes turistas, é preciso ter um projecto para assumir que o espaço do centro da cidade tem a função de lazer para receber estas pessoas.” A par disso, é essencial regular o trânsito, criando cinturas de estacionamento fora do centro, por exemplo, e subir os valores dos parquímetros. 

No coração de uma zona que se vem modificando pelo turismo com as novas lojinhas de souvenirs e mercearias, novos cafés, novos negócios, tuk tuks e segways, Sérgio Mah diz que a “sensação é de que [isto] está a ser transformado num Luna Park, numa Disneylândia à portuguesa”. Mas acrescenta: “Não me importo de fazer parte do boneco, agora é preciso regular. O país vive uma situação dramática e prefiro que haja mais turistas do que ver a forma desoladora como há um comércio que está a desaparecer.” A solução, porém, não pode ser “tudo ligado ao turismo para vender cálice do vinho do Porto, a loja de chineses e indianos ou as multinacionais”. “O centro deve ser um sítio diversificado, multicultural, com diferentes níveis e tipologias de ocupação e não deve ter apenas comércio selvagem para vender o máximo possível. É preciso torná-lo um sítio mais agradável para os próprios lisboetas, que será necessariamente melhor para os turistas.” 

Há alguns anos que Grace Yacoub aluga os seus apartamentos em Londres e Cannes. “Quando venho a Lisboa, sinto a cultura local e é disso que mais gosto. Em Cannes, a maioria é estrangeiro, porque a cidade se tornou muito cara. Os portugueses têm de pensar nisso, se se tornar muito cara para os portugueses viverem, perde-se o equilíbrio.” Porém, Lisboa não está, nem de perto, nem de longe, com tantos turistas como Londres, diz, onde “quase não se vêem ingleses” (atraiu 16,8 milhões em 2013, por exemplo, quase o mesmo que em Portugal). 

Desde que fez o investimento que viu muitos prédios a serem renovados no Príncipe Real. Ela é, na verdade, exemplo de outro fenómeno indirectamente ligado ao turismo: o investimento estrangeiro em imobiliário que deu novo fôlego a este mercado.

De acordo com o presidente da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal, Luís Lima, 14% do investimento no imobiliário nos primeiros três meses do ano foi feito por estrangeiros — não havia dados até agora. Em valor, 70% do investimento estrangeiro é feito em Lisboa e no Algarve — e Lima prevê um aumento no segundo trimestre. 

Para agências como a Remax do Príncipe Real, por exemplo, as vendas este ano distribuem-se assim: “Em dez vendas, 9 é a estrangeiros”, refere o dono-gerente João Bordalo. “Estamos a chegar ao final de Agosto com o mesmo que vendemos o ano passado todo” — e a época alta do imobiliário são os últimos meses do ano, refere.

Muitos deles atraídos pelos vistos Gold e pelo regime fiscal que isenta de impostos os reformados da União Europeia, os estrangeiros investem no centro da cidade e muitos recuperam casas para depois as alugar a turistas (há, de resto, um boom de franceses a investir em Lisboa, refere Bordalo, mais do que chineses). “A última reunião de brokers da Remax foi há dois meses e a rede tinha aumentado 34 a 35% as vendas.” Os vistos Gold trouxeram desde o início de 2013, até final de Julho, 750 milhões de euros ao mercado imobiliário — no total de 817 milhões; foram concedidas 1360 vistos, números fornecidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Um requisito destes vistos é fazer um investimento de 500 mil euros num imóvel.

“É inimaginável o potencial de Portugal. As pessoas ficam de boca aberta”, descreve João Bordalo. É verdade que as zonas de investimento são muito focalizadas no Castelo, Alfama, Baixa, Chiado, São Paulo, Santos, Lapa, Príncipe Real e que se corre o risco de os preços ficarem inflacionados nestas zonas (que já estão). Mas o impacto tem sido positivo, considera: casas a cair que estão a ser recuperadas, prédios que estavam devolutos ficam habitados, fachadas são pintadas. Tudo isto “vai criar muito mais vida, postos de trabalho, etc”. No fundo, “Lisboa estava esquecida, e agora estão a criar-se situações para passar a estar no mapa, como outras cidades”, conclui.

Como se explica o boom em Lisboa?

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Miguel Manso

Autenticidade, identidade, beleza: se há palavras que os turistas que encontramos repetem sobre o que procuram e gostam em Lisboa são estas. Sentados com um copo de vinho e um prato de queijos e enchidos no renovado Mercado da Ribeira Time Out, os franceses Corinne Dessain e Hamidat Sadrine contam que “Portugal está na moda”, “Lisboa está na moda”, “todos os franceses vêm a Portugal”. “Preferimos sítios com menos turistas, mas a cidade não pode ser não turística porque é linda. Mas se a tornarem demasiado turística vão ficar artificiais”, diz o bem-disposto Hamidat, que tinha ido no dia anterior ao Seixal e adorou. “Prefiro dar o meu dinheiro a Portugal do que a outros países — vocês precisam de dinheiro.”

Todos os dias, quando abre a janela, Patrícia Maciel, 32 anos, vê o telhado do lugar onde Corinne e Hamidat estão sentados. Se os sentássemos à mesma mesa, a tradutora e professora de Alemão talvez lhes dissesse que aquela zona se tem transformado bastante. Mora ali há um ano, viu o mercado e pequenos cafés-restaurantes à volta abrirem, num extremo que vai do gourmet à tasca, queixa-se. “Passo numa data de sítios aqui à volta e não me apetece entrar. São para os turistas. E mesmo aqui no Mercado da Ribeira, apesar de ter imensa variedade e a comida ser boa, é o equivalente a um centro comercial. Lisboa está-se a tornar uma cidade para turistas.”

Hoje abre a porta e tem de pôr os headphones por causa do barulho. Na mercearia da rua, o dono não quer responder a perguntas e já não pode com máquinas fotográficas a entrarem-lhe pela loja adentro sem pedir licença nem dizer “boa tarde”. Patrícia desabafa: “Se soubesse o que sei hoje, talvez não tivesse vindo para aqui. Vim porque me agrada a zona, estar perto de tudo, e acabei por estar demasiado perto.” Do que gostava? “De ter espaços mais acessíveis, menos trendy, para ler um livro e comer qualquer coisa sem ter de gastar 7/8 euros numa sandes de salmão.”

Lisboa precisa de turismo, diz. E ela não é contra. Mas naquela zona específica identifica um risco: a perda da identidade. “O Cais do Sodré sempre teve esta fama decadente e boémia e isto é uma característica, tem graça.”

Tudo aponta para que mais sítios se transformem na cidade por conta do turismo. As projecções a longo prazo da Organização Mundial do Turismo mostram que o mercado global nos próximos dez anos deve crescer 4% — a Europa 5% e o Mediterrâneo 6%, lembra João Cotrim. A taxa de crescimento actual em Lisboa está muito acima desta média.

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Turismo no Terreiro do Paço Nuno Ferreira Santos

Como se explica o boom em Lisboa? Com o investimento em campanhas de turismo — que aumentaram 300 a 400%, diz o presidente do Turismo de Portugal. Com os acontecimentos no Magrebe, que deslocaram turistas daquela zona, com o trabalho institucional da Associação de Turismo de Lisboa (o presidente estava de férias e não conseguimos entrevistá-lo), com a facilidade de acesso de Lisboa, “com a relação qualidade-preço imbatível (a qualidade da oferta turística é elevadíssima e os preços são muito concorrenciais)”, e com “as características dos portugueses, que recebem tão bem e geram um passa-palavra”.

Fernando Medina, vice-presidente da Câmara de Lisboa, nota que a cidade beneficiou das tendências da indústria, sendo uma delas o facto de as pessoas passarem períodos mais curtos de férias e se deslocarem mais vezes. O impacto do turismo é positivo: na reabilitação urbana, na requalificação por via dos hotéis no Chiado, na Baixa, na Graça, “áreas muito beneficiadas do ponto de vista da reconstrução”. “Na lógica das microcentralidades, tem havido um investimento grande no espaço público” — no Terreiro do Paço, Ribeira das Naus, nos miradouros e jardins — “muito importante do ponto de vista turístico”. “O turismo tem um impacto decisivo na vida da cidade. A recuperação da Av. da Liberdade tem muito a ver com uma resposta ao sector do turismo e a segmentos que se estão a desenvolver no próprio turismo. E depois todas as actividades que se criam à volta. Toda a cidade vibra e está mais animada, até com espaço para novas actividades que são geridas por habitantes”, defende. Medina acredita que ainda há espaço para crescer — “a nossa ambição não tem limites” — e ainda não vê problemas na circulação de turistas em determinados bairros. “Fico até muito satisfeito de ver que há certas zonas da cidade que começam a ser visitadas, como a Mouraria. A nossa estratégia é permitir que se possa trazer mais gente e criar as condições para que se mantenha a oferta de alto valor.” E continuar a intervenção no espaço público, com requalificação de zonas como o Campo das Cebolas.

O novo terminal dos cruzeiros, que deverá estar concluído em 2015 em Santa Apolónia, “vai duplicar a nossa capacidade de turistas por barco: estamos nos 500 mil, vamos chegar ao milhão por ano”, afirma. Vai também criar a possibilidade de esses turistas dormirem na cidade, algo que hoje não acontece (ficam nos barcos).

O actual crescimento de quase 15% de dormidas de estrangeiros em Lisboa “não é fácil de manter”, observa, por seu lado, o presidente do Turismo de Portugal. E a questão é, até: será desejável? “Se queremos que a indústria de turismo continue a ser motor de desenvolvimento económico, temos de nos preparar para não matar a galinha dos ovos de ouro. Em Lisboa especificamente, é preciso criar as condições para que a oferta volte a ter níveis de gasto médio mais elevado do que tem hoje. Para a economia, é irrelevante ter muitas pessoas a gastar o mesmo que poucas e do ponto de vista da infra-estrutura é preferível que o contributo para a economia não se faça à custa só da quantidade — Lisboa tem de se qualificar.” Mas como?

A cidade mais barata

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Daniel Rocha

César Gonçalves, da consultora PWC, autor do estudo sobre o potencial de crescimento dos hotéis de quatro e cinco estrelas em cerca de 20 cidades europeias, refere que em Lisboa há a necessidade de se gerir o preço. A cidade foi a que apresentou o maior potencial de crescimento: “Estamos a crescer em ocupação, mas o preço não está a ser fácil de gerir. É dos poucos destinos em Portugal em que a procura tem sido compatível com o aumento da oferta. Se aumentar de forma significativa, estamos a criar um problema à rentabilidade do produto, ou seja, se pusermos muitos hotéis no mercado, o preço baixa, se o preço baixa, temos menos rentabilidade e o futuro fica em causa.”

É justamente de preços que fala o publicitário e especialista em marcas Carlos Coelho. Os recentes prémios de turismo trouxeram “o orgulho de acreditar que somos bons, a possibilidade de dar o passo em frente que é qualificar”, diz. Mas critica Lisboa aparecer “sempre como a cidade mais barata”. “Se de facto é tão bonita, se nos equiparamos às mais bonitas e melhores cidades do mundo, então vejo com muita preocupação que o sucesso de Lisboa se faça com preços muito mais baixos do que qualquer dos outros concorrentes directos; se pensarmos bem, estamos a encher a nossa cidade, a encher os museus e estragar a nossa calçada com preços muito baixos.” Por isso, desafia a que o “produto seja mais bem colocado”. 

Há espaço para tudo, mas deveria haver espaço para mais hotéis de luxo, até porque, sendo Lisboa pequena, “não podemos ser um destino de quantidade, precisamos de um tipo de turismo altamente qualificado”. “Não há nenhuma cidade na Europa que tenha hostels em palácios com vista para o rio. Se temos de facto condições como muito poucos sítios, então temos de equiparar os nossos preços a outros. Precisamos todos de ganhar mais, senão somos um país pobre onde as pessoas vêm à procura de coisas baratas.”

Coelho defende o pagamento de taxas turísticas — algo que está em discussão. Não porque o turismo prejudique a cidade — “Lisboa tem vida, passou a ser mais cosmopolita” —, mas não há interesse em ter turismo de massas. “Queremos posicionar-nos como um país low cost? Qual é o interesse de ter as ruas cheias de turistas e ter o português a continuar a ganhar o salário mínimo? Sermos líderes das city-breaks? No curto prazo, é uma forma de fazer uma alteração do ciclo, mas a qualificação é essencial.”

Regularia a oferta porque há certos aspectos da preservação da história e da cultura que não podem “depender da boa vontade das pessoas”. Subiria os preços a pensar não em quem ganha um salário de 450 euros, como acontece em Portugal, mas em quem ganha mais do dobro, como os turistas que nos visitam. “Todos os anos se apresentam números positivos do turismo. O que é que isso tem desenvolvido o país? Onde é que isso está?”

"O turismo pode-nos salvar e pode-nos matar"

Há mais de sete anos, quando apareceu, a loja de Catarina Portas, A Vida Portuguesa, dedicada a produtos nacionais, centrava-se no mercado local. Hoje, e depois da crise de 2008, se não fossem os turistas, “talvez tivesse fechado”, conta a mentora de um conceito que tem sido reproduzido por outras lojas no centro histórico. A loja do Chiado, por exemplo, faz 70% das vendas a estrangeiros. “O turismo tem sido o principal motor nos últimos anos e num período particularmente difícil. Neste momento, é absolutamente urgente que a câmara crie um grupo de reflexão sobre o turismo em Lisboa porque é aquilo que pode causar mais problemas. O turismo pode-nos salvar e pode-nos matar”, diz.

Com uma loja em pleno coração da cidade, e testemunha de uma transformação urbana, Catarina Portas lembra que se têm recuperado edifícios que estavam vazios e abandonados, melhorado a hotelaria e alguma da nova restauração, mas o turismo “tem também matado muito do que era a vida da cidade”.

Há que fazer formações sobre como intervir na cidade histórica, pensar no que a cidade tem de interessante. “O encanto de Lisboa tem a ver com a sua diferença e portanto fazer hotéis, restaurantes que são iguais no mundo inteiro não tem o mínimo interesse. Podemos aproveitar para fazer coisas interessantes, mas também não é preciso espalhar o Galo de Barcelos e o Fernando Pessoa por todo o lado.”

Por exemplo, os turistas quando vêm a Lisboa procuram uma certa autenticidade que muitas cidades já perderam, porque a tendência é a uniformização. “Os 2 metros quadrados da Luvaria Ulisses fazem mais pela apetência de Lisboa do que os dois mil metros quadrados da H&M do outro lado da rua jamais farão. Aparece num terço das reportagens sobre Lisboa. Nem que a luvaria não fosse rentável, a câmara ganharia em mantê-la aberta (seria o espaço de publicidade que se gastaria). É para isso que o turismo deveria servir”, defende. Por isso, a autarquia deveria dignificar estes espaços, atribuir selos, fazer guias, sites e visitas guiadas, além de criar “‘herdeiros’ para estas lojas, aproveitar o empreendedorismo e ligá-las”. “Isto é que é a diferença de Lisboa”, diz Catarina Portas, que há anos é entrevistada por jornalistas estrangeiros — mas nunca como agora a projecção foi tão grande. “O turismo surge numa altura de dificuldade económica e para muitas pessoas está a ser muito importante. É preciso pensar sobre ele e arranjar estratégias que ajudem a cidade, não a podemos transformar num parque temático.”

Fundador da revista Wallpaper e director da Monocle, uma revista urbana de nicho que tem um enorme sucesso em Portugal, Tyler Brûlé fala justamente de autenticidade. Não deixa de ser curioso que o fundador de uma revista com um estilo tão forte e tão exportado — o design Wallpaper é facilmente reconhecível em várias capitais mundiais — diga que o que é interessante em Lisboa é justamente o facto de não ter mudado assim tanto desde que aqui veio pela primeira vez há mais de sete anos.

Paradoxalmente, a crise impediu a renovação de “todo e qualquer edifício”. “Lisboa tem uma autenticidade que se perdeu em muitas cidades. Por exemplo, em Barcelona, cada restaurante é desenhado por um arquitecto, mas isto torna-se igual em todo o lado. Lisboa é como uma Berlim no Sudoeste da Europa: é vibrante, tem o seu próprio carácter e isso é um ponto muito importante para o turismo e para o planeamento urbano. Não é que se tenha de manter a cidade como um museu, mas é importante pensar no que deve ser mantido.”

Com um aeroporto no centro que deve optimizar (o terminal não funciona), sem um hotel de referência mundial, Lisboa deve aproveitar enquanto é popular. “Que tipo de turistas querem? Lisboa é muito barato, mas não deve querer apostar apenas nisso — porque o público que vem de Easy Jet a seguir vai para Marrocos. Deve-se construir uma relação com os turistas, fazer com que os visitantes cresçam com a cidade e transformar-se num clássico à qual as pessoas querem voltar.”

Ele apostaria no mercado japonês, que tem uma apetência pelos produtos locais, porque é o tipo de “público maduro” que precisamos. Se tivesse de vender Lisboa, venderia assim: “É a capital europeia no fim do mundo. Isso significa que não é arrogante, tem a capacidade para olhar à volta e trabalhar no duro. Não está no centro, a próxima paragem é Cabo Verde, é Nova Iorque.”