A construção de um mito
Portugal à Gargalhada, de Filipe La Féria Teatro Politeama, 15 Agosto 2014, 21h30, sala cheia
Mas, ao mesmo tempo que os vários quadros vão passando, sem imprimirem grande marca, vai-se revelando uma camada interior de subtexto sobre a dificuldade em construir parábolas ou metáforas sobre a realidade nacional.
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Mas, ao mesmo tempo que os vários quadros vão passando, sem imprimirem grande marca, vai-se revelando uma camada interior de subtexto sobre a dificuldade em construir parábolas ou metáforas sobre a realidade nacional.
O texto, protegido por uma estrutura em verso que às vezes parece limitar a liberdade dos actores, pode por vezes ter alguma graça mas, na maior parte das vezes, apenas faz sorrir por força de um reconhecimento da situação ou por uma aproximação à actualidade.
Mas, ao longo de quase duas horas e meia, Portugal à Gargalhada está longe de ser o mais inspirado espectáculo de La Féria e perguntamo-nos porquê. Onde está a sátira mordaz sobre as características da sociedade portuguesa que haviam permitido estruturar as adaptações de A flor do cacto (2011) e A Gaiola das Malucas (2010) a partir daquilo que são as fachadas da sociedade portuguesa? E onde ficou a capacidade de ler nas relações de intimidade e cumplicidade entre os mitos e heróis e os seus públicos um modo de se ser português que estava na base de Uma noite em casa de Amália (2012)?
Sobra muito pouco disso, e até mesmo de uma força sustentada na adaptação de composições do teatro musical norte-americano, como acontecia em Grande Revista à Portuguesa (2013). O que há é, em vez disso, um trabalho de construção de um discurso sobre como se pode representar um país habitado por “ceguetas, burlistas e tesos”.
A opção de La Féria passa por justapor as regras experimentadas do teatro de revista à realidade de um país “pobre e destruído”. Por exemplo, o quadro Tordo onde José Raposo interpreta Tourada, de Fernando Tordo, serve para o tradicional número sério que aproveita a desesperança protagonizada pela ida para o Brasil do cantor numa reconstrução daquilo a que, na própria revista, se definia número patriótico.
Do mesmo modo, no quadro Rasca Diva, a utilização de versos de fados para cantar árias de ópera, permite opor a denúncia do elitismo à ideia de transversalidade da revista, recuperando a tradição de trazer para o palco da revista os sucessos musicais da época. Infelizmente, um e outro caso – independentemente da qualidade dos dois actores, José Raposo e Marina Mota – estão demasiado colados a dois quadros criados este ano na revista Tropa Fandanga, do Teatro Praga, onde José Raposo também desmontava a imagem de um país moderno cantando a mesma Tourada e Filipa Cardoso, enquanto Nossa Senhora de Fátima, explicava aos portugueses como se podia exportar o fado com músicas de sucesso internacionais.
E, no entanto, são dois exemplos funcionais, onde a técnica se coloca ao serviço da máquina e conseguem descolar da mediania que ressalta do conjunto do espectáculo. Quadros como aquele onde se brinca com o canhão da Nazaré ou os desfiles de moda, são exemplos da bonomia com que o espectáculo se vai desenrolando, sem que os exemplos de teatro musical (ouvem-se, por exemplo, adaptações de Anything Goes e Evita) construam, ao nível do texto, aquilo que, por exemplo, cenários e figurinos (La Féria e José Costa Reis), ou mesmo a coreografia (Marco Mercier) permitem: disfarçar uma profunda sensação de vazio com a qual o espectáculo nos deixa.
Por vezes são apenas os actores, quando conseguem construir por cima do funcionalismo da encenação e da dramaturgia, as razões para continuar a acreditar na resiliência estruturante de Portugal à gargalhada. Se Maria João Abreu tem pouco para fazer e, nesse pouco, os seus quadros são insistentemente auto-ficcionais (Mamãe quero ser artista, Maripepa e Paquito Caracol aproveita-se do historial pessoal da actriz para capitalizar sobre a simpatia que seu o talento provoca), é quando finalmente se encontra com Marina Mota – numa recriação do dueto Bosom Buddies, do musical Mame (1966, com Angela Lansbury e Bea Arthur) – que vemos escapar o potencial de uma revista que quer ser um musical e que tinha os actores indicados para isso. Nessas alturas optamos por esquecer os problemas de ritmo, o playback, a descoordenação entre técnica e interpretação e um corpo de baile servil.
Na maior parte dos quadros que não são dispensáveis (O Bebé de Paris, com Raposo, à cabeça), é na dedicação dos actores (Paula Sá à cabeça) que o espectáculo cresce, porque é através deles que a sátira surge, aplaudindo-se quando se a situação é reconhecível ou verosimilhante e não, necessariamente, pela graça que provoca. São os casos de Marina Mota em Viva Lisboa, onde a transformação da nevrose em energia dos problemas de uma mulher na cidade é uma alusão directa ao quadro da Olívia criada e Olívia patroa com o qual a mesma actriz homenageava Ivone Silva na revista anterior, e de Joaquim Monchique que sustenta Panteonite Nacional, quadro morno onde os mortos do Panteão Nacional dizem de sua justiça sobre o país, e o actor recupera a sua interpretação de Amália Rodrigues criada em 1997 para a série Herman Enciclopédia.
Talvez seja a condição do país e, talvez por isso, se possa assim justificar que seja o efeito visual a compensar o que a palavra não consegue, no que seria uma irónica reviravolta sobre a fachada que o próprio espectáculo quer denunciar. Do mesmo modo, a recorrência ao auto-elogio, mesmo que paródico, de quem ainda resiste (ou insiste) em fazer revista nos quadros de abertura e encerramento, ou as cartas de amor ao teatro e aos artistas como mecanismo para a evasão e para o alimentar da ilusão dos próprios espectadores, acentuam a solidão em que este espectáculo se inscreve, e nos deixa mesmo que continuem a prometer – e eventualmente garantam à maioria do público “uma noite bem passada, alegre e bem humorada”.