Talvez seja só silêncio

Elena Ferrante é o pseudónimo de uma misteriosa escritora italiana que dá a ver de forma inclemente o íntimo de personagens em desequilíbrio. Por amor ou morte

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O rosto e mesmo a voz da autora estão ausentes da leitura. Não se conhece, não se ouviu. Não há o preconceito — bom ou mau ou indiferente — sobre o criador. Pouco se sabe. O discurso directo existe apenas numa ou noutra resposta escrita a jornalistas curiosos acerca de quem assina aquelas histórias acerca do desconcerto humano e, nesse exercício, é capaz de captar com palavras certeiras muito do desespero, do silêncio, do abandono, da solidão, da raiva, da perda. “Acredito que os livros, uma vez escritos, já não pertencem aos seus autores”, defendeu numa dessas respostas agora reproduzidas no prefácio a Crónicas do Mal de Amor, título que reúne três romances/novelas de Elena Ferrante. No texto introdutório à edição portuguesa, publicado originalmente na revista The New Yorker, o crítico James Wood afirma que a escrita de Ferrante “não conhece limites, está ansiosa por levar cada pensamento para diante, até à sua mais radical conclusão, e para trás, até à sua mais radical origem”. É nessa urgência acerca do rumo de existências que aparentam ser em tudo normais mas que andam sempre na fronteira da perdição que está muita da capacidade de sedução desta enigmática italiana. Sabendo do mistério, a editora recuperou o texto de Wood como carta de recomendação. Se Wood elogia…

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O rosto e mesmo a voz da autora estão ausentes da leitura. Não se conhece, não se ouviu. Não há o preconceito — bom ou mau ou indiferente — sobre o criador. Pouco se sabe. O discurso directo existe apenas numa ou noutra resposta escrita a jornalistas curiosos acerca de quem assina aquelas histórias acerca do desconcerto humano e, nesse exercício, é capaz de captar com palavras certeiras muito do desespero, do silêncio, do abandono, da solidão, da raiva, da perda. “Acredito que os livros, uma vez escritos, já não pertencem aos seus autores”, defendeu numa dessas respostas agora reproduzidas no prefácio a Crónicas do Mal de Amor, título que reúne três romances/novelas de Elena Ferrante. No texto introdutório à edição portuguesa, publicado originalmente na revista The New Yorker, o crítico James Wood afirma que a escrita de Ferrante “não conhece limites, está ansiosa por levar cada pensamento para diante, até à sua mais radical conclusão, e para trás, até à sua mais radical origem”. É nessa urgência acerca do rumo de existências que aparentam ser em tudo normais mas que andam sempre na fronteira da perdição que está muita da capacidade de sedução desta enigmática italiana. Sabendo do mistério, a editora recuperou o texto de Wood como carta de recomendação. Se Wood elogia…

Italiana, de Nápoles, talvez com 50 anos, supõe-se que com dois filhos, também professora e tradutora, a autora deste volume terá sido meia nómada — as suas viagens tê-la-ão levado à Grécia, onde aprofundou os conhecimentos sobre mitologia. Especula-se Elena Ferrante seja o pseudónimo de alguém bastante reconhecido que quer refugiar-se no anonimato sem ter de dar muitas explicações e responder com autobiografia perante uma literatura que explora, de forma crua, desapiedada, o limiar da sanidade e do inconfessável.

Os três romances deste volume são os primeiros de um percurso que conta com cerca de uma dezena de títulos entre o conto, a novela e o romance. Um percurso marcado pela contenção: cada palavra, cada frase, é limada de modo a ter o efeito semelhante ao da moinha que corrói, da dor, do lancinante capaz de transformar o mais lúcido em louco. O leitor acompanha essa mutação, desde o acto transformador — o aparente suicídio de uma mulher de 60 anos contado pela filha, o sentimento de abandono e traição de uma mulher que se achava no casamento-tão-perfeito-quanto-pode-ser-um-casamento, ou a sensação de liberdade de uma mãe na consciência ferida por um acidente, o alívio de não ter as filhas por perto, o peso de um amor que sente tê-la castrado de si mesma. O que isso lhe desperta é mais uma vez da ordem do não muito bem visto pela sociedade burguesa que gere os costumes. Em cada uma destas histórias, o narrador é uma mulher, um “eu” que se apropria dos acontecimentos no modo como transmite a sua versão. E é esse íntimo incómodo que interessa a Ferrante e a coloca a par de outras escritoras que sondam os limites da dimensão humana e, em particular, do feminino, em monólogos sobre a sobrevivência e a luta entre a moral e o individual, o doméstico e o exterior, a sexualidade e o pudor.

Publicado em 1999, Um Estranho Amor, primeiro título deste volume, foi a estreia de Elena Ferrante. Delia é uma ilustradora que se aborrece com a mãe, Amália, e a sua tendência para a “sociabilidade”. Mais velha de três irmãs, conheceu a dimensão do ciúme brutal do pai, mas é quando a mãe aparece morta no mar, vestindo apenas uma peça de lingerie, que começa uma busca sobre uma mulher que afinal não conhecia — e também a descoberta da sua própria identidade. A náusea que surge é a do engano. Não um engano calculado por alguém, mas o que vem da sobrevivência. “A infância é uma fábrica de mentiras que dura no imperfeito: a minha, pelo menos, tinha sido assim”, pensa Delia enquanto segue pistas e fixa um objectivo: “Aceitei, durante aquele percurso, contar tudo a mim própria: tudo aquilo que as mentiras conservavam de verdade.”

O primeiro contacto com a escrita de Ferrante toca a ferida. A mentira de que fala Delia ganha uma dimensão universal, quase dramaticamente formadora. Um preâmbulo eficaz para o romance seguinte, o segundo da autora, Os Dias do Abandono (2002). Olga, uma mulher de 38 anos e um casamento de 15, está na cozinha. Deixou a escrita para ajudar o marido na carreira e criar dois filhos. “No dia 1 de Abril, a seguir ao almoço, o meu marido anunciou-me de repente que queria deixar-me. Fê-lo enquanto levantávamos a mesa, as crianças brigavam como de costume na divisão ao lado, o cão sonhava entre rosnados junto ao aquecedor.” O que se segue é uma luta pessoal em que o que é decente ou sórdido, moral ou imoral, lógico ou louco se sucede sem aviso. Alguém tenta encontrar o seu lugar no mundo depois de uma notícia à sobremesa que tem o efeito de uma vertigem. A queda perece inevitável e o percurso é uma espiral — quem a percorre tenta tanto evitar o chão como chegar lá o mais depressa possível. E Olga a pensar: “Não passamos de seres ocasionais.”

Por fim, A Filha Obscura (2006). Outra vez uma mulher nas suas contradições. Chama-se Leda, tem 47 anos, duas filhas, e um casamento onde se confrontou com maternidade, a responsabilidade de ser mulher de alguém e a carreira. Até ao divórcio. “Quando as minhas filhas se mudaram para Toronto, onde o pai vivia e trabalhava havia anos, descobri com perplexo espanto que não sentia qualquer desgosto, sentia-me leve, como se só então as tivesse posto definitivamente no mundo. Pela primeira vez em quase vinte e cinco anos, deixei de sentir a ansiedade de ter de me preocupar com elas.” Aqui, como nos livros anteriores, o tal momento de viragem é menos importante do que o que ele causa. Essa luta de que Ferrante se revela exímia narradora, gerindo tempos, fazendo dos espaços, sejam cidades ou quartos, cenários adequados, numa montagem sem saltos, eficaz no modo como conta as emoções, num crescendo em que o fim também perde protagonismo, como o início. É uma escrita tão limpa quanto bruta, incómoda. O modo como cada personagem pensa o seu corpo e a sua mente e/ou o corpo e a mente dos outros; a sexualidade, o trauma, o amor, a pulsão de morte; os filhos, os amantes. É no desequilíbrio que nos revelamos, parece querer dizer Ferrante, em livros que não são de mulheres. Com ela o feminino ganha dimensão universal, ainda que volte a questão sobre se há um modo feminino de escrever.