Para o making of de Condor, o livro
1. Este é o meu segundo Verão de 2014. O primeiro aconteceu no Rio de Janeiro. Foram meses estranhos, Janeiro, Fevereiro, cheios de coisas inéditas. Tenho a sensação de mal ter dormido durante semanas. Eu morava num quarto onde o sol começava a bater às seis da manhã, recordes de calor nas notícias. Dia e noite era como ter sempre febre. Uma das coisas inéditas, aliás, foi uma febre tão persistente que tive de levar um antipirético na veia. Nunca tenho febre, mas não era um Verão comum. Foi nesse quarto que conheci os fantasmas do Condor. Eles tornaram-se parte do quarto, povoavam-no, eu adormecia a pensar neles, e não adormecia. E agora estão aqui, em cima da minha mesa no Alentejo, memória impressa em prata, como diz a dedicatória do João Pina, prata sobre negro, que é o fundo de onde esta história emerge.
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1. Este é o meu segundo Verão de 2014. O primeiro aconteceu no Rio de Janeiro. Foram meses estranhos, Janeiro, Fevereiro, cheios de coisas inéditas. Tenho a sensação de mal ter dormido durante semanas. Eu morava num quarto onde o sol começava a bater às seis da manhã, recordes de calor nas notícias. Dia e noite era como ter sempre febre. Uma das coisas inéditas, aliás, foi uma febre tão persistente que tive de levar um antipirético na veia. Nunca tenho febre, mas não era um Verão comum. Foi nesse quarto que conheci os fantasmas do Condor. Eles tornaram-se parte do quarto, povoavam-no, eu adormecia a pensar neles, e não adormecia. E agora estão aqui, em cima da minha mesa no Alentejo, memória impressa em prata, como diz a dedicatória do João Pina, prata sobre negro, que é o fundo de onde esta história emerge.
2. Condor ou Cóndor, dependendo da língua, estará daqui a um mês nas livrarias, em tripla edição, português, inglês e espanhol, e é o resultado de nove anos de trabalho em seis países da América Latina, frequentemente interrompidos por outras reportagens. Pesquisa, entrevistas e fotografias de João Pina, o fotógrafo mais obstinado que conheço. É também o mais obstinado dos meus amigos próximos. De momento, aliás, não me ocorre ninguém, próximo ou remoto, mais obstinado. Mas só um obstinado pode transportar tantos milhares de fantasmas na bagagem, de um continente para outro, antes de completar 34 anos.
3. Para quem não sabe o que foi a Operação Condor que dá nome ao livro, cito a definição do juiz espanhol Baltasar Garzón no posfácio: “Uma operação diabólica de alguns serviços secretos, coordenada pela CIA e pelas ditaduras militares latino-americanas e destinada a aniquilar os movimentos de esquerda na região, através da detenção, da eliminação e do desaparecimento de dirigentes políticos, sindicais ou sociais de países como a Argentina, o Chile, o Paraguai, o Uruguai, a Bolívia, o Brasil, entre outros.” A partir de 1975, “o terrorismo de Estado instalou-se na América Latina e semeou o terror, o desaparecimento forçado de pessoas, as execuções sumárias, a tortura e o roubo de crianças”, escreve Garzón. A “repressão alcançou níveis nunca imaginados, que hoje estão a ser investigados em alguns países”, enquanto outros mantêm o silêncio, ou seja, a impunidade.
4. O prefácio de Condor é do repórter Jon Lee Anderson, parceiro do João em trabalhos para a New Yorker e um perito na América Latina. Cito a palavra dele que me devolveu com exactidão aquele meu quarto no Rio de Janeiro, onde as figuras da Operação Condor iam chegando como assombrações: haunting. E agora o livro existe, espesso, denso, negro, claro, matéria-prima para assombrar o silêncio como o João sonhou até ao último detalhe do tecido que cobre a capa, da margem do texto no papel, da impressão afinada na gráfica em muitas madrugadas.
5. Fui ao lixo do computador ver os restos desse Verão no Rio de Janeiro. Até 14 de Fevereiro existem documentos com nomes como Maurice Politi_cortar.docx ou Sebastia?o Curio?_cortar.docx. Porque o livro ia incluir cerca de 20 retratos de sobreviventes, em cima dos quais haveria uma folha de papel vegetal na qual todo o texto teria de caber. Esse texto era sempre a dolorosa síntese de horas de conversa do João com o retratado. Ele desgravava horas, fazia uma primeira versão e mandava-me. A minha missão era reduzir torturas, estupros, valas comuns, exumações de cadáveres a 3500 caracteres, ou seja, metade desta crónica. Praticamente sem dormir desde o ano anterior, o João suava para mandar versões razoáveis, digamos menos do dobro, mas às vezes não dava mesmo e lá vinha um lençol, como aconteceu com Sebastião Curió, um capitão exterminador da guerrilha, e portanto ao serviço do Plano Condor. Foi o texto mais difícil de cortar, aquilo sobrava por todas as partes, fui com ele para São Paulo, quando tive de sair do Rio numa emergência. Entretanto, em Lisboa, na tinta-da-china, o paginador Pedro Serpa já tinha experimentado cerca de 473 sequências de fotografias, conforme o João ia matutando no puzzle da Operação Condor. O meu recreio com o Pedro era pensar numa t-shirt para o lançamento: Eu sobrevi à Operação Pina.
6. Mas, no meio da dilapidação dos fantasmas, de vez em quando dava para sorrir com as excepções, como quando um guarda aceitou levar um bilhete de um torturado com pau de arara (corpo pendurado nu de cabeça para baixo, barra de metal nos joelhos, choques elétricos e espancamentos). Esse torturado era o brasileiro Maurice Politi, e o bilhete era para o pai, a avisá-lo de que estava preso, e portanto vivo. Anos depois, ao ser libertado, Politi soube que o bilhete fora entregue, e que quando o pai quisera gratificar o guarda ele recusara.
7. A única sobrevivente que eu conhecera em carne e osso fôra Mirta Clara, uma argentina. Porque no começo de 2012 voei do Rio de Janeiro para Buenos Aires, coincidindo com uma altura em que o João lá estava, porteño intermitente que é, há anos. Passeámos, bebemos, comemos, como sempre fazemos, e houve uma tarde em que o João tinha de retratar uma ex-prisioneira política para o seu projecto Condor, já então lendário para mim e umas boas dezenas de apoiantes que o subscreviam em crowdfunding. Por acaso, ele precisava de quem lhe segurasse o reflector. Lá fomos buscar Mirta a casa e daí para o Rosedal, jardim com jardim de rosas. Sentada contra o poente, Mirta olhou bem a direito a câmara. Eu segurava um reflector gigante, tentando manter-me quieta. Os turistas brasileiros que enchiam o jardim deviam achar que aquela senhora era alguma actriz famosa. Só no Verão de 2014, quando o João me mandou o texto para cortar, entendi o que queria dizer ex-prisioneira política no caso dela. Na versão cortada do texto, resume-se assim: “Mirta é interrogada e torturada durante vários dias ao longo de um mês: eletrocutada numa cama de metal, privada de água. Lembra-se de ter bebido a própria urina para acalmar a sede. Em Maio de 1976 dá à luz, algemada, o filho Juan Andrés, que mais tarde lhe será retirado e entregue à família.” Seguem-se sete anos de prisão.
8. “Essa luz é tua”, mentiu o João quando cheguei à fotografia de Mirta no livro. Foi domingo passado, na noite daquele luarão. O João veio ao Alentejo trazer o livro antes de voltar para Buenos Aires, passeámos, comemos, bebemos, como sempre fazemos, desta vez nem meio copo, porque ele ia voltar para Lisboa a conduzir, mas metade de meio copo para brindar ao Condor. Claro que a luz era do reflector, e o reflector estava onde o João decidira. Este livro é ele, nove anos de decisões e centenas de aviões. A única fotografia que eu ainda não vira é a última, que mostra Luciana Ogando num cemitério, à procura do pai. A Luciana é argentina e nasceu na prisão. A mãe foi prisioneira política. Não se sabe exactamente onde está sepultado o pai, algures naquele cemitério. Então, além de Mirta, a Luciana é a outra retratada que conheço em carne e osso, porque, como o João diz nos agradecimentos do livro, uma noite de sexta-feira ela sentou-se em frente a ele, e está ao lado dele desde então.