“Gosto muito de tocar em festivais, mas o Bons Sons é indescritível”
Há os concertos, prova da diversidade e vitalidade da música feita hoje em Portugal, e há o resto: o público diversificado e a aldeia que o acolhe generosamente. “Gosto muito de tocar em festivais, mas o Bons Sons é indescritível”, disse Samuel Úria. Não estava a mentir.
Sexta-feira à noite, madrugada alta, o largo estava cheio: os extraordinários Gaiteiros de Lisboa uniam as vozes num canto poderoso: “toca gaiteiro que nós dançaremos!” E sim, tudo dança esta Lenga lenga entoada ao sopro das gaitas e da percussão tonitruante. “Muito obrigado, Bons Sons, vocês são demais”, agradecerá Carlos Guerreiro, antes do encore, antes da vénia final de tudo o grupo. Um grande concerto num dia deles recheado. Antes dos Gaiteiros, no Palco Eira, Capicua, acompanhada como habitualmente pelo DJ D-One e pela MC M7, apresentara Sereia Louca, o seu último álbum, perante uma eira repleta de gente: as palavras são uma arma (“E no Portugal quem consegue resistir? / Quem consegue ver o país mingar sem fazer nada? / É de fazer atirar as pedras da calçada”); as palavras, assim ordenadas, assim lançadas sobre batida hip hop clássica, impregnada de história (José Afonso a ouvir-se, memória viva, presente), são um maná para os nossos ouvidos (o sample de guitarra dedilhada a dar balanço aos versos: “eu tenho um búzio que me diz coisas estranhas ao ouvido / eu tenho um coração de esponja que cresce com a tristeza”). Voz íntima e voz activista, de uma riqueza lírica inspiradora, cantará a sua Casa no campo no cenário mais adequado: “Qual é o teu perfume favorito? Pão quente, terra molhada e manjerico”. E adaptará o groove irresistível de Vayorken à ocasião: “Em Cem Soldos, a gente diverte-se imenso”.
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Sexta-feira à noite, madrugada alta, o largo estava cheio: os extraordinários Gaiteiros de Lisboa uniam as vozes num canto poderoso: “toca gaiteiro que nós dançaremos!” E sim, tudo dança esta Lenga lenga entoada ao sopro das gaitas e da percussão tonitruante. “Muito obrigado, Bons Sons, vocês são demais”, agradecerá Carlos Guerreiro, antes do encore, antes da vénia final de tudo o grupo. Um grande concerto num dia deles recheado. Antes dos Gaiteiros, no Palco Eira, Capicua, acompanhada como habitualmente pelo DJ D-One e pela MC M7, apresentara Sereia Louca, o seu último álbum, perante uma eira repleta de gente: as palavras são uma arma (“E no Portugal quem consegue resistir? / Quem consegue ver o país mingar sem fazer nada? / É de fazer atirar as pedras da calçada”); as palavras, assim ordenadas, assim lançadas sobre batida hip hop clássica, impregnada de história (José Afonso a ouvir-se, memória viva, presente), são um maná para os nossos ouvidos (o sample de guitarra dedilhada a dar balanço aos versos: “eu tenho um búzio que me diz coisas estranhas ao ouvido / eu tenho um coração de esponja que cresce com a tristeza”). Voz íntima e voz activista, de uma riqueza lírica inspiradora, cantará a sua Casa no campo no cenário mais adequado: “Qual é o teu perfume favorito? Pão quente, terra molhada e manjerico”. E adaptará o groove irresistível de Vayorken à ocasião: “Em Cem Soldos, a gente diverte-se imenso”.
Antes do Gaiteiros e de Capicua, no Palco Giacometti de onde sairiam os burros mirandeses na manhã seguinte, Samuel Úria, só em palco, foi Neil Young pela intensidade folk que arrancava da guitarra acústica, foi Lennon (o visto em concerto em telhado londrino) de camisa havaiana, cabelo longo soprado pelo vento. Foi nada disso. Apenas Úria: impressionado pelos tantos que lhe sabiam todas as letras, que pediram “canções obscuras” no encore (saiu uma Ovelha perdida que passou de obscura a verso cantado pelo público), entregue ao momento como homem do rock’n’roll com palavras de cantautor particularmente inspirado na ponta da língua: e ouviram-se as de Lenço enxuto, Teimoso, Não arrastes o meu caixão ou Barbarella e barba rala. “Gosto muito de tocar em festivais, mas o Bons Sons é indescritível”, dirá o bardo. “É a aldeia, são as pessoas da aldeia, é a organização onde estão as pessoas da aldeia. São vocês.” Samuel Úria tinha razão.
Há crianças a ondular os braços como o público nas primeiras filas no concerto de Capicua, há um velhote muito velhote, cansado mas feliz pelas andanças do dia, a dormitar num banco no Largo Rossio, abençoadamente alheio à azáfama à sua volta. Há novos e velhos, freaks e arranjadinhos, famílias a mostrar a aldeia aos filhos e grupos de adolescentes felizes como são os adolescentes no Verão. Samuel Úria apresenta uma música dedicada à sua terra e solta-se um grito entre o público (“Tondela!”), passeamos pelo recinto e vamos ouvindo: sotaque alentejano, sotaque minhoto, sotaque açoriano, ou não houvesse parceria entre o Cem Soldos e o Walk & Talk, o festival de arte urbana de Ponta Delgada. O país todo em harmonia feliz numa pequena aldeia de Tomar. Mais que o país: há aquele grupo de espanhóis surpreendido pela actuação dos Gaiteiros, com os seus São Joões pouco católicos, com as suas Avis raras, dedicadas “a todos os canalhas que no Governo nos sugam o sangue”, com os seus Macaréus, que se entregam àquela música que inventa uma nova tradição feita transe para dança comunal: “Toquem gaiteiros, que nós dançaremos.” E oh, como dançámos.
Dançámos tanto como nos emocionáramos, horas antes, com o fado na Eira – a diversidade também é uma arma, e na noite de Cem Soldos deparámo-nos com a riqueza da que por cá se faz, hoje: saltámos do fado para a folk épica dos Brass Wires Orchestra, deles para cantautor com sangue na guelra, daí para hip hop, daí para a tradição revisitada dos Gaiteiros, deles para o bom gosto do set de Moullinex. O fado na Eira, dizíamos. Gisela João, voz tão cheia, alma posta em cada palavra, a vida vertida em canção: há festa (“lá na minha aldeia, não se vira o vira a bater o pé”), há uma dor que conforta e arrepia (Meu amigo está longe), há o fado totalmente fado (o Voltaste de Beatriz da Conceição), o improviso a capela quando a guitarra de Ricardo Parreira o trai com uma corda partida. Gisela João enche os pulmões de ar e a voz solta-se rica e tremendamente expressiva, o corpo move-se ao sabor das palavras. O contraste entre Gisela, fadista não maior que a vida, precisamente do tamanho da vida, e Gisela, a rapariga de voz doce e muito sorridente que fala entre canções, é quase comovente. O conjunto é, e isso certamente, irresistível.
Desde o primeiro dia de Bons Sons, quarta-feira, com a recepção ao campista, passaram por Cem Soldos 15 mil espectadores. O festival recebe este sábado Ricardo Ribeiro, Tiago Sousa, Torto, Noiserv ou Osso Vaidoso e termina domingo com A Presença das Formigas, António Chaínho, First Breath After Coma, Ermo, Amélia Muge ou Sérgio Godinho.