A ocasião em que o embaixador Pedro Catarino percebeu que não há almoços grátis

O ex-Presidente da Comissão Permanente de Contrapartidas invocou “quebra de confiança” para cessar o contrato que aquele departamento mantinha com o escritório de advogados Sérvulo Correia & Associados. A razão: duas contestadas facturas de honorários

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Os honorários dos advogados levaram presidente da Comissão de Contrapartidas a quebrar contrato Rui Gaudêncio

Catarino presidia, desde Janeiro daquele ano, à Comissão Permanente das Contrapartidas (CPC), a estrutura estatal criada no âmbito dos ministérios da Defesa e da Economia, para acompanhar o desenvolvimento dos contratos que prometiam injectar várias centenas de milhões de euros, e resultavam de negociações entre o Estado e os vendedores de veículos e armamento para as Forças Armadas.

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Catarino presidia, desde Janeiro daquele ano, à Comissão Permanente das Contrapartidas (CPC), a estrutura estatal criada no âmbito dos ministérios da Defesa e da Economia, para acompanhar o desenvolvimento dos contratos que prometiam injectar várias centenas de milhões de euros, e resultavam de negociações entre o Estado e os vendedores de veículos e armamento para as Forças Armadas.

Bernardo Ayala e a suas colegas eram parte da equipa da sociedade de advogados que prestava assessoria à CPC desde 2003, quando começaram as contrapartidas a sério: no ano seguinte seria assinado o contrato dos submarinos, que previa o investimento de cerca de mil milhões de euros na economia nacional. Ayala fora, nessa altura, um dos principais arquitectos dos contratos, trabalhando com o Ministério da Defesa chefiado por Paulo Portas.

Dois meses depois do almoço, veio uma conta. A Sérvulo Correia & Associados enviou, como era prática corrente, as facturas do trimestre, para a entidade que pagava os gastos da CPC, a direcção-geral do Armamento e Equipamentos da Defesa (DGAED). Em Dezembro de 2007, Catarino foi chamado à direcção-geral para conferir. E não ia disposto a assinar de cruz.

No meio de “centenas de horas” de trabalho cobradas pela sociedade de advogados estava uma factura de “duas horas” vezes “três juristas”, com um valor de “1080 euros + IVA”. A data: 4/10/2007. Era a conta do almoço.

Da reacção imediata de Pedro Catarino não há registo. Mas uma carta do embaixador, de 9 de Janeiro de 2008, endereçada ao DGAED, Almirante Viegas Filipe, sintetiza o que o presidente da CPC pensava sobre aquela factura: “Um abuso e deontologicamente reprovável que a Sérvulo Correia venha pedir honorários pelas duas horas que os três juristas passaram comigo em amena cavaqueira.”

O Estado recusou pagar aqueles “1080 euros + IVA”, e disso deu nota ao escritório de advogados. A Sérvulo Correia & Associados reconheceu o “erro”. E fê-lo por carta. O problema é que a missiva enviada também tinha um preço: “quarenta e cinco minutos” de honorários pela sua escrita. O que deixou Pedro Catarino exasperado. Desta vez, o embaixador escreveu ao próprio ministro, Nuno Severiano Teixeira, dando conta de que cessara o contrato com a sociedade de advogados. Da substituição da Sérvulo Correia pelo Departamento Jurídico do MDN, no seu entender, “resulta uma considerável poupança para o orçamento do MDN e erário público”.

Este episódio tinha ficado encerrado, em Junho de 2008, com uma nova carta, de Catarino para o secretário-geral do Ministério da Defesa, pedindo uma lista detalhada com “os montantes despendidos com Sérvulo Correia por serviços prestados à CPC entre 2003 e 2008”.

E se hoje este caso é contado, pela primeira vez, no PÚBLICO, é porque causou alguma curiosidade nos deputados que integram a comissão de inquérito às contrapartidas militares. Há cerca de um mês, depondo na comissão de inquérito, Pedro Catarino revelou aos deputados que a CPC vivia na dependência de “escritórios de advogados”, que “tinham os arquivos, escreviam as actas, passavam as cartas para inglês.” Nessa ocasião, Catarino revelou que resolveu terminar o contrato com a Sérvulo Correia por “quebra de confiança”. Mas pediu aos deputados para que não o obrigassem a detalhar as razões, indicando que o fizera por carta para os responsáveis da Defesa da altura.

A Comissão, a pedido de João Semedo do Bloco de Esquerda, solicitou à Direcção-Geral das Actividades Económicas (que guarda o espólio da extinta CPC) essas cartas. Que chegaram há poucos dias a São Bento e já motivaram algumas reacções, quer do deputado José Magalhães, do PS, quer do próprio Presidente da comissão, Telmo Correia.

O PÚBLICO contactou Bernardo Ayala que, prontamente, pediu à Ordem dos Advogados que o libertasse do “dever de sigilo profissional” para comentar este caso, que protagonizou em 2007. Ayala confirma parte da história. E disponibilizou uma carta que enviou ao embaixador Pedro Catarino, no dia 10 de Janeiro de 2008. Aí, o advogado assume: “Tratou-se de um convite pessoal e, muito embora a conversa tenha tido cunho profissional, os interesses em causa eram sobretudo da Sérvulo Correia & Associados.”

Ao PÚBLICO, Ayala mantém essa ideia, acrescentando que a factura se tratou de um “lapso”. “O almoço teve lugar por minha iniciativa e nesses casos não só não imputo os respectivos custos como não contabilizo o tempo inerente para efeitos de facturação.” Era prática da sociedade que as horas laborais dos advogados fossem meticulosamente registadas, cabendo depois aos próprios indicar se não fossem destinadas a ser facturadas aos clientes. Na carta, Ayala esclarece: “Esqueci-me, pura e simplesmente, de passar essa relevante informação ao departamento de contabilidade.”

Quanto à segunda factura, o advogado “ignorava em absoluto”. E explica: “Saí da Sérvulo Correia & Associados em 31 de Março de 2008. É a primeira vez que tomo conhecimento dessa informação.”

No entanto, Ayala garante que foi ele quem pôs termo à relação profissional, e não a CPC. É assim, aliás, que termina a sua carta para Catarino: “Entendo que esta carta deve marcar o fim dessa nossa colaboração profissional, pois não tenho qualquer desejo de a manter, tendo em conta as expressões que V. Exª escolheu empregar na sua carta.”

Hoje, Pedro Catarino é o representante da República nos Açores, nomeado pelo Presidente da República, Cavaco Silva. Bernardo Ayala é sócio da Uría Menéndez-Proença de Carvalho. Foi, até 2012, arguido num processo relacionado com os submarinos, que o Ministério Público arquivou sem que nada lhe fosse “imputado” e sem que tivesse sido sequer “ouvido”. Faz parte da lista de depoentes da comissão de inquérito indicados pelos deputados, mas a Ordem dos Advogados recusou levantar-lhe a obrigação de sigilo profissional. Diz-se, contudo “disponível” e até revela ter “interesse” em comparecer no Parlamento.

Para já, o Bloco de Esquerda repetiu o pedido de Pedro Catarino e quer conhecer as depesas feitas com a Sérvulo Correia & Associados. O pedido foi aprovado pela comissão.