Leading man

A Desaparecida confirma: John Wayne não é pessoa, nem actor, é ícone. Ford percebeu a força simbólica do seu leading man dilecto, permitindo que os personagens fossem Wayne mais do que Wayne os personagens. O actor parecia-se com o homem comum, mas o melhor de nós todos

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Há o costume de ver-se no Taxi Driver a derivação do The Searchers (A Desaparecida) dos anos 70. As voltas para lá chegar são longas, mas apercebi-me dum atalho noutro filme. Hardcore, de Paul Schrader (argumentista de Taxi Driver – não é por acaso) é uma evocação mais evidente do western fordiano e data ainda de 1979 (ano da morte de John Wayne – não é por acaso). A minha relutância com acasos é porque sou calvinista, tal como o protagonista do filme de Schrader. Jake Van Dorn, interpretado por George C. Scott, é um puritano, ultra-religioso, que busca a filha extraviada nas malhas da pornografia. A ponte com A Desaparecida é evidente (ambas ovelhas perdidas da parábola bíblica), mas também invertida: para o racismo do cowboy de Wayne temos a virtude beata de Scott, para a selvajaria nativa dos comanches, temos a pornografia, chaga inevitável do progresso colonizador.

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Há o costume de ver-se no Taxi Driver a derivação do The Searchers (A Desaparecida) dos anos 70. As voltas para lá chegar são longas, mas apercebi-me dum atalho noutro filme. Hardcore, de Paul Schrader (argumentista de Taxi Driver – não é por acaso) é uma evocação mais evidente do western fordiano e data ainda de 1979 (ano da morte de John Wayne – não é por acaso). A minha relutância com acasos é porque sou calvinista, tal como o protagonista do filme de Schrader. Jake Van Dorn, interpretado por George C. Scott, é um puritano, ultra-religioso, que busca a filha extraviada nas malhas da pornografia. A ponte com A Desaparecida é evidente (ambas ovelhas perdidas da parábola bíblica), mas também invertida: para o racismo do cowboy de Wayne temos a virtude beata de Scott, para a selvajaria nativa dos comanches, temos a pornografia, chaga inevitável do progresso colonizador.

A primeira vez que escrevi sobre A Desaparecida foi após ter visto Hardcore. Há um “Leva-me para casa” dito por Scott na cena derradeira que parece tirado da boca de Wayne no final de A Desaparecida. Tornou-se uma das minhas linhas preferidas, até quando nunca é dita pelo cowboy. Escrevi num blogue essa preferência, com imprudência de que não me arrependo. Escrevi ainda que A Desaparecida é o melhor filme de sempre, com imprudência de que não me arrependo, mesmo que ocasionalmente seja arrebatado por outros filmes a que chamo melhores de sempre. Escrevi, finalmente, que George C. Scott era muito melhor actor do que John Wayne, imprudência imperdoável de que me arrependo todos os dias.

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Quando me convidam para escrever o presente texto, passam poucos dias desde que escolhi uma imagem de A Desaparecida como foto de capa no Facebook. Para além disso, o pedido da crónica sobre um filme do Velho Oeste encontra-me em pleno gozo de férias numa praia do nosso Oeste. Mas ainda não será ao terceiro parágrafo que vou admitir acasos. Sucede que estou entre praia e pinhal, sem acesso à Internet, nem tampouco vim preparado com uma cópia do filme — e até possuo duas. Faço uma pausa na escrita e desloco-me à Fnac mais próxima, mas lá não encontro aquela que seria a terceira cópia. E é no meio destas limitações que me sinto afortunado, pois sem rever o filme vou poder falar da forma mais afectuosa: a da memória enraizada e não imediata; discorro como se de um legado familiar se tratasse. Na verdade, quando começo a pensar no filme, e nas ocasiões em que o revi (pelo menos uma vez por ano na última década), apercebo-me do quanto o sei de cor. Sei a história de cor, as sequências de cor, os planos, os locais, a maravilhosa geometria com que Ford filma famílias, as diagonais dos olhares, a câmara que tarda em mover-se porque tarda em precisar, os sentimentos revelados e os encapotados, os comic relieves e os socos no estômago, os diálogos e até o que ficou por dizer.

Já muitas vezes desejei ser um jovem Bogdanovich e sentir o cheiro do charuto do mestre Ford, ouvir-lhe as rezinguices e as meias respostas. Para o meu espírito sereno é mais fácil reconhecer génio nos intratáveis, como se a desumanidade fosse efeito secundário de feitos sobre-humanos. Ford era um bully que tinha amigos, quase todos as próprias vítimas, quase todos capazes de jurar do bom coração daquele ranzinza. Neste equilíbrio desumano sobre-humano concebo a beleza indiscutível nos filmes de Ford. E a ternura. E a poeticidade, os valores, símbolos, costumes sublimados e a erudição que finge não estar lá. É um equilíbrio raro, como exemplos recentes nos recordam: Spielberg teve ilusões fordianas no seu Cavalo de Guerra e saiu-lhe uma xaropada galopante; Eastwood não conseguiu fazer de Mandela um “Founding Father” da tarimba de Ford.

Em My Darling Clementine, o realizador pegou em Victor Mature (proto-Stallone, habituado a papéis durões) e pô-lo a recitar Shakespeare num saloon, dando àquele actor (conhecido por ter sido Sansão de torso despido) a sua única cena de nudez – ainda que no momento trajasse um impecável smoking texano. Em Henry Fonda pôs um nariz postiço e filmou-o contrapicado no Young Mr. Lincoln, agigantando um actor já alto, tornando-o titã com sombras trágicas de estátua. São vários os exemplos metamórficos, mas então e John Wayne? Quando é que Wayne foi mais, menos ou outro que não ele próprio? Quando é que o manipulador Ford exigiu ao seu actor e compincha que crescesse, ou se virasse do avesso? Nunca! O realizador deu-nos o rasto logo em Stagecoach, esse marco de várias coisas, entre elas a primeira colaboração a valer entre o irlando-americano Ford e o all-American Wayne. A entrada em cena do cowboy, num surpreendente e vertiginoso close-upprenunciou aquilo que muito mais tarde outro vertiginoso e surpreendente close-up em A Desaparecida confirmaria: John Wayne não é pessoa, nem actor, é ícone. Ford percebeu a força simbólica do seu leading man dilecto, permitindo que os personagens fossem Wayne mais do que Wayne os personagens. O actor parecia-se com o homem comum, mas o melhor de nós todos; um espelho de aumentar, na coragem e na envergadura física — todavia espelho. Durante muito tempo observei aquela forma de andar lenta e coreografada, ouvi as falas arrastadas, e julguei estar perante a inaptidão preguiçosa dum canastrão. Apercebi-me finalmente do meu erro grave enquanto via, mais uma vez, A Desaparecida: o nobre, hábil e heróico Wayne parecia o de sempre, mas era também racista, frio, amoral, assustador. E, nos mesmos gestos lentos, na mesma fala pausada, estava credível. Foi pelo referido close-up deste filme, a aproximar-se de um esgar horrorizado de Ethan (personagem de John Wayne) que senti a injustiça da minha comparação com George C. Scott. O actor de HardcorePatton ou Dr. Strangelove era brilhante, dos melhores de sempre, mas não um símbolo. Talvez me falte a pala no olho fordiana, porque em Wayne demorei a distinguir um ícone duma caricatura. Doravante, jamais deixarei de lhe admirar o talento e dedicação. Tomou medidas certas e minuciosas para accionar personagens que o encarnam a ele. Todavia espelho.

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O que passo a relatar é rigorosamente verdade. Nova pausa sem escrever e, aqui no Oeste, os meus sogros levam-me a um restaurante chamado “O Duque”. Ora, evocando acasos que não admito, “Duke” era o nome do cão de John Wayne na infância, mas que passou a ser a alcunha pela qual o actor foi tratado até à sua morte (onde estavas tu, Indiana Jones, quando isto aconteceu?). E, já agora, noto que John Wayne era apenas o pseudónimo de um durão que, afinal, tinha por nome real o efeminado Marion Morrison (onde estavas tu, Marion Cobretti , vulgo Stallone em Cobra - O Braço Forte da Lei, quando isto aconteceu?). Já que Wayne é ícone, adensa-se a lenda e contagia-se a ficção.

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Da mitologia em torno do A Desaparecida há um capítulo que me aborrece. Supõe-se uma história de amor escondida entre Ethan e a cunhada, dando a entender que o personagem de Wayne é o pai da desaparecida que move a acção. Aborrece-me o mito porque esse amor nunca me pareceu suposto, ou sequer escondido no filme, antes óbvio. Admito os indícios ténues e subjectivos da relação, como naquele plano inicial do interior escuro com a porta aberta para o exterior luminoso, e a silhueta da mulher que sai titubeante da treva para a claridade (luz literal, e luz do amor que regressa). É uma espécie de tratado de 1143, pois quem não sabe este plano não é bom português, ou amante de cinema de que nacionalidade for. De qualquer forma, se a pista aqui é especulativa, deixa depois de sê-lo. Como não revi o filme, estou a recordar-me afectivamente destes momentos: os olhares e os silêncios entre os dois cunhados, os ósculos na testa que beijam a memória secreta, mas sobretudo a altura em que o Rev. Samuel Clayton se vê a sós com os amantes. War Bond (um daqueles actores que me enche de prazer só por aparecer) no papel do reverendo, espreita a afeição com que Martha vai buscar a jaqueta confederada do seu cunhado Ethan, e vira-se de costas para não assistir à passagem de testemunho apaixonada dessa vestimenta. Pela primeira vez desde que entrou em cena, Bond não esboça nem nos granjeia sorrisos; havendo dúvidas em torno daquela relação, desfazem-se nos olhos do reverendo, e aqui jaz a incerteza dum mito. Se ainda assim quiserem conspirações telenovelísticas, eu tenho a minha própria: Ethan não seria o pai da criança raptada pelos comanches, como é costume supor-se, mas sim da irmã mais velha que é violada e morta pelos mesmos índios. Tenho essa suspeita porque um destroçado Wayne enterra esta última jovem envolvendo-a no casaco do exército sulista, o tal testemunho de amor (qual filho) que a cunhada lhe havia entregado.

A prequela amorosa dentro do filme só potencia o carácter amargo deste Ethan pavoroso. Um homem capaz de doçura é o mesmo que odeia os comanches até para lá da morte (chega a disparar sobre os olhos dum cadáver, para que o espírito vagueie atribulado eternamente – respeita os costumes religiosos do índio para lhe desrespeitar a alma), que torna a busca da sobrinha numa obstinada demanda para matá-la, agora que esta se tornou tão selvagem quanto os seus captores. A Dulcineia desvirginada merece morrer. É um Quixote vil, esse que cavalga com ideais odiosos, mas tendo direito ao benfazejo e razoável escudeiro Martin Pawley. Os sidekicksjuvenis nos westerns, com ar de teen idols e relevos secundários (relembro o Ricky Nelson ou o James Caan do cânone hawksiano) dão com Martin Pawley um passo em frente. Chega a assemelhar-se a protagonista e, em cartas que escreve à namorada, obtém um estatuto próximo do narrador, acumulando o papel de Sancho Pança bonitinho do Quixote Ethan, com o de Ishmael pouco literato do Capitão Ahab Wayne – este, com coração de pau, persegue a baleia branca de pele vermelha.

Em Pawley, temos o handsome delfim capaz de mudar o rumo e catalisar o Bem no seu intratável patrono, Bem que se revelou mais nativo que o ódio. Não será esta a grande alegoria da relação entre o intratável Ford e o seu protegido Wayne? Não terá encontrado num ícone de 1,90m a expressão derradeira do Bem, cunho mais maravilhoso que a beleza paisagística das suas fitas? Como um caprichoso deus clássico (não do Olimpo, mas do Monument Valley), John Ford moveu o seu campeão, mas também por ele foi movido. Não com 12 trabalhos de Hércules, de Duke, ou de Marion, mas em exactos 12 filmes como protagonista. É por acaso?

Samuel Úria (Músico)