O hino de Leonard Cohen ao mundo
O mundo está de facto a passar por uma fase de crescente instabilidade. Estamos a assistir à criação de um grande arco de violência e de conflito que passa por várias regiões – da Europa de Leste ao Médio Oriente, da Ásia Central a África do Norte, do Sahel ao Corno de África – atingindo muitos países, como a Ucrânia, Israel, Síria, Iraque, Líbia, e Afeganistão, para referir apenas alguns exemplos muito actuais.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O mundo está de facto a passar por uma fase de crescente instabilidade. Estamos a assistir à criação de um grande arco de violência e de conflito que passa por várias regiões – da Europa de Leste ao Médio Oriente, da Ásia Central a África do Norte, do Sahel ao Corno de África – atingindo muitos países, como a Ucrânia, Israel, Síria, Iraque, Líbia, e Afeganistão, para referir apenas alguns exemplos muito actuais.
O que é que todos estes desenvolvimentos coincidentes no tempo têm em comum, independentemente das diferenças entre eles e das suas causas e características próprias? A atenuação da hegemonia dos EUA. Dito de uma forma simples: goste-se ou não, apenas a enorme superioridade de poder de Washington foi capaz de manter a ordem internacional no pós-Guerra Fria. Qualquer diminuição desta significa um mundo mais instável.
Normalmente, o termo usado para designar o vasto poder dos Estados Unidos é “hegemonia americana”. Usa-se para descrever o alcance de poder que permite influenciar, de uma forma mais ou menos directa, as decisões e os acontecimentos em várias regiões do mundo. Mas hegemonia não é só isso. É uma espécie de troca tácita entre uma grande potência e um grupo de Estados do sistema internacional: o grande poder providencia uma série de bens comuns, sendo o mais importante a estabilidade política e comercial, e em troca ganha a possibilidade de organizar as instituições internacionais e escrever o “manual de instruções” sobre o que é legítimo ou não nas relações entre Estados. Enquanto a hegemonia não é verdadeiramente questionada – ou pela emergência de outras grandes potências excluídas da ordem internacional e que entendem que chegou a sua vez de determinar as regras e os valores do mundo, ou por um rotundo falhanço das políticas da grande potência que torna a defesa das regras do jogo impossível – a ordem vai-se mantendo, sofrendo pequenos ajustes, consoante os novos acontecimentos e necessidades.
No Ocidente tem sido assim desde o fim de Segunda Guerra Mundial. A partir de 1945, os Estados Unidos assumiram o seu papel de estabilizador hegemónico, construindo com a ajuda dos aliados um número sem precedentes de organizações internacionais de regulação das políticas de segurança, bem como da economia globalizada. Determinaram interesses estratégicos – fortemente ligados às rivalidades da Guerra Fria e à segurança energética –, cunharam a ordem com valores liberais e estenderam a sua influência no mundo em conjunto com os amigos europeus e japoneses.
Quando a Guerra-Fria acabou, a ordem tornou-se global e parecia à prova de bala. Os apoiantes saudavam o momento de estabilidade unipolar e os críticos preocupavam-se com a concentração de poder da “hiperpotência”. Mas o tom dominante era o do triunfalismo do Fim da História, de Francis Fukuyama, materializada durante a administração Clinton na doutrina do “Alargamento” (Enlargement) e traduzida na expansão da comunidade mundial das democracias de mercado e no alargamento da NATO, bem como da União Europeia com o apoio de Washington, a vários países do antigo bloco soviético, aspecto decisivo da ordem europeia no pós-colapso do comunismo.
O 11 de Setembro veio pôr a claro as vulnerabilidades americanas e as intervenções no Afeganistão e no Iraque, sobretudo esta, puseram em causa a legitimidade da hegemonia dos EUA e lançaram dúvidas sobre a extensão do seu poder militar. A “Grande Recessão” de 2008 (que os Estados Unidos iniciaram, mas da qual, convém dizer, já saíram), que desencadeou debates internos difíceis e divisores sobre o modelo económico americano (esses ainda a decorrer), foi a gota de água, lançando a ordem e a legitimidade de Washington numa crise que não está ultrapassada e que tem sido reforçada pela percepção generalizada da ascensão da China e pela adopção de políticas externas cada vez mais assertivas por parte da Rússia, Índia e Brasil.
A administração Obama respondeu à crise com retraimento estratégico. O retraimento consiste numa retirada parcial e temporária da hegemonia para terrenos mais resguardados. Não significa que os Estados Unidos tenham abdicado de seu papel de liderança, mas antes que, por falta de recursos, os interesses, as causas, o número e a intensidade das intervenções diplomáticas ou militares do país serão mais delimitados e alvo de uma escolha mais cuidada.
O retraimento estratégico não é necessariamente uma escolha dramática. Aliás, é uma estratégia de que os EUA fizeram uso pelo menos duas vezes durante a Guerra Fria com grande sucesso: na administração Eisenhower, para respirar do início abrupto da Guerra Fira; na administração Nixon, para fazer face ao trauma do Vietname e à crise energética e económica de 1973. O retraimento permitiu a reorganização material da hegemonia e o seu regresso em termos reforçados.
Mas o resultado positivo de uma estratégia no passado não significa o seu sucesso no presente. Além disso, ela tem consequências completamente diferentes em bipolaridade e em unipolaridade. Acresce que o retraimento tem dois riscos interligados, como sejam, uma abrupta perda de influência que pode contribuir para um declínio real – que não seria desejável para Estados que organizaram a sua política externa em torno da hegemonia Americana (como é o caso de Portugal) – e a criação de vazios de poder que permitem que tenham lugar acontecimentos internacionais trágicos, que seriam contidos caso a hegemonia tivesse uma presença mais activa.
Claro que a importância e a incidência desta hegemonia variam entre os vários casos aqui referidos. É marginal no Sahel, mas essencial na Europa de Leste e no Médio Oriente. Por exemplo, a abdicação de uma posição dura relativamente à questão da Ucrânia tem permitido a Moscovo violar as regras e leis básicas do direito internacional, como o respeito pela soberania e integridade territorial dos Estados. O mesmo no Iraque e Síria, onde os mais extremistas dos radicais islâmicos, como o ISIS, levam a cabo práticas que pensávamos que já não eram possíveis, muito menos admissíveis, perante a passividade da chamada comunidade internacional, liderada pelos Estados Unidos.
Na nossa opinião há três grandes conclusões a tirar. Primeiro, o retraimento estratégico não enfraqueceu apenas os Estados Unidos: deixou um vazio de poder que está a ser preenchido pela desordem, em muitos casos violenta, em vez de estabilidade. Segundo, a hegemonia americana, como contrato social global, está longe de estar esgotada. Apesar das inúmeras críticas que tem sofrido nos últimos anos, não existe uma fonte alternativa de estabilidade internacional. Terceiro, a alternativa é, pelo menos por agora, uma maior generalização do caos e da guerra.
Leonard Cohen quase certamente discordaria, mas nos nossos dias a fenda por onde pode entrar a luz continua a estar na América e na sua disponibilidade para voltar a exercer o poder no sistema internacional.
Diana Soller, Universidade de Miami e IPRI-UNL
Tiago Moreira de Sá, Universidade Nova e IPRI-UNL