Passos Coelho no século XIX?
Passos Coelho terá tido uma das intervenções mais acertadas ao evocar o final do séc. XIX para contextualizar a situação de Portugal de 2011-2014, tendo em conta que aquele liberalismo sôfrego, de há mais de um século, que, por vezes, nem era liberalismo
O primeiro-ministro português, no seu discurso no Pontal, recorreu ao final do século XIX para fazer uma comparação com a situação financeira actual. Relembre-se, no entanto, que o final do séc. XIX não trouxe só a bancarrota. Não. Outras coisas estavam em causa, como a independência do país e a sobrevivência do próprio regime, significando mesmo o “fracasso do reformismo liberal” (de acordo com Rui Ramos).
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O primeiro-ministro português, no seu discurso no Pontal, recorreu ao final do século XIX para fazer uma comparação com a situação financeira actual. Relembre-se, no entanto, que o final do séc. XIX não trouxe só a bancarrota. Não. Outras coisas estavam em causa, como a independência do país e a sobrevivência do próprio regime, significando mesmo o “fracasso do reformismo liberal” (de acordo com Rui Ramos).
O “ultimato inglês” marcou a sociedade portuguesa da altura. A ameaça inglesa, a 11 de Janeiro de 1890, para a retirada portuguesa das áreas que completavam o “mapa cor-de-rosa” não é uma realidade muita distinta do domínio intimidador das instituições internacionais que controlam Portugal nos tempos de hoje. Na década de 1890, a nação portuguesa estava sob o jugo dos senhorios ingleses e alemães, hoje, por sua vez, a tutela é da troika e dos alemães. Não mudou assim tanto.
Em 1892, J.P. Oliveira Martins e José Dias Ferreira aumentaram os impostos, fizeram cortes na função pública (até cerca de 20%), deduziram 30% nos juros da dívida pública e suspenderam novas entradas na função pública. O que separa Passos Coelho (PC) de Oliveira Martins e Dias Ferreira? Não é só o tempo, mas, também, o Tribunal Constitucional. Aliás, talvez seja interessante recorrermos a uma declaração do liberal Oliveira Martins para entender algumas semelhanças: “Isto nem força tem para se sublevar. O cáustico dos impostos e deduções quase que foi recebido com bênçãos. Somos um povo excelente cujo fundo é a fraqueza bondosa e uma grande passividade”. No Pontal, PC também revela este falso carinho ao apelidar o povo português de “patriótico” e “corajoso”. Na mouche.
Em 1885, Hintze e Franco apresentam-se com a mesma veleidade intransigente de lutar pelas “reformas” que PC e Portas almejam com as “reformas estruturais”. Na verdade, Franco, a certa altura, em desespero, dizia: “Ninguém me quer ajudar numa obra de boa-fé e de boa vontade”. Relembre-se que Passos Coelho também fez choradinho semelhante com a reforma da segurança social. O fracasso do reformismo político de Franco bebeu das suas lamúrias. Do mesmo copo se deleita o Governo actual.
O que se pode tirar das décadas de 1890 e 2010? Governos que viveram e vivem à custa de impostos exagerados, com menos dinheiro, com cortes extravagantes nos salários, no entanto com mais poderes para controlar a vida pública a bel-prazer. A história é o canto que ecoa ao longo dos nossos passos. O mais belo de todos.
Em suma, Passos Coelho terá tido uma das intervenções mais acertadas ao evocar o final do séc. XIX para contextualizar a situação de Portugal de 2011-2014, tendo em conta que aquele liberalismo sôfrego, de há mais de um século, que, por vezes, nem era liberalismo (os liberais portugueses terão sido em muitas ocasiões verdadeiros fanáticos pela intervenção estatal), não é muito distinto deste neo-liberalismo barroco, dos nossos dias, que quer ser e não ser ao mesmo tempo. É sempre muito perigoso fazer analogias com o passado, todavia não me culpem. Foi o primeiro-ministro que começou.