Lições económicas da Primeira Guerra Mundial
O governo da República teve de financiar a aventura da guerra através da emissão monetária e de dívida. O aumento da circulação monetária traduziu-se em níveis de inflação dos mais elevados da Europa, numa forte desvalorização cambial, e no agravamento do desequilíbrio externo do país. Paradoxalmente, o período a seguir ao fim da primeira Guerra Mundial, que ocorreu num contexto de proteccionismo generalizado, foi palco de uma transformação de certo modo excepcional da economia portuguesa.
O século que começou com a paz de Viena e acabou com a primeira Guerra Mundial foi marcado pela industrialização do continente europeu, pautada por progressos em todas as frentes. A guerra alterou as regras do jogo económico internacional, deixando marcas que trazem lições até aos dias de hoje.
Dado o mote da primeira revolução industrial, os países ou regiões mais próximos da Grã-Bretanha seguiram um caminho de imitação ou substituição dos elementos que estruturam essa grande transformação económica. Por trás desse impulso industrial esteve a possibilidade que a paz de 1815 trouxe ao crescimento das trocas intra-europeias de produtos, serviços, capitais e, então em menor grau, pessoas, pautado pelo padrão-ouro, o regime de estabilidade cambial mais conseguido da história. O facto de a Europa ser cada vez mais o continente de monarquias ou repúblicas constitucionais, regimes em que os cidadãos têm alguma voz, embora muitas vezes imperfeita, foi também de grande importância ao contribuir para o clima de abertura de fronteiras.
Entre os elementos do crescimento oitocentista contam-se, não necessariamente por esta ordem, economias à época já relativamente avançadas, elevados níveis de capital físico e humano, instituições financeiras experientes, recursos naturais de exploração competitiva, sectores agrícolas capitalizados e virados para os mercados locais, regionais ou internacionais, tradições manufactureiras seculares e redes de estradas e canais a ligar cidades, campos, minas e portos. Este padrão favorável à industrialização era comum nas regiões do noroeste europeu, do norte de França à Bélgica, do ocidente da futura Alemanha às cidades do norte de Itália e foi potenciado pelas possibilidades abertas pelo desenvolvimento de novas tecnologias, formas de organização do trabalho e financiamento.
Houve todavia regiões da Europa que, apesar de também terem conhecido algum crescimento económico e desenvolvimento institucional e abertura ao exterior, não conseguiram acompanhar de perto os avanços nas partes que se destacaram do continente europeu. Portugal, como outros países das periferias mais distantes a Sul e a Leste, foi um desses casos de relativo atraso no progresso geral. A industrialização portuguesa oitocentista não trouxe convergência económica.
A primeira Guerra Mundial teve consequências humanas trágicas, que precisam de ser recordadas, e interrompeu gravemente o desenvolvimento da economia internacional. Todavia, uma vez terminado o conflito, em poucos anos as principais economias beligerantes puseram-se novamente de pé, o que deve ser compreendido à luz dos desenvolvimentos precedentes que tinham tornado a Europa no continente mais evoluído do Mundo. Terminada a guerra, os agricultores e os industriais franceses, suecos, catalães, italianos, alemães ou checoslovacos voltaram-se para a economia da paz, apesar de todas as dificuldades. Em meados da década de 1920 já se havia atingido, um pouco por todo o lado, os níveis de produção – e de produtividade – existentes nas vésperas da guerra.
Mas a recuperação económica das nações não foi acompanhada pela recuperação da economia internacional, o que acabou por revelar problemas insanáveis. A disfunção registada prende-se directamente com o impacto da guerra nos equilíbrios financeiros e económicos internacionais, e pela incapacidade dos governos nacionais de levarem a cabo políticas de coordenação internacional. Esses efeitos traduziram-se, em primeiro lugar, em níveis elevados de inflação, decorrentes da necessidade que os estados tiveram de financiar as despesas de guerra com recurso aos défices públicos e à correspondente emissão monetária e de dívida pública, interna e externa. A inflação não subiu da mesma maneira em todo o lado, já que a forma e o esforço de financiamento da guerra variaram de país para país, o que levou a disparidades elevadas na evolução do valor das moedas nacionais. Por isso, tornou-se virtualmente impossível restabelecer um novo regime de paridades cambiais internacionais que replicasse o padrão-ouro do século XIX.
Sem finanças internacionais equilibradas, os estados recorram ao proteccionismo alfandegário e de outros tipos, limitando severamente as trocas internacionais de produtos, capitais e, ulteriormente, de pessoas. O mundo voltou a ficar compartido, só que desta vez as barreiras às trocas internacionais separavam economias evoluídas com fortes interdependências que assim foram interrompidas.
A economia portuguesa acompanhou os passos do resto da Europa, na medida da distância a que estava do coração económico do continente. O governo da primeira República entrou na guerra, de forma talvez inesperada, em 1916, tendo sido igualmente obrigado a financiar a aventura através de emissão monetária e de dívida, esta em grande parte contraída junto do aliado britânico. O aumento da circulação monetária traduziu-se em níveis de inflação dos mais elevados da Europa de então, e implicaram uma forte desvalorização cambial, e o agravamento do desequilíbrio externo do país. Os problemas financeiros acabariam por levar a uma grande instabilidade política e eventualmente à mudança de regime, alguns anos depois de terminada a guerra.
Mas a instabilidade financeira e política escondia algo de positivo. Com efeito, o período a seguir ao fim da primeira Guerra Mundial foi palco de uma transformação de certo modo excepcional da economia portuguesa em muitas frentes, transformação que ocorreu num contexto de proteccionismo generalizado, o que de certa forma a torna paradoxal. Esse crescimento, detectado apenas recentemente através de estimativas da evolução da economia, ainda não foi suficientemente compreendido e integrado nas interpretações gerais sobre o período de entre as guerras, que ainda são dominadas pela análise dos efeitos do permanente estado de crise financeira e política que o país então viveu. As crises financeiras e políticas são evidentes mas não dominaram a situação económica do país.
Efectivamente, o PIB per capita nacional cresceu a um ritmo médio de cerca de 1,5% ao ano, em muito superior ao registado ao longo das melhores décadas do século XIX, e pela primeira vez em linha com o que aconteceu contemporaneamente em outros países europeus. Ao mesmo tempo, a produção industrial expandiu de forma generalizada, tendo surgido sectores tecnologicamente mais avançados, à escala do país atrasado que Portugal era, tais como os adubos químicos, os cimentos, a metalurgia ou algumas indústrias alimentares. A agricultura também cresceu razoavelmente, sofrendo transformações estruturais na produção, com o aumento do peso de culturas mais produtivas. E o sector dos serviços, dos transportes ao comércio, dos bancos aos serviços de educação e assistência na doença, acompanharam de perto o desenvolvimento das demais actividades. O único sector, considerado de forma generalizada, que não conheceu estes sinais positivos foi o sector externo, incluindo as relações económicas com as colónias. E aí reside, precisamente, a fonte do paradoxo do crescimento económico português a seguir à primeira Guerra Mundial.
Apesar dos avanços da economia portuguesa durante o período em causa, o rol de problemas manteve-se enorme no contexto europeu, já que duas décadas não permitiram ultrapassar o fosso de desenvolvimento que separava o país dos seus principais parceiros ocidentais, incluindo naturalmente a Espanha ou a Itália. Todavia, esses lentos progressos preparam de forma inequívoca o forte crescimento que se viria a registar a seguir à segunda Guerra Mundial, durante a idade de ouro do crescimento económico europeu e mundial, entre 1950 e 1973.
O desenvolvimento da economia portuguesa pouco se distingue do que aconteceu em muitos países da Europa, onde o período de entre as guerras também foi de crescimento e também criou bases de crescimento futuro. Assim, o paradoxo português tem de ser compreendido no contexto europeu e de certa forma a sua explicação poderá ajudar a compreender o crescimento com fronteiras fechadas, crises financeiras e cambiais, políticas instáveis e graves manifestações de repressão política. Todavia, dado que o período foi relativamente curto, pois viria a ser interrompido pelo novo conflito internacional, de proporções ainda maiores, as lições que dele se retiram são necessariamente breves.
Mesmo assim, uma das principais conclusões será a de que, afinal, a abertura económica pode não ser determinante do progresso económico. A abertura será provavelmente mais importante para o entendimento e a paz entre as nações do que para a prosperidade de cada nação, tomada isoladamente. O século XIX mostrou crescimento sustentado ao longo de décadas e dependente da liberdade económica e política a nível internacional. A guerra interrompeu esses desenvolvimentos, dando lugar a um período de crescimento de fronteiras fechadas e substancialmente mais curto. Se alguma lição há a tirar desta comparação, será que a abertura de fronteiras é mais importante para a estabilidade e a paz internacionais do que para o crescimento económico de cada nação. Esta lição não foi ainda cabalmente compreendida, a nível internacional. Mas devemos seguramente prestar-lhe a devida atenção num momento como o actual, em que alastram em alguns países políticas de austeridade de índole marcadamente isolacionista.
Investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
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