Partidocracia e carreirismo
A crítica dos partidos, num momento especialmente delicado para as democracias representativas é um dever de consciência. Não se trata de uma campanha “anti-partidos”, mas sim de um alerta para os perigos para a democracia do seu fechamento e das suas perversões internas. As actuais estruturas partidárias algum dia serão forçadas a fazer a autocrítica. Podem é já não ir a tempo. Nada é eterno e os partidos também se fragmentam e morrem, ou podem renovar-se, o que, perante o actual cenário, parece uma miragem. É mais provável que sejam ultrapassados por outras propostas, linguagens e plataformas de participação e acção, vindas da sociedade.
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A crítica dos partidos, num momento especialmente delicado para as democracias representativas é um dever de consciência. Não se trata de uma campanha “anti-partidos”, mas sim de um alerta para os perigos para a democracia do seu fechamento e das suas perversões internas. As actuais estruturas partidárias algum dia serão forçadas a fazer a autocrítica. Podem é já não ir a tempo. Nada é eterno e os partidos também se fragmentam e morrem, ou podem renovar-se, o que, perante o actual cenário, parece uma miragem. É mais provável que sejam ultrapassados por outras propostas, linguagens e plataformas de participação e acção, vindas da sociedade.
Sabemos bem que todas as estruturas organizativas, à medida que crescem, caem em algum grau de perversão burocrática. Como mostrou Max Weber, os burocratas furtam a toda a crítica os seus conhecimentos e actividades e, na sua propensão ao secretismo, a burocracia perde eficácia à medida que se estende, cedendo o lugar a um “círculo vicioso de ritualismo”, que alimenta o poder paralelo das oligarquias. Os grandes partidos abdicaram há muito do debate democrático interno, inicialmente a pretexto do que alguns consideraram a “morte das ideologias”, em favor de poderes e interesses ocultos. Mesmo na preparação dos seus congressos prevalece, como é público e notório, a conhecida propensão para a “contagem de espingardas”; ou seja, trata-se apenas de cada adversário olear a sua “máquina”, angariar apoios financeiros e iniciar a “contagem” de quem está com quem e ver como reforçar as hostes de cada um dos “exércitos”.
É claro que cada candidato (seja às lideranças nacionais, seja às locais) repete sempre a ladainha da “unidade” e promete que, após o acto eleitoral ou o congresso, a “família” reencontra de novo a “harmonia”. Infelizmente, até o mais ingénuo militante sabe bem o grau de cinismo e falsidade dessa retórica.
Muitos dirigentes partidários (e isto não é exclusivo de um partido) são incapazes de “enxergar” a diferença entre a “língua de pau” e a ética política. A própria “lei de bronze da oligarquia”, de R. Michels, sai fora desta matriz, visto que as atuais nomenklaturas lhe imprimiram novas e ainda mais perversas dimensões. Na lógica dos “apparatchiks” de serviço instalou-se o princípio da “partidite”, no qual impera a mesquinhez e o oportunismo. Foi ele que desencadeou a recente “purga” no seio do PS, de consequências imprevisíveis para o futuro, mas desde já desastrosas do ponto de vista da cultura democrática e pluralista, desde sempre assumida pelo partido. O jogo de simulacros e o ritualismo que estes sistemas encerram condensam uma mistura de burocracia com carreirismo. É uma cultura organizacional própria de organizações que, além de oligárquicas, encerram uma dinâmica centrípeta, propensa ao autofechamento e à negação da realidade exterior que a envolve (neste caso, a sociedade e as pulsões colectivas que dela emanam).
Os movimentos “inorgânicos” são exemplos de fenómenos sociais que a partidocracia tende a diabolizar (embora, em geral, sob um discurso de condescendência). São os sinais vindos de fora que a “estrutura” partidária deixou de saber interpretar, dada a espiral de autojustificação em que se deixou afundar. Quando tenta resolver problemas de bloqueios e entropia, o sistema burocrático típico responde criando novas instâncias burocráticas, e assim se vai deixando afundar como um grande Titanic, ainda que os violinos continuem a tocar.
Os partidos de poder tendem a esquecer os velhos valores e a abandonar a própria ideologia de raiz (quando muito invocam-na como mera retórica). Assim, em vez do debate de ideias – tão urgente na época de indefinições e perplexidades em que vivemos –, o modo de estar do militante comum na vida partidária centra-se no detalhe e obedece a um plano de vida onde as necessidades imediatas, a garantia do emprego do familiar, a dependência do favor do respetivo tutor, etc., aconselham a ser fiel ao “alinhamento” em que se colocou. Em geral, a carreira do militante-base é precedida da do “padrinho”, a quem o “aprendiz de político” (como o burocrata) se dedica afanosamente e para quem já terá dado amplas provas, acumulando “fichas” e sindicatos de voto, isto é, alimentando as dependências e “lealdades” que o seu cacique-mor foi construindo, a custo, para chegar onde chegou.
Neste sentido, os “profissionais” do aparelhismo que proliferam nos grandes partidos (o PS e o PSD são semelhantes), os chamados “carregadores de piano”, vêm fazendo carreira e aprimorando os seus dotes estalinistas (nalguns casos iniciados noutras “escolas”), por vezes adornando o seu status com o verniz de uma qualquer licenciatura feita à pressa. O cinismo e a habilidade com os jogos de poder vão-se tornando mais sofisticados à medida que se desfazem e refazem inimizades e alianças, se traficam influências e se acede a posições de autoridade na estrutura. Podem depois surgir as cartadas maiores, nas quais o poder se estende a outra escala, em especial quando o partido ascende ao poder. Aí, entra-se numa outra dimensão, na qual o mundo dos negócios (por vezes legítimos e legais…) está mais à mão e os privilégios deixam de se medir pelo número de “fichas” (ou de votos) conseguidas. Ler Maquiavel seria uma redundância. A prática ultrapassou a teoria. Sociólogo, professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra