A matéria dos sonhos
No centro da cidade de São Paulo, ergue-se um imponente prédio espelhado, sóbrio na sua arquitectura, com dezenas de andares de aspecto funcional e asséptico. É o Edifício Midoro Filho — nome inspirado em Artemidoro de Daldis, adivinho grego que viveu no século II d.C. e autor de Sobre a Interpretação dos Sonhos. As pessoas esperam silenciosas a sua vez de serem atendidas pelos “oneiros” — funcionários, de uma organização hierarquizada e com traços kafkianos, que induzem sonhos em quem os procura, normalmente apenas pessoas com dificuldades oníricas, mostrando-lhes várias miniaturas, símbolos simples, e induzindo associações de ideias. O número e a diversidade de miniaturas apresentadas variam com a idade do “sonhante”. “Quando os olhos dão cambalhotas debaixo da pálpebra, é sinal de que o sonhante está apto, vendo sistemas solares, invadindo a Rússia, emagrecendo a mãe, perdoando cães, dando palestra em Mônaco. Vou além das miniaturas, embora eu não assista à palestra e nem saiba onde fica a Rússia.” Cada oneiro atende sempre os mesmos “sonhantes”, e estes não podem ter qualquer ligação (familiar ou outra) entre si. Mas há um dia em que, por um distraído erro burocrático, uma mãe e um filho começam a ser induzidos pelo mesmo oneiro. Tudo se complica e o estrito protocolo das sessões é desrespeitado.
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No centro da cidade de São Paulo, ergue-se um imponente prédio espelhado, sóbrio na sua arquitectura, com dezenas de andares de aspecto funcional e asséptico. É o Edifício Midoro Filho — nome inspirado em Artemidoro de Daldis, adivinho grego que viveu no século II d.C. e autor de Sobre a Interpretação dos Sonhos. As pessoas esperam silenciosas a sua vez de serem atendidas pelos “oneiros” — funcionários, de uma organização hierarquizada e com traços kafkianos, que induzem sonhos em quem os procura, normalmente apenas pessoas com dificuldades oníricas, mostrando-lhes várias miniaturas, símbolos simples, e induzindo associações de ideias. O número e a diversidade de miniaturas apresentadas variam com a idade do “sonhante”. “Quando os olhos dão cambalhotas debaixo da pálpebra, é sinal de que o sonhante está apto, vendo sistemas solares, invadindo a Rússia, emagrecendo a mãe, perdoando cães, dando palestra em Mônaco. Vou além das miniaturas, embora eu não assista à palestra e nem saiba onde fica a Rússia.” Cada oneiro atende sempre os mesmos “sonhantes”, e estes não podem ter qualquer ligação (familiar ou outra) entre si. Mas há um dia em que, por um distraído erro burocrático, uma mãe e um filho começam a ser induzidos pelo mesmo oneiro. Tudo se complica e o estrito protocolo das sessões é desrespeitado.
A escritora brasileira Andréa del Fuego (n. 1975), vencedora do Prémio José Saramago 2011 (com Os Malaquias), escreveu um romance sobre os ténues espaços entre o real e o onírico. Desenvolvendo-se em dois planos ligados apenas pelo sonho — o das histórias quotidianas de uma mãe e de um filho, e o do oneiro, empregado por uma estrutura que dá direcção aos delírios oníricos —, As Miniaturas é um livro cujo primeiro capítulo pode remeter o leitor para um mundo algo inesperado, o da ficção científica. Depressa nos apercebemos de que não é disso que se trata. A narração, feita por três personagens alternadas (o oneiro, a mãe e o filho), vai conduzindo o leitor através de um labirinto de frustrações com o passado, de desejos e de expectativas — acabando por fazer com o leitor o que as miniaturas fazem com o sonhante. Toda a comunicação entre oneiro e sonhante, entre narrador e leitor, faz-se por uma sugestão de símbolos, deixando assim o resultado à capacidade de construção de cada um, numa espécie de máquina geradora de sonhos. “O sujeito, enquanto está aqui, está seguro. O corpo não sofre, não que eu veja. Ele pode cair de um penhasco e nada se quebra, é agredido pelo patrão e sua roupa não é rasgada. Imóvel ele é capaz de armazenar toda a experiência, assim que se mexe, a água craniana é agitada e babau.”
Os sonhos da mãe são concretos, ela quer sonhar com o animal em que terá de apostar para ganhar no “jogo do bicho”, ou na lotaria. Trabalha como taxista, foi abandonada pelo marido (mas diz a toda a gente que ele está em coma num hospital), tem um caso com o gerente da bomba de gasolina (que abastece o táxi sempre “com desconto”). É nessa estação de serviço que quer empregar o filho, Gilsinho, 16 anos, que estuda publicidade mas acaba por aceitar o emprego para ajudar “nas contas de casa”. Ele sabe que o pai (Ademar) abandonou a mãe depois de esta quase o matar. Gilsinho tem “Ademar alojado na infância”.
Andréa del Fuego aposta na ambiguidade, naquele espaço que de maneira propositada é deixado ao leitor para que ele vá completando a narrativa. E por vezes leva essa ambiguidade quase ao extremo, não deixando qualquer pista para que se perceba o enigma de um determinado comportamento. Como por exemplo — este é importante por ser o motor de toda a história — porque é que o oneiro que atende mãe e filho contra as regras do Edifício que proíbem o parentesco entre sonhantes transforma essa tarefa numa obsessão. Qual a razão de ter ficado vinculado?
Descolando do realismo mágico de Os Malaquias, o seu primeiro romance, Andréa del Fuego consegue agora mostrar em As Miniaturas a sua capacidade efabulatória em diferentes estilos. Pena é que as duas linhas narrativas deste seu mais recente romance nunca consigam misturar-se (nem tão-pouco espelhar-se uma na outra) e mostrar algo mais convincente, em vez de deixarem vários pontos importantes por explorar.