Os “ses” dos Direitos Humanos
Cada vez estamos mais enfronhados nesta discussão dos “ses” e parece que muitas vezes já desistimos de reivindicar a inequívoca universalidade dos Direitos Humanos.
Lembremo-nos das guerras religiosas entre, por exemplo, católicos e protestantes, que, com diferentes interpretações da mesma Bíblia, nela encontraram justificação suficiente para chegar a algo tão extremo como travar uma guerra. Estas guerras buscando justificação em diferentes interpretações do mesmo texto não são exclusivas dos cristãos nem sequer das guerras de religião. Durante a designada “Guerra Fria”, os blocos “ocidental” e “soviético” acossavam-se com as suas interpretações da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH): um bloco culpando o outro por atentar contra os direitos civis e políticos, o outro bloco culpando o primeiro pelo desrespeito pelos direitos sociais. Aprendemos daqui que não basta dispor de um texto por mais consensual, claro e inequívoco que ele se apresente: sempre, esse texto será palco de múltiplas interpretações e será usado para legitimar posições que se encontram em campos opostos.
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Lembremo-nos das guerras religiosas entre, por exemplo, católicos e protestantes, que, com diferentes interpretações da mesma Bíblia, nela encontraram justificação suficiente para chegar a algo tão extremo como travar uma guerra. Estas guerras buscando justificação em diferentes interpretações do mesmo texto não são exclusivas dos cristãos nem sequer das guerras de religião. Durante a designada “Guerra Fria”, os blocos “ocidental” e “soviético” acossavam-se com as suas interpretações da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH): um bloco culpando o outro por atentar contra os direitos civis e políticos, o outro bloco culpando o primeiro pelo desrespeito pelos direitos sociais. Aprendemos daqui que não basta dispor de um texto por mais consensual, claro e inequívoco que ele se apresente: sempre, esse texto será palco de múltiplas interpretações e será usado para legitimar posições que se encontram em campos opostos.
É consensualmente reconhecido que os Direitos Humanos são uma unidade indivisível (não se pode aceitar e “escolher” só alguns deles…), interdependentes (só o reconhecimento cabal de todos os direitos assegura a existência real de cada um deles) e universais (devem aplicar-se a todos os indivíduos e a todas as sociedades políticas, sem exceção). Destas características dos Direitos Humanos, é certamente o seu caráter universal que mais é ameaçado hoje em dia. A grande pergunta e o grande desafio neste aspeto é: “Os Direitos Humanos são mesmo universais?”
Sabemos da complexidade da resposta: no plano mundial, o mapa do cumprimento efetivo dos Direitos Humanos é extraordinariamente dececionante. Darei cinco rápidos exemplos: 1) existem milhões de pessoas que vivem sob regimes ditatoriais, 2) existe no século XXI escravatura e tortura, 3) largos extratos populacionais são refugiados do seu país (batemos recentemente este triste recorde), 4) o acesso à educação, saúde e subsistência básica é ainda inacessível para uma maioria da população mundial, 5) há milhares de milhões de pessoas em situação de pobreza extrema. Isto no panorama mundial. Mas… como se comporta a universalidade dos DH entre nós?
Frequentemente, ouvimos opiniões que procuram ligar os Direitos Humanos não a um direito universal e inalienável mas a uma condição de merecimento. Assim, não bastaria ser pessoa para usufruir dos Direitos Humanos, seria preciso um julgamento sobre o merecimento que essa pessoa deveria ter para poder usufruir deles. Os Direitos Humanos têm que ser merecidos? E qual é o patamar a partir do qual eles se encontram satisfatoriamente exercidos?
Vejamos por exemplo o caso da Educação. Dizer e cumprir que “Todos têm direito à educação” (art. 26.º da DUDH) é louvável mas… têm direito até que nível de Educação? E a formação profissional é um direito? E a educação de qualidade é um direito? E o apoio em caso de dificuldades escolares, é um direito? E a escola a tempo inteiro é um direito? E a educação Inclusiva é um direito? Na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), introduz-se um conceito curioso que é o de reasonable accomodations (traduzido para português por “adaptações razoáveis”). Curioso porque remete para uma interpretação do que é “razoável” ou “satisfatório” ou “adequado”. E, aqui, estamos a pisar um terreno aberto a diferentes interpretações: o que é razoável para uns pode ser inaceitável para outros.
E assim se juntam diferentes “ses” aos Direitos Humanos. Direito à Educação? Sim… e até onde? Até haver meios, técnicos disponíveis, possibilidades, orçamento, se estiver no tempo certo e no lugar certo… Cada vez estamos mais enfronhados nesta discussão dos “ses” e parece que muitas vezes já desistimos de reivindicar a inequívoca universalidade dos Direitos Humanos. Direitos Humanos para todos, porque todos têm uma dignidade intrínseca e a possibilidade de realização autónoma e plena de projetos de vida. Agora é tempo de lembrar que direitos não têm “ses” e esta palavra, “se”, está ausente dos documentos fundadores, reguladores e inspiradores dos Direitos Humanos. É muito importante, no momento de crise de finanças e de valores que estamos a atravessar, reafirmar que não basta um cumprimento formal, um “faz de conta”, uns “serviços mínimos” para assegurar a universalidade dos Direitos Humanos. Precisamos de continuar a bater-nos por Direitos Humanos que não sejam uma cosmética, que não sejam só uma formalidade. Densificar os Direitos Humanos? Sim, é isso: torná-los mais espessos, mais complexos, mais sólidos, mais direitos e mais humanos. Sem “ses”.
Professor universitário, presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial