Assim se mostra a força das lideranças
As primárias de 28 de Setembro trazem de volta os duelos políticos no PS. Com dois grandes confrontos — Soares e Zenha, Sampaio e Guterres —, a história dos socialistas caracteriza-se por embates frontais e duros, que vêm desde o primeiro congresso, lembra Manuel Alegre, e que foram anestesiados pelo guterrismo. Uma história de confrontos pela liderança que, para António Barreto, não tem contornos ideológicos e que, segundo Ferro Rodrigues, viveram da “história dos protagonistas”.
"Uma vez que nunca houve uma tradição sindical, as lutas no PS são sempre marcadas por pessoas e por solicitações externas, nunca houve cisões por motivos ideológicos ou institucionais”, defende o sociólogo António Barreto, antigo dirigente socialista e que foi ministro da Agricultura e deputado por este partido. É, assim, o peso dos protagonistas na história do PS que determina as vitórias nas lutas de liderança, sublinha Barreto à Revista 2, frisando: “Desde a fundação, o PS é uma associação de amigos com passado político. Alguns com ligação à maçonaria, alguns republicanos, alguns ex-PCP, mas é uma associação de amigos.”
É mais uma luta de personalidade e de modos de estar na política que está presente no formalmente inédito confronto pela liderança do PS provocado pelo desafio que, a 27 de Maio, dois dias depois das Europeias, o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, lançou, ao secretário-geral do PS, António José Seguro. Um duelo que viverá o seu momento crucial daqui a um mês, nas primárias para a escolha do candidato dos socialistas a primeiro-ministro, que será feita juntando militantes e não militantes, a quem atribui o novo estatuto de simpatizantes, num universo eleitoral até hoje não experimentado em Portugal.
Mas se, na forma, o confronto entre Seguro e Costa é novo, a verdade é que os duelos pela liderança no PS são uma constante na história deste partido, onde se viveram lutas pelo poder que marcaram a política portuguesa, como o confronto entre Mário Soares e Salgado Zenha e o entre Jorge Sampaio e António Guterres. E que só sossegaram devido à transformação profunda que Guterres imprimiu ao perfil orgânico do PS. Mas que voltam agora, ditando, neste aspecto, o fim da herança do guterrismo.
Até Guterres, a história do PS é feita de disputas pela liderança entre personalidades do partido. Aliás, logo após a fundação a 19 de Março de 1973, em Bad Münstereifel, na Alemanha, o primeiro congresso na legalidade, realizado em Lisboa, em Dezembro de 1974, foi o palco de um confronto que traçou o rumo do partido. O PS passou a ser determinado por Mário Soares, tendo a derrota da linha protagonizada por Manuel Serra levado ao abandono do partido por parte deste antifascista que tinha participado no Golpe de Beja (01/01/1962).
Desde então, os momentos de sucessão na liderança no PS caracterizaram-se por debates intensos, como aconteceu entre Vítor Constâncio e Jaime Gama (1986), Jorge Sampaio e Jaime Gama (1988), Jorge Sampaio e António Guterres (1992). Depois são menos intensas. Aliás, em 2002, Ferro Rodrigues sucedeu a Guterres sem concorrência. Mesmo quando, em 2004, José Sócrates é eleito, disputou a liderança do PS com Manuel Alegre e João Soares sem que o confronto tenha sido crispado. E, em 2011, Seguro é secretário-geral numa disputa tranquila com Francisco Assis.
Mais agressividade?
Além da novidade formal, as diferenças entre a actual disputa e as anteriores atingem outras dimensões. António Vitorino, antigo dirigente e ministro de António Guterres, de quem foi braço-direito, relativiza o impacto da dureza deste embate, numa época em que “há mais agressividade na política em Portugal, há mais acrimónia” em geral, e “não tem a ver só com esta disputa interna”. Como exemplo, cita “os debates com José Sócrates quando era primeiro-ministro e ia ao Parlamento”.
Já António Campos, dirigente histórico do PS e um dos principais lugares-tenentes de Mário Soares, considera que a actual campanha “não está a ser mais agressiva ou violenta.” E sublinha que quando Soares cortou com o Presidente Ramalho Eanes, na revisão constitucional de 1982, “o excesso de linguagem foi maior”. Remata: “Não me parece que agora seja mais agressivo. E espero que isso não aconteça.”
Comparando a actual disputa com a que foi vivida em 1992 entre Jorge Sampaio e António Guterres, Vitorino considera que “em ambos os casos a campanha é dura e é assim também noutros partidos, basta ver as lutas no tempo de José Sócrates”. Vitorino considera mesmo que a situação é geral. Como exemplo, lembra “o PSD após Cavaco Silva e mesmo depois com Marques Mendes, Manuela Ferreira Leite, Luís Filipe Menezes”. O que se passa, frisa Vitorino, “é que o PSD está habituado e o PS já não está”, porque desde Guterres os socialistas têm vivido sucessões menos intensas.
Novidade na actual disputa é o facto de Seguro estar a ser desafiado depois de ter ganho duas eleições, as Autárquicas (29 de Setembro de 2013) e as Europeias (do passado dia 25 de Maio). “A semelhança mais evidente é a de que há um challenger e um desafiado”, diz Vitorino. “A diferença é que Seguro ganhou as eleições, pode ter ganho por pouco, mas não perdeu”, frisa Vitorino sobre os 31,5% de votos do PS nas Europeias, contra os 27,7% da coligação entre PSD e CDS. Enquanto Sampaio tinha perdido as Legislativas de 1991, com 29,13%, e vendo Cavaco Silva reeditar e ampliar a sua maioria absoluta.
“A questão que se coloca, antes como hoje, é perceber qual o dirigente mais bem colocado para ganhar eleições”, sublinha Vitorino, para quem “Guterres disputou a Sampaio a liderança, porque tinha de haver reorganização para ganhar”. E, na sua opinião, “Costa acha que é assim”. Pelo que conclui: “A raiz é semelhante, as circunstâncias são diferentes.”
Amplificação dos media
Uma novidade primordial nas directas é, segundo Vitorino, que “a mediatização amplifica”. Hoje, as novas tecnologias da comunicação tornam global e imediato qualquer acontecimento, dando proporções imensas a factos que, no passado, passariam despercebidos. Isto porque “hoje há redes sociais”, além de que “a Net é um espaço onde a agressividade é fulminante”, sublinha o actual líder parlamentar Alberto Martins, que acrescenta: “A mediatização dá ao confronto político uma dimensão imediatamente nacional. Em 1991 [quando Sampaio perde as Legislativas], não vivíamos na sociedade de informação em que vivemos hoje.”
Para António Campos, há um outro aspecto que marca a diferença actual e que passa por alterações estruturais e orgânicas do PS. “O partido personalizou-se muito nas estruturas intermédias, há pessoas que nos concelhos têm poder.” Recusando qualquer comparação, Campos afirma: “Não há nenhum paralelo com este tempo. Naquela altura [do confronto entre Soares e o ex-Secretariado], vivíamos a discussão política, agora é a rebelião das bases. Costa pode aproveitar bem, é um movimento de baixo para cima, é a primeira vez que acontece. Há uma rebelião contra a passividade em cima”, diz. Categórico, este histórico estabelece outro ponto de fractura, a força das lideranças: “No PS, todas as lideranças eram fortes. Neste momento, não existe liderança. A questão é de quem consegue aglutinar [pessoas] em volta do PS. Há uma certa orfandade. Os secretários-gerais do PS todos foram mobilizadores, movimentaram multidões, à excepção de [Vítor] Constâncio.” E Campos conclui: “Dantes, os líderes eram caterpillar, agora são máquinas de cortar relva.” Também o antigo líder Ferro Rodrigues considera que “a situação é diferente porque a crise em Portugal é brutal e cria uma situação nova”, enquanto “outros confrontos tinham gestação que vinha da história dos protagonistas”.
Confronto inicial
Apenas no duelo inicial — que opôs Mário Soares e Manuel Serra e ditou para o futuro o tipo de partido que o PS iria ser ao optar por manter na liderança Mário Soares — António Barreto vê divergências de foro ideológico. Não vê, porém, “uma grave e profunda cisão ideológica”. A saída de Serra do PS, seguida da vitória das eleições para a Assembleia Constituinte e nomeação de Mário Soares para formar Governo logo em 1975, “acabou por abafar as tensões”. Explica Barreto: “Manuel Serra era mais popular, mais basista, mais sindicalista, com ligações católicas de esquerda e operárias e também com ligação ao MFA [Movimento das Forças Armadas]” e Mário Soares “era um social-democrata” e foi “apoiado por Salgado Zenha, Manuel Alegre, Lopes Cardoso e por sociais-democratas como Francisco Sousa Tavares, Vasco Pulido Valente e Victor Cunha Rego”, este último o responsável pela organização desse congresso, que decorreu em Dezembro de 1974 na Aula Magna da Cidade Universitária, em Lisboa.
Um destes apoiantes de Soares — e que nessa altura se inscreveu no PS —, Manuel Alegre, teve mesmo o que é historicamente apontado como a intervenção decisiva para a vitória de Soares e para que fosse derrotada a lista à comissão nacional apresentada por Serra, que nunca formalizou uma candidatura a líder. A histórica intervenção de Alegre foi gizada com Soares e com Fernando Piteira Santos, que apoiou o líder-fundador nos bastidores, sem ser formalmente militante do PS.
“No I congresso, o que está em jogo é a autonomia política do PS e a sua satelização ao MFA e ao gonçalvismo, embora Manuel Serra não fosse comunista”, afirma Manuel Alegre, defendendo que “esse enfrentamento foi central para a autonomia do PS, onde havia várias linhas e facções mais radicais e uma ala mais direitista”, enquanto “Mário Soares era a linha tradicional do PS, que se considerava então um partido marxista”.
A ruptura entre Soares e Serra não foi a única dos tempos iniciais do PS. Segundo Manuel Alegre, “o confronto mais sério foi depois, com Aires Rodrigues e a facção mais trotskista, que terminou com a expulsão de Aires Rodrigues”. Uma outra ruptura destacada por Alegre foi em 1977, “a cisão que levou à saída de Lopes Cardoso, que foi fundar a UEDS [União de Esquerda para a Democracia Socialista]”.
“Irmãos desavindos”
O grande duelo na história do PS foi, porém, a luta entre Mário Soares e Francisco Salgado Zenha, que se iniciou em 1979 e se prolongou na luta entre Soares e o grupo que ficou para a história como o ex-Secretariado. Foi uma disputa vivida em vários momentos ao longo de anos e que teve como único fio condutor a divisão entre os dirigentes do PS em torno das posições de António Ramalho Eanes. O seu momento final é já vivido num plano exterior ao PS: as Presidenciais de 1985/86, em que Soares e Zenha se confrontam como candidatos.
“Essa foi a maior cisão, a divergência entre Soares e Zenha era muito pessoal, eram irmãos desavindos, não era de dimensão política”, considera António Barreto. Também Alegre defende que este foi “o momento mais dramático” da vida do PS. E Alegre recorda: “Tinha-se constituído a Frente Revolucionária e Socialista, que perde a eleição. E, para piorar a situação, Ramalho Eanes disse que se sentia identificado com o modelo de sociedade proposto pela Aliança Democrática. Soares achou uma traição e retirou o apoio à reeleição de Eanes. Ficou isolado. Era apoiado por mim, por Almeida Santos e por Tito de Morais e mais alguns.”
Alegre é peremptório em afirmar que “tinha um fundo estratégico, mas não ideológico”, acrescentando que “o que estava em causa era de novo a defesa da autonomia do PS”. Na época, recorda, “havia uma palavra de ordem que era ‘Soares e Zenha, não há quem os detenha’, era uma liderança bicéfala, foi uma fractura profunda e nunca mais teve solução”.
Iniciada em 1977, quando o PS é Governo e Soares primeiro-ministro, a ruptura só terminará em 1983, no V Congresso ganho por Soares em Setembro. O grupo do ex-Secretariado, então dominado intelectualmente já por Jorge Sampaio, que aderira ao PS em 1978, apenas propõe lista para a comissão nacional, saindo claramente derrotado. A vitória de Soares foi possível porque apostou numa campanha interna em que andou de terra em terra, a conquistar os militantes, concelhia a concelhia, frisa António Barreto.
Soares partiu para este combate tendo a seu lado apenas alguns históricos, como Eduardo Pereira, António Campos, Jaime Gama e António de Almeida Santos. A grande maioria dos nomes sonantes do partido e dos dirigentes estavam contra Soares, assim como todas as figuras da geração que iria marcar o futuro do PS, como Vítor Constâncio, Jorge Sampaio e António Guterres.
Um dos poucos históricos que estiveram ao lado de Soares foi António Campos. É com à-vontade que assume: “Fui sempre amigo do Mário Soares, desde que o conheci em 1964. Liga-me a ele uma amizade profunda e batalhas seguras.” Campos conta que “o movimento de ruptura começou com Guterres e com dissidências em relação à governação”. O adensar e dramatizar da divergência surge quando “Zenha, que era a segunda figura do partido e era muito prestigiado, se aliou ao Secretariado”. Uma ruptura pessoal que acabará com a saída de Zenha do PS.
O factor Eanes
“Em 1979, é a primeira grande cisão, quando Soares tira o seu apoio a Eanes” que se candidatara a Presidente da República com o apoio do Secretariado do PS. Soares bateu com a porta e abandonou aquele órgão de direcção do PS em protesto. “Soares tinha a convicção de que Eanes ia fazer um partido, muitos não acreditaram, mas Soares percebeu e tinha razão”, sublinha Campos.
“É verdade que Eanes queria exercer funções na esquerda e Soares não queria que Eanes tivesse importância política”, corrobora Barreto. De tal modo que, para Barreto, a posição face a Eanes podia ser a questão dominante para Soares definir relações políticas: “Parte dos mal-entendidos que Soares vai ter, por exemplo com os reformadores — eu, Medeiros Ferreira, Francisco Sousa Tavares, Mário Mesquita, Victor Cunha Rego —, é porque pensa que somos próximos de Eanes, mas só Medeiros o era.” A importância de Eanes na divisão do PS foi tal que Barreto sublinha que, “quando o PRD se cria, a sensação no PS era estranha, havia reacção ao grupo que tinha tirado votos, mas o ex-Secretariado tinha simpatia pelo PRD”.
As divergências entre Soares e o ex-Secretariado prolongam-se na revisão da Constituição de 1982. Isto já depois do regresso de Soares à liderança do partido, em 1981. “O segundo motivo de ruptura foi a revisão constitucional. O ex-Secretariado chegou a ter uma proposta de revisão constitucional própria apresentada por Jorge Sampaio, que em parte foi contemplada na proposta do PS”, relata Campos. E Barreto sustenta que, “em 1982, a revisão foi anti-Eanes, os sampaístas tentam defender Eanes, mas Soares faz o acordo com Pinto Balsemão”, então líder do PSD e primeiro-ministro.
“O grupo do ex-Secretariado é influenciado pela entrada de Jorge Sampaio e de João Cravinho”, considera Barreto, que acrescenta sobre a entrada dos membros do ex-GIS (Grupo de Intervenção Socialista) no PS: “Eles queriam entrar como grupo, Soares não deixou, percebeu que ia ter problemas, o grupo entra organizado, ainda que informalmente.”
O corte final, em termos partidários, deu-se no congresso e nas Legislativas de 1983. “Soares esteve à beira de perder o PS. Zenha tinha saído, mas tinha ficado o grupo dos sampaístas a dominar o ex-Secretariado”, afirma Barreto, explicando que “Sampaio força a formação de uma lista para a comissão nacional”.
A consequência foi que nenhum membro do grupo derrotado integrou as listas eleitorais do PS, nem depois o Governo do Bloco Central. “Em 1983, Soares deixa o ex-Secretariado fora das listas eleitorais, foi Eduardo Pereira quem fez as listas”, pormenoriza Campos, que remata: “Mário Soares provocava rupturas para fomentar a discussão interna, Soares adorava discussões políticas, às vezes até havia exagero.”
Com o fim do Bloco Central e a passagem de Mário Soares a candidato presidencial, eleito à segunda volta em Janeiro de 1986, o PS entra em processo de sucessão e o grupo do ex-Secretariado ganha então o poder interno: no VI Congresso em 1986, derrotando Jaime Gama, Vítor Constâncio é eleito secretário-geral e traz ao PS um novo programa partidário.
Rocard à portuguesa
Constâncio é o secretário-geral que faz a adaptação do programa do PS ao novo capitalismo global, potenciado pela revolução tecnológica e informática, que então despontava. “Era a tentativa de impor o que se chamará Terceira Via, sob o pretexto da modernização do partido, Guterres era já o organizador”, enquanto “a referência de Constâncio era o [líder do PS francês Michel] Rocard. Depois, com Guterres, há uma influência mais acentuada do liberalismo”, explica Alegre. A nova visão do socialismo que Constâncio defende é o enquadramento ideológico que permite a negociação da revisão constitucional de 1989 com o PSD de Cavaco Silva, cuja aprovação no Parlamento será já formalmente da responsabilidade de Jorge Sampaio.
Constâncio acaba por atirar a toalha ao chão e demite-se em 1988, depois de ver Cavaco e o PSD serem confirmados no Governo, agora com maioria absoluta, nas Legislativas de 19 de Julho de 1987. “Constâncio não conseguiu que os generais avançassem para Lisboa, não era apoiado por Soares, vivia os problemas financeiros do partido”, explica Ferro Rodrigues.
Perante a demissão de Constâncio, começa a desenhar-se o segundo grande confronto pela liderança do PS e que surgirá dentro do que é o ex-Secretariado. “Logo aí, houve uma corrida entre Jorge Sampaio e António Guterres, mas Sampaio antecipa-se”, lembra Ferro Rodrigues. E mais uma vez, contra o que é a linhagem do ex-Secretariado, perfila-se Jaime Gama, que, de novo, sairá derrotado.
Sampaio procura reorganizar o PS na oposição ao poder da maioria absoluta de Cavaco. Surpreende ao assumir a batalha de Lisboa e ao conseguir liderar uma coligação autárquica entre o PS e o PCP — num acordo negociado por Ferro Rodrigues e Luís Sá e tutelado por Lopes Cardoso e Domingos Abrantes —, que sai vencedora em 1989.
Mas em 1991, depois da derrota eleitoral legislativa que lhe foi infligida pela segunda e mais ampla maioria absoluta de Cavaco, Sampaio sucumbe como líder dos socialistas. “O PS viveu uma grande vitória autárquica em 1989, depois foi o duche escocês de 1991, a água fria”, desabafa Ferro Rodrigues. “Sampaio subiu em 7% o resultado do PS, mas perdeu, com 29,13 % dos votos, contra os 50,60% de Cavaco. E Guterres tinha tudo preparado”, acrescenta Alberto Martins, outro sampaísta de relevo, responsável pela primeira intervenção a favor de Sampaio, no congresso da eleição de Guterres.
“Em estado de choque”
A morte da liderança de Sampaio foi anunciada logo na noite eleitoral, quando perante a reunião do secretariado do partido, Guterres comenta: “Estes resultados deixam-me em estado de choque.” Foi a declaração de guerra do que é visto como o segundo e último grande duelo pela liderança do PS e que foi vivido por dois homens do grupo do ex-Secretariado, sendo que Guterres se assume então como politicamente herdeiro da linha Constâncio, contra a esquerda sampaísta.
Guterres será eleito secretário-geral em Fevereiro de 1992, depois de uma campanha dura, mas em que o nível político foi mantido por ambos os contendores. “Em 1991, Guterres aparece explicado pelo que se passara antes”, defende Ferro Rodrigues, então um dos principais nomes do sampaísmo. Guterres tinha construído a rede de apoios para que a próxima oportunidade fosse a dele. “Guterres trabalhava muito a sua base interna no PS, telefonava a toda a gente”, recorda Ferro.
A luta foi dura e a ruptura foi grande. “Não é possível comparar as campanhas, pois a entre Seguro e Costa ainda não terminou e os tempos são outros, mas a campanha entre Sampaio e Guterres foi de grande agressividade e levou tempo a curar as feridas”, sublinha Alberto Martins, salientando que “as guerras internas são muito mais dolorosas do que as externas, deixam marcas ao nível emocional, afectivo. Isso leva tempo”. E adverte: “A batalha Guterres-Sampaio levou mais de um ano a curar. Espero que esta não leve tanto tempo.”
A colagem dos cacos desse duelo foi feita por Ferro Rodrigues, em representação dos sampaístas, e por Jorge Coelho, braço-direito do novo líder. Uma pacificação que é hoje vista como tendo sido fundamental para a unificação do PS que levou os socialistas ao poder em 1995, quando o cavaquismo colapsou nas urnas.
É certo, contudo, sublinha Ferro, que “entre Sampaio e Guterres, de facto, não havia muita diferença do ponto de vista programático”. Aliás, o programa foi o mesmo desde Constâncio. Barreto considera também que neste duelo não há cisão ideológica. “Pode haver a diferença católico/não católico, mas era pessoal a disputa”, defende o sociólogo, para quem “o PS tem bastantes brigas, mas não são divisões ideológicas, nem filosóficas nem políticas, nem tensões institucionais”.
Isso facilitou que “sampaístas e guterristas se tivessem juntado a partir dos Estados Gerais e da reorganização do PS”, frisa ainda Ferro, deixando um alerta para o futuro vencedor das primárias: “Guterres conseguiu fazer pontes e teve resultado eleitoral, teve a preocupação de agregar.”
Não há dúvidas dentro do PS de que esta pacificação foi uma das vertentes da reorganização e da transformação que Guterres imprimiu ao PS, depois de tomar conta do partido com uma corte própria, em parte vinda do grupo do ex-Secretariado, mas com muita gente nova. Dá-se então uma revolução no PS. Guterres corta com o partido da resistência e com as elites que vinham do combate à ditadura. E dá um novo fôlego ao que é o poder do aparelho local e às estruturas concelhias e ao peso do poder local na vida do PS.
“Guterres consegue vitória eleitoral importante e nova” em Outubro de 1995, sublinha Barreto, que frisa que, “com Guterres, abrem-se as portas à ligação dos socialistas e da Igreja católica”. Então, “os republicanos e maçons levaram algum tempo a perceber que o PS tinha mudado e a reorganizarem a sua vida”, conclui Barreto.
“Uma certa tradição do PS histórico de raiz antifascista acaba aí”, prossegue Alegre, considerando que, “com Guterres, vem outra coisa, pela sua idade e origem, não tinha passado de resistência, pelo que há um grande corte”. É aí que o PS aprofunda a linha política que ficou conhecida por Terceira Via, devido ao primeiro-ministro trabalhista britânico Tony Blair e ao seu mentor, Anthony Giddens. E que, na sua origem, estivera na base do programa de Constâncio. Alegre conclui: “Há uma história que termina com o fim do sampaísmo e o início do guterrismo.”
A marca que Guterres imprimiu ao PS e a forma como se demite da liderança, após a derrota autárquica de 2001 — alegando que a sua governação em minoria passaria a ficar presa num pântano —, faz com que a sua sucessão seja de continuidade e sem oposição. Aliás, até à disputa actual, não voltou a haver nenhum duelo pela liderança. Depois de Jaime Gama ter sido candidato pela terceira vez à liderança, mas apenas por 24 horas, tendo desistido por motivos pessoais e familiares, coube a Ferro Rodrigues ser secretário-geral, eleito em 2002.
Ferro Rodrigues juntou à singularidade de ser eleito sem concorrência o facto de ter liderado o partido quando este teve um dos melhores resultados eleitorais: 44,53% nas Europeias de 2004. Assim como o facto de se demitir ao ver o seu amigo Sampaio, então Presidente da República, a aceitar substituir administrativamente Durão Barroso por Santana Lopes como primeiro-ministro, em vez de convocar eleições.
Foi então a vez de o cargo de secretário-geral voltar a ser disputado e logo por três candidatos: João Soares, José Sócrates e Manuel Alegre. É Alegre que lembra que se candidatou após o recuo de Seguro, que viu a sua ambição de ser líder travada por Jorge Coelho, ao, num almoço na Curia, dar indicação de que o nome que devia avançar apoiado pelo aparelho do partido era Sócrates. A Seguro ficaria destinada a sucessão seguinte, quando em 2011 Sócrates perde as legislativas, numa disputa calma em que enfrentou Francisco Assis.
“Queria tanto ser candidato como ir à China”, garante Alegre, que assume que a sua candidatura “foi uma decisão colectiva, para manter a pluralidade interna e o espaço de diálogo, foi uma tentativa de resistir ao que chamavam a esquerda blairista”. A campanha foi de debate de ideias, defende e salienta que “foi a primeira vez que se usou a TV, houve muitos debates e isso credibilizou o PS”, porque “foram debates claramente ideológicos entre a esquerda do PS e a Terceira Via protagonizada por Sócrates”.
Passados três anos sobre o fim dos governos Sócrates, Alegre reconhece a importância da sua governação: “Sócrates teve aspectos contraditórios. A revisão de costumes é dele. Esteve mais à frente. Fez a sua defesa do Estado Social, da Educação e da Saúde. E esteve bem nas energias renováveis. A história o julgará.” Um elogio que surge como surpreendente, já que vem daquele que foi um dos maiores opositores internos a Sócrates numa disputa que é caracterizada como um combate duro, mas sem ataques pessoais e que foi a última sucessão sem confronto intenso da era pós-Guterres. Um tipo de sucessão mais tranquila que agora é quebrada com a disputa entre Seguro e Costa. Uma eleição que formalmente escolherá o candidato a primeiro-ministro do PS, mas que na prática determinará quem será o líder dos socialistas.