Foi pelos ouvidos de Hugo Ribeiro que aprendemos a ouvir Portugal
Técnico de som da Valentim de Carvalho durante o período de implantação e crescimento da indústria discográfica portuguesa, é uma peça fundamental na história da nossa música, sendo responsável por desencantar soluções que permitiram o registo perfeito de álbuns sem os quais seríamos hoje infinitamente mais pobres. Do fado ao folclore.
"Já gravei em muitos países. Os italianos gravaram-me bem, mas o Hugo Ribeiro, da Valentim de Carvalho, é que grava aquela que eu acho que é a minha voz, aquela que eu oiço.” Fora daquelas paredes impregnadas de história, do estúdio de Paço d’Arcos em que Hugo Ribeiro passou boa parte da sua vida até hoje — e onde regressa ainda todas as semanas, quase aos 89 anos —, os técnicos não sabiam o que fazer às repentinas subidas de Amália Rodrigues que não só arrepiam quem ouve, como disparavam em flecha os ponteiros das mesas de som. “Quando eu canto, com os gritos que dou”, revelaria ainda a fadista ao seu biógrafo Vítor Pavão dos Santos, “aquela agulha, que não deve passar do meio, vem de baixo e passa para o outro lado, para o encarnado. (…) E fica o grito que não é grito, nem coisa nenhuma, sem timbre, nem cor. (…) Só o Ribeiro é que está habituado à minha maneira de cantar.”
“A Amália não era cantora de microfone”, diz Hugo Ribeiro à Revista 2, com a naturalidade de quem, sendo “um amador” — como lhe chama carinhosamente David Ferreira, editor da EMI-VC —, sempre soube pensar para lá dos manuais e inventar soluções práticas para os problemas que se lhe apresentavam. E Amália foi um dos melhores “problemas” que o técnico de som da Valentim de Carvalho teve ao longo da sua carreira. Ribeiro, um sedutor contador de histórias, entusiasma-se de tal forma com o discurso que os seus relatos se tornam uma matéria sinuosa, de verdadeiro prazer do lado de quem fala e do lado de quem escuta. As histórias são tantas que se atropelam e se acotovelam para lhe merecer atenção. Cada facto lembra-lhe, pelo menos, mais dois ou três. É parte do encanto de um homem com um papel crucial na música portuguesa, mas cujos créditos eram frequentemente suprimidos dos discos nos idos anos 50 e 60. “Por esquecimento”, diz , não atribuindo maldade nenhuma à grosseira negligência que era omitir o seu nome da proeza espantosa em que podia transformar-se uma sessão de estúdio.
Amália não era, então, cantora de microfone. Era mulher do povo, do fado, habituada a projectar a voz ao comando das emoções, de olhos fechados para melhor fingir que era noite, pouco dada a minudências tecnicistas de quem cantava com estudos na garganta. Com ela, não havia truques, era uma alma de comportas abertas estimulada pelos poemas que lhe despertavam o canto. Os truques ficavam por conta de Ribeiro — mas truques que, ao invés do que se fazia no exterior, se resumiam a captar a sua interpretação da forma mais natural possível. “Quando gravou em Inglaterra e noutros sítios”, lembra, “os discos vendiam-se muito bem, mas ela é que não gostava de se ouvir. Eles puseram-na a cantar como se fosse uma cançonetista ou uma cantora lírica. Mas a Amália não tinha essa técnica de se afastar e aproximar do microfone, para não saturar o som. Quando era para cantar, fechava os olhos e cantava.”
A técnica usada por Hugo Ribeiro com Amália durante largos anos, e que a cantora nunca descobriu, passava por colocar um microfone desligado diante do qual a fadista cantava pensando que era ali que a sua voz era recolhida. “Se cantasse com força, ela ia para a frente e ainda mais para cima do microfone”, o que resultaria numa voz distorcida ou numa tentativa artificial de a controlar a partir da régie que apenas roubaria o brilho da sua expressão. “Eu punha-a a cantar para esse microfone falso e depois, lá ao fundo, colocava o microfone verdadeiro.”
A diva da canção portuguesa, com quem Hugo Ribeiro gravou álbuns abençoados como Busto ou Com Que Voz, juntando à sua voz a mestria na composição de Alain Oulman, uma selecção primorosa de poesia, as guitarras encantatórias de José Nunes e (sobretudo) Fontes Rocha, e a mão de Hugo Ribeiro e Rui Valentim de Carvalho, nunca desconfiou que cantava para o microfone “errado”. Assim como nunca suspeitou que muitas gravações que tinha mandado apagar por não estar contente com o resultado tinham, afinal, sobrevivido devido a um lúcido acto de desobediência de Hugo Ribeiro. Em vez de eliminar as gravações realizadas entre 1965 e 1975, Ribeiro guardou-as nos arquivos da Valentim de Carvalho por as saber demasiado preciosas. Deixou-as repousar durante anos, até que, certo dia, bateu à porta do número 193 da Rua de São Bento que tão bem conhecia e pediu a Amália que ouvisse a música que levava consigo. Numa altura em que a voz começara já a falhar à cantora (cuja insistência em actuar, diz-se, se devia ao desejo de morrer em palco), Amália ficou de tal forma comovida ao ouvir-se naqueles registos que se agarrou a Ribeiro a chorar, agradecendo que, por uma vez, não lhe tivesse dado ouvidos. O conjunto das gravações ficaria para a história conhecido como Segredo, disco de inéditos lançado em 1997, cujo título se explica a si mesmo.
Trabalho de manhã à noite, domingos e feriados
Nascido há quase 89 anos em Vila Real de Santo António, Hugo Ribeiro faz questão de frisar que, apesar da proximidade da fronteira espanhola, é “bem português”. Com a música presente na sua vida desde cedo, nunca lhe passara sequer pela cabeça que, chegado a Lisboa aos 18 anos, depois de terminado o Curso dos Liceus, a sua caminhada profissional pudesse vir a passar por aí. A sua miragem académica estava, aliás, bem distante. “A minha mania parecia uma mania de malucos”, lembra, divertido com a revelação que se apresta a fazer. “Tinha a mania da meteorologia e possivelmente iria para uma ciência desse género. Isso era o que eu pensava na altura.” Instalando-se na casa de um tio que vivia em Lisboa, seria o primo, director de contabilidade numa firma, e muito amigo de Valentim de Carvalho, a pô-lo em contacto com o fundador da casa onde Hugo Ribeiro construiu toda a sua vida — profissional e pessoal, pois até ali encontrou o seu casamento.
Foi nos mesmos anos 1920 em que Hugo Ribeiro chegou ao mundo que Valentim de Carvalho comprou à família Neupart a casa da Rua Nova do Almada, ao Chiado, dedicada ao comércio de instrumentos musicais e partituras. Assim, o Salão Neupart, fundado pelo musicólogo alemão Eduard Neupart em 1824, transformava-se em Valentim de Carvalho-Salão Neupart. Na montra da loja, numa habilidade comercial de Valentim de Carvalho — “um homem muito inteligente e um grande negociante”, comenta Ribeiro —, a designação Salão Neupart iria mirrando cada vez mais até desaparecer por completo, ao mesmo tempo que a actividade se expandia para venda de discos de 78 rotações, com a representação portuguesa assegurada de algumas das maiores editoras internacionais. Não escondendo a admiração pelo antigo patrão, Hugo Ribeiro conta que “o senhor Valentim, para ver como tudo aquilo funcionava, empregou-se na loja e fez de tudo, até andou a limpar o chão”.
Quando foi levado a conhecer Valentim de Carvalho, o homem que pôs de pé a peça fundamental do arranque da produção fonográfica portuguesa disse-lhe que poderia continuar a estudar. “Mas não podia, era impossível — trabalhava de manhã, de tarde e de noite, domingos e feriados”, recorda não com lástima, mas com o tom de quem ao puxar o fio à meada encontra nesse período o rastilho inicial para o fulgor extraordinário da sua paixão pela música. Atrás do balcão, vendendo partituras — “dos grandes compositores mas também das partes de piano das canções portuguesas, francesas ou italianas” —, o adolescente Ribeiro havia de cruzar-se ainda com alguns antigos funcionários do Salão Neupart. Um deles, já com uma certa idade e uma referência na casa, dada a organização vertical das partituras por ordem alfabética do compositor (do A ao nível do balcão ao Z perto do tecto), informava sempre os clientes interessados em Tchaikovski ou Wagner que as peças em questão se encontravam esgotadas para não ter de se empoleirar no escadote.
Apesar de a área de negócio da Valentim de Carvalho ter chegado a expandir-se para os ferros de engomar, as máquinas de lavar, os frigoríficos e toda a sorte de aparelhos domésticos, a sua aposta seria sempre a música, através de discos e de pianos. “Tínhamos 30 ou 40 pianos alugados”, conta Hugo Ribeiro e vai buscar à memória o mirabolante transporte de um piano, com uma grua, entrando pela janela de um prédio de Alfama.
Pouco depois de entrar na empresa, Hugo Ribeiro havia de apaixonar-se por uma das empregadas da loja. “Era natural que houvesse namoros, porque os empregados eram rapazes novos e as raparigas também eram novinhas e algumas muito bonitas”, comenta. Sabendo, porém, que o patrão torcia o nariz às relações entre funcionários e, “à antiga”, mandava as raparigas para casa serem mulheres de família, Ribeiro escondeu durante cinco anos o seu namoro com Natália, uma das vendedoras da secção de discos.
Ao fim de cinco anos, em 1952, decidiu anunciar ao senhor Valentim que pretendia casar-se com uma funcionária da loja. “Sim senhor, enganaste-me”, reconheceu o patrão. “Conseguiste namorar a Natália estes anos todos e eu nunca soube. Portanto, a tua mulher pode ficar cá.” E premiou-o ainda com uma generosa quantia como prenda de casamento. Natália pôde então continuar a vender discos, território em que o marido pouco se metia. Salvo excepções, como acontecia com o cirurgião Francisco Pulido Valente, por ordem expressa de Valentim de Carvalho: “Olhe que ele é muito seu amigo, é melhor ser o Ribeiro a atender.” “Os grandes médicos de Lisboa eram todos clientes do Valentim de Carvalho”, refere com visível orgulho. “O professor Pulido Valente nunca gastava menos de sete contos em discos, principalmente música clássica e ópera. Fui eu quem o começou a atender por acaso, mas depois ficámos muito amigos.” Possivelmente, por terem descoberto na ópera um amor comum, que Ribeiro tentava sempre alimentar com idas ao Teatro São Carlos.
Os discos de 78 rotações (anteriores ao vinil) chegavam regularmente de Inglaterra, por mar, em carregamentos mensais de 500 a mil cópias e vendiam-se então a 35$ por unidade, valor que era avultado para qualquer empregado da loja, tornando os fonogramas produtos ao alcance só de carteiras abonadas. Nessa altura, antes de a Valentim de Carvalho passar a fabricar os seus próprios discos, Hugo Ribeiro ia com outros colegas da casa e um representante dos seguros até à alfândega abrir as caixas que traziam grupos de 25 discos, cuidadosamente embalados para resistirem à viagem de barco. “Só que os discos eram muito quebradiços, uma espécie de loiça”, diz. O problema, no entanto, era que por vezes as caixas eram abertas a bordo, alguns exemplares eram roubados e, dessa forma, o acolchoamento que fora pensado ao milímetro colocava repentinamente os discos à mercê do balanço provocado pela ondulação. No final da década de 40, a Valentim de Carvalho abria a sua fábrica de 78 rotações no Campo Grande.
Vendar Marceneiro para gravar o disco
A vida de Hugo Ribeiro na Valentim de Carvalho cedo começaria a fazer-se a par e passo do sobrinho do proprietário. Rui Valentim de Carvalho, cinco anos mais novo do que Ribeiro, havia de fazer o mesmo caminho do que o tio, percorrendo todos os postos possíveis na empresa antes de assumir a chefia natural. “O tio pô-lo a fazer tudo, desde limpar o chão até aprender cada pormenor sobre a casa — ele sabia arranjar pianos, sabia arranjar rádios, sabia fazer tudo aquilo”, diz com óbvia admiração. “E foi para lá quando era um homenzinho, ainda usava calças curtas.” Entre os dois rapidamente nasceu uma amizade que os aproximaria das gravações. De início, era “o senhor Cunha, chefe da secção de discos, que gravava na Valentim de Carvalho com uma máquina RCA de trazer por casa, eléctrica, que tinha um ruído de fundo por causa do motor”. Nesse tempo, quando registavam vedetas da canção portuguesa como Maria Clara ou Alberto Ribeiro, as gravações faziam-se directamente para disco, seguindo depois para Inglaterra, a fim de serem processados. Só depois eram devolvidos a Portugal e se descobria a música que verdadeiramente tinha ficado lavrada nas espiras.
Com o objectivo claro de apostar nas gravações, Rui Valentim de Carvalho convenceria o tio a investir em maquinaria mais avançada, cuja prospecção seria feita em Abbey Road, os míticos estúdios londrinos onde os Beatles deixaram a sua marca. Apaixonado eterno pela voz de Amália Rodrigues — a única artista que, apesar dos afazeres crescentes, nunca deixou de acompanhar em gravações —, o “senhor Rui”, como Ribeiro tantas vezes lhe chama, haveria de sonhar em montar um estúdio à altura da fadista. Precisamente, se os Beatles tinham Abbey Road, Amália teria os Valentim de Carvalho. Da Rua Nova do Almada a sala de gravações da Valentim de Carvalho passou então para o Clube Estefânia. “O problema aí eram os pavões”, recorda o técnico de som. Numa sala sem as facilidades de insonorização hoje quase vulgarizadas, os guinchos dos animais do jardim do Hospital da Estefânia interferiam bastas vezes com as gravações. Mas os problemas não acabavam aí. “Havia também um jogo de bilhar no andar de cima e nós dizíamos que tinham de parar, porque com o bilhar não podíamos gravar — cada vez que havia uma carambola lá se ia a gravação.” Como a direcção do clube não queria hostilizar os sócios que se entretinham com o bilhar, as gravações tiveram de migrar para outra localização.
Com a passagem para o Teatro Taborda, ainda assim, não se deu qualquer milagre. Ocupando a sala do teatro por aluguer do proprietário da Rádio Restauração, os problemas passariam a ser outros. Um deles era a preocupação com o estado do palco, especialmente numa circunstância em que Ribeiro devia gravar uma banda da Polícia, outra da GNR e ainda uma outra da Carris. “Se vou meter aqui essas bandas todas, o palco vai abaixo, que está todo podre”, queixou-se na altura. “Era um perigo, porque eles eram todos gorduchos. Muitos homens, fortíssimos, pesados, aquilo não aguentava.” Valentim de Carvalho ordenaria então uma intervenção de emergência.
Por outro lado, agora nem era tanto o ruído dos automóveis ocasionais que passavam junto à porta e parecia crescer num ricochete persistente nas paredes da sala. “Estávamos a gravar e tínhamos de parar, porque passava uma varina”, relata num cenário hoje irreal. O grito “Ó viva da costa”, apregoando a venda de peixe, era quanto bastava para arruinar um take. Por isso, confessa, preferia por vezes gravar de noite, depois de gastar as horas do dia na loja do Chiado.
Foi, de resto, nesse mesmo Teatro Taborda que, em 1960, Hugo Ribeiro criou uma noite artificial para conseguir vencer a célebre resistência de Alfredo Marceneiro a fixar a sua voz em disco. Quando Marceneiro se queixava de excesso de luz e preparava uma batida em retirada, Ribeiro lembrou-se de lhe sugerir que passasse o seu providencial lencinho do pescoço para os olhos, vendando-o e fazendo-o mergulhar como por milagre na escuridão da noite e das casas de fado onde se sentia confortável. A receita foi de tal forma bem-sucedida que Marceneiro gravou os 12 fados de seguida, à primeira, e daí nasceu um dos grandes clássicos do fado e da música popular portuguesa: The Fabulous Marceneiro.
Esta capacidade inexcedível de desencantar soluções onde parecia só haver problemas decorre, acredita David Ferreira, da não especialização de Hugo Ribeiro. “Ele é um amador no melhor sentido do termo”, defende o ex-editor da EMI-VC. “Tem a paixão de encontrar as soluções, porque ama a música que está a fazer.” Enquanto técnico de som, Ribeiro trabalhou sempre com a intuição em alerta, estudando aquilo a que chama “a psicologia de cada artista”. “Quando ia alguém gravar ao estúdio, eu tinha de conhecê-lo bem para saber como tinha de tratar com ele. E às vezes era muito difícil, porque são sempre muito nervosos e histéricos, sempre com a mania de que estão a cantar mal”, comenta em tom de desabafo.
Esta insegurança crítica viu-a em músicos que não hesita em classificar como geniais e dá como exemplo Carlos Paredes, a quem gravou as obras-primas Guitarra Portuguesa e Movimento Perpétuo. Desconfiado da qualidade do que acabava de gravar, Paredes tinha muitas vezes de ser convencido a ouvir novamente a gravação no dia seguinte, depois de acalmados os nervos da sessão.
Estúdios em Paço d'Arcos
Com Carlos Paredes, o técnico seria igualmente desafiado em termos de criatividade. Além de ter repetido a fórmula do “microfone falso” que testara já com prodigiosos resultados ao gravar Amália, outro problema havia de colocar-se a Ribeiro. Ao tocar curvado sobre si mesmo, como que sugado pela guitarra, a pesada respiração acentuada pelas suas febris interpretações acabava por ficar igualmente fixada em fita. Daí que Hugo Ribeiro tivesse, às tantas, optado por colocar uma mola no nariz do guitarrista, para que o som saísse mais imaculado.
De resto, também só o técnico parecia saber captar-lhe a torrencial sonoridade que se tornou espelho da identidade portuguesa. “Tinham a maneira de pôr um microfone em cima da guitarra e mais nada”, critica. “Julgavam que o microfone fazia tudo, mas o microfone não pensa. Depois ficava um género de arames, porque ele tocava com uma força tal que, com a compressão, ficava saturado. Era um guitarrista excepcional e, nisto, era como a Amália.”
As soluções pouco ortodoxas e profundamente inventivas de Hugo Ribeiro vinham já de trás. Ainda no tempo da Costa do Castelo (Teatro Taborda), a única câmara de eco disponível era uma pequena invenção em que “a reverberação era produzida por uma anilha de esgoto”, diz com a traquinice de quem sabe a manha que acaba de descrever. Por isso mesmo, quando partiu para uma formação nos estúdios da Pathé-Marconi, braço da EMI em França, foi avisado por João Belchior Viegas, empresário de Amália: “Tu vens de lá pior do que foste, porque vês tudo o que eles têm lá e quando chegares cá não tens nada.” E, ao assistir a uma gravação de Gilbert Bécaud, o frenético Monsieur 100 000 Volts, viu uma pequena selecção de câmaras de eco disponíveis, que contrastavam com a sua câmara improvisada.
Tudo mudou, naturalmente, quando, em 1963, se inaugurou o estúdio de Paço d’Arcos, grande investimento liderado por Rui Valentim de Carvalho — depois da morte do tio em 1957 —, muito bem apetrechado tecnicamente e calibrado com a ajuda dos técnicos de Abbey Road. Estava pronto o templo para a voz de Amália e de tantos outros que dele beneficiaram.
Se é indiscutível o papel vital de Hugo Ribeiro na gravação de muita da melhor música portuguesa do século XX, desde Amália, Carlos do Carmo (Um Homem na Cidade), Maria Teresa de Noronha, Carlos Ramos, José Afonso (antes de seguir para a Orfeu) ou Vitorino, mas também Duo Ouro Negro, José Cid, GNR, Jorge Palma, Tantra, Fernando Lopes-Graça ou Opus Ensemble, entre muitos outros (tendo também gravado Cliff Richard, Shadows e Vinicius de Moraes), o técnico tinha também uma intensa actividade fora do estúdio de Paço d’Arcos.
Quando a rede de estradas em Portugal ainda não oferecia a segurança de hoje e as viagens a rasgar o mapa demoravam longas horas a cumprir-se, Hugo Ribeiro havia de fazer-se ao caminho “num Citroën igual àqueles que serviam para as bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian, com uma parte de trás muito alta onde se metia a grande máquina antiga e pesadíssima”, para registar o folclore português. Quando viu os preparos a que o sobrinho e o amigo se dedicavam para se fazer à estrada, “o senhor Valentim” advertiu-os para o perigo de levarem uma máquina a válvulas naquelas condições, aos repelões por ali fora. “Senhor Valentim”, lembrou-se Ribeiro, “podemos encher isto de câmaras de ar de pneus de camião, põe-se por baixo da máquina e dos lados, e a máquina balança mas não cai.” Valentim de Carvalho achou graça à ideia e mandou comprar os pneus.
Nestas viagens, Hugo Ribeiro acabava por se encontrar amiúde com o poeta Pedro Homem de Mello, autor de versos para Amália como Povo que lavas no rio e conhecedor profundo dos ranchos folclóricos do Norte do país. O único senão é que, quando Homem de Mello sugeria quais os ranchos a gravar, assumidamente fazia-o também em função da escolha do restaurante onde poderiam almoçar. Depois, integrando a equipa que fazia as recolhas, quando a gravação se iniciava, menciona o técnico num espanto que não parece ter envelhecido, “ia para lá dançar com os ranchos, sabia os passos todos”. Estas suas predilecções eram de tal forma conhecidas na região que Ribeiro chegava a ver Homem de Mello chamar uns miúdos já nos tempos de carrinha Chevrolet e gravador a fita para lhes perguntar: “Sabem quem eu sou?” Eles respondiam: “Ai, sabemos, é o senhor doutor das danças!”
Sempre que podia Ribeiro levava também o equipamento consigo para as noites de estreia dos espectáculos de revista à portuguesa. “Ia sempre à première, porque sabia que muita coisa ia ser cortada pela censura”, explica. Assim, quando a PIDE mandava rasurar todo o texto cáustico e satírico cujas subtilezas lhe escapara no papel, já a versão mais punitiva para com o Governo estava devidamente salvaguardada. Por vezes, a acção da PIDE demorava meses, tempo de sobra para que até as canções chegassem a ser editadas em disco pela VC. “Eles não percebiam nada daquilo”, ri-se Ribeiro. “E às vezes o que dava intenção à letra era a interpretação do artista. Depois lá havia algum tipo que não era da PIDE, um ministro ou outro desses senhores, que dizia aos da PIDE ‘Então, vocês não cortaram aquilo?’, e lá vinham eles dar a ordem para o corte.” A título de exemplo fala-nos da revista Não Faças Ondas, estreada no Teatro Variedades em 1956, com João Villaret, Milu e Raul Solnado, em que se cantava sobre as obras na Avenida da Liberdade para receber o metropolitano e imperava o verso de sentido duplo para abrir um canudo, foi-se a Liberdade. Ou de Villaret fazendo-se de Santo António mas cantando Peço a Deus no Paraíso que me dê muitos devotos / Devotos (De votos) é que eu preciso, escarnecendo de Salazar. “Cantado pelo Villaret era tudo a rir à gargalhada. Eu ia ao Maria Vitória e saía de lá doente de tanto rir, porque era a gozar os gajos do Governo.”
Com a apreensão dos discos feita a posteriori, Hugo Ribeiro não se esquece de uma única excepção em que houve discos confiscados logo à chegada a Portugal. Um tema intitulado Der Führer’s Face, criado a partir da canção italiana Viva la Torre de Pisa, e que parodiava naturalmente Adolf Hitler. “Antes do vinil, ainda em 78 rotações, recebíamos amostras em sextuplicado — caso algum se partisse no caminho — para o senhor Cunha ouvir e fazer a encomenda. Os discos ainda nem estavam à venda e foram uns tipos da embaixada alemã à loja buscá-los. Iam lá sempre ouvir as novidades que chegavam de Inglaterra e não podíamos dizer que não. Claro que o Cunha, chefe da secção, nem ouviu os discos. Eles foram logo lá, porque sabiam quando chegavam as novidades. Na mesma tarde, apareceu a PIDE a dar ordem de prisão ao senhor Cunha. Ele negou que tivesse encomendado aquilo, mas queriam obrigá-lo a assinar um papel dizendo que era comunista. Estávamos todos aflitos, a minha mulher tinha medo de ser presa, porque também tinha andado com os discos, mas depois chegou o senhor Valentim.” E o imbróglio lá se desatou.
Orquestras de dia, fadistas noite dentro
O amargo de boca de Hugo Ribeiro com a PIDE seria outro. Em Maio de 1969, Amália embarcou numa longa digressão pela União Soviética — e por mais algumas etapas da Europa de Leste comunista —, de onde chegaram depois relatos de público lavado em lágrimas ao ouvir a fadista. “Quando conseguiu uma licença da PIDE para ir, eu estava para ir também, mas não me deixaram”, lamenta Ribeiro. “Aliás, nem o marido deixaram.” A permissão foi válida apenas para a cantora e para os músicos que a acompanhavam, sendo quaisquer outros membros da comitiva considerados excedentários. O seu interesse particular pelo território, ri-se Ribeiro, “era por bisbilhotice”. “Como não podia ir pelos meus meios, assim podia ver um país que gostava de conhecer. Gostava de ir a São Petersburgo, ver o Museu Hermitage.”
Na Valentim de Carvalho, durante décadas, Hugo Ribeiro fez de tudo, inclusivamente contratar artistas (como o Duo Ouro Negro ou os Sheiks). Foram anos a trabalhar de manhã, de tarde e de noite. Tanto gravava orquestras de dia porque estavam contratadas para actuações nocturnas, como fadistas que tinham os guitarristas às ordens da casa de fado a partir da hora de jantar. Com Amália era diferente. Foi sempre diferente. Tinha os seus músicos e gravavam mais tarde, porque era a partir da meia-noite que a fadista sentia que a sua voz tinha o véu dramático que melhor a servia.
Muitas vezes, Ribeiro visitava ainda a fadista com o amigo Rui Valentim de Carvalho e ficavam na conversa até ao nascer do sol. “Ela deitava-se às nove da manhã. Não me custava ficar a conversar até essa hora, só que depois dizia-lhe: ‘Ó Amália, você diz que é minha amiga, mas está a dar cabo de mim, porque já não me vou deitar, vou daqui para o estúdio.’ E o meu patrão Rui a dormir no chão, ao pé de mim. Quem sofria era a minha mulher, porque a Valentim de Carvalho absorvia-nos.”
E continua a absorver. Actualmente, quase com 89 anos, Hugo Ribeiro continua a apanhar o comboio para Paço d’Arcos todas as semanas e a visitar os arquivos onde foi guardando e organizando o seu trabalho de décadas, um valiosíssimo património registado em mais de quatro mil bobines. Perante o fluxo constante de reedições daquele catálogo, o seu trabalho não tem fim. E é nas suas fichas escritas à mão e na sua memória que estão guardadas as versões perfeitas de cada sessão de estúdio. Muitas das suas notas, colocadas originalmente junto das fitas, foram depois levadas para a Valentim de Carvalho no Chiado e arderam no colossal incêndio de 1988. Agora, é no saber que carrega consigo em permanência que elas se encontram. “Num país normal, o Hugo podia ganhar a vida em universidades, a partilhar com estudantes artistas e técnicos de som para que aprendessem com a sua experiência”, diz David Ferreira. E, de facto, é isso que encontramos em Hugo Ribeiro — História viva, protagonizada na primeira fila.