Nem os cientistas escapam ao rótulo do trolha português

Perante a nova vaga migratória, o PÚBLICO desafiou os leitores residentes no estrangeiro a revelarem com que estereótipos de português se confrontam.Subsiste a imagem dos velhos fluxos migratórios.

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As ideias feitas variam de país para país, mas algumas repetem-se, como a de que as mulheres trabalham na limpeza e os homens na construção civil Fernando Veludo/nFACTOS

A cena foi descrita numa mensagem enviado por Ana Henriques, uma secretária executiva de 41 anos, em Julho, quando o PÚBLICO desafiou os leitores residentes no estrangeiro a narrarem episódios susceptíveis de revelar com que estereótipos de português se confrontam. Em poucos dias, chegaram ao jornal mais de 100 emails de 34 países, de quatro continentes.

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A cena foi descrita numa mensagem enviado por Ana Henriques, uma secretária executiva de 41 anos, em Julho, quando o PÚBLICO desafiou os leitores residentes no estrangeiro a narrarem episódios susceptíveis de revelar com que estereótipos de português se confrontam. Em poucos dias, chegaram ao jornal mais de 100 emails de 34 países, de quatro continentes.

Todas as sociedades estabelecem diferenças entre “nós” e “eles”, explica Elsa Lechner, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, autora de um projecto de investigação sobre emigrantes em Newark, Paris e São Paulo.  Decorrem da definição de pertença, ajudam a ler o mundo, só que não são neutras, tendem a associar-se a preconceito e a discriminação. Frente à nova vaga migratória, parece-lhe que o país “precisa muito de aprofundar o conhecimento” sobre esta matéria.

Os relatos sobre mulheres de buço e homens de bigode repetiam-se em sucessivas mensagens enviadas por residentes no Brasil e em França. Evocavam os camponeses pobres e analfabetos dos velhos fluxos migratórios. É quase sempre assim, afiança João Peixoto, do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa: “Os estereótipos [de etnia e nacionalidade] têm muito a ver com o contexto, com as épocas dos grandes movimentos migratórios.”

Descreveu o leitor Francisco Santos Marques, engenheiro civil de 29 anos, há dois no Rio de Janeiro: português que é português chama-se Manuel, Joaquim ou Maria, tem bigode e padaria, é um pão duro, isto é, um forreta, e um burro armado em esperto. Aliás, “burro e português são sinónimos”.

Num texto publicado na Revista Etnográfica, o antropólogo Robert Rowland vai à origem dos estereótipos que fazem dos portugueses protagonistas de anedotas meio século depois da grande vaga para o Brasil ter terminado. Remontam ao final do século XIX, ao período que se seguiu à abolição da escravatura. Desdobravam-se então entre o “comerciante rico, explorador e usurário”, que preferia empregar caixeiros portugueses, e o assalariado “burro de carga que, ao aceitar (estupidamente) condições de trabalho que o brasileiro (esperto e malandro) recusaria, praticava uma concorrência desleal”. E a sua persistência até hoje reflecte o decréscimo da presença dos portugueses no Brasil.  

Os rótulos dos brasileiros em Portugal têm origem mais recente - baseiam-se na vaga migratória que atingiu o pico entre 1993 e 2003. E também não são bonitos, mostram os estudos da socióloga Beatriz Padilha, da Universidade do Minho. Os portugueses vêem os brasileiros como “mentirosos”, “malandros”, “sempre prontos para ir para a festa”, e as brasileiras como “sensuais”, “fáceis” ou mesmo “prostitutas”. Efeito de fenómenos como o das "mães de Bragança".

É uma “carga muito forte” a que as mulheres brasileiras carregam, salienta aquela investigadora. Torna mais difícil criar laços de amizade com portuguesas, que temem ficar sem maridos, companheiros ou namorados. Levanta suspeitas sobre as suas competências maternais. É mais fácil lidar com o estereótipo de padeiro, que os portugueses enfrentam no Brasil ou na Venezuela, ou de trolha, com que se confrontam em França, no Luxemburgo, na Suíça ou no Canadá.

No ano passado, João Gonçalves, bolseiro de pós-doutoramento no Samuel Lunenfeld Research Institute, no Canadá, foi acampar com uns colegas. O homem que lhes alugou umas canoas quis saber de onde eram e o que faziam. Quando João lhe disse que era português e cientista, ele fez um ar de espanto: “Você é o primeiro português que conheço que não está a deitar cimento!”

No Luxemburgo também é grande a tendência para reduzir os cidadãos de nacionalidade portuguesa à construção e à limpeza. Pedro Neto, um engenheiro informático de 33 anos, dá-se conta disso desde que no ano passado aceitou um convite para trabalhar numa consultora de software. Numa recente ida ao dentista, deparou-se com ruidosas obras no quarteirão. Ao sabê-lo português, perguntaram-lhe se não podia ir ter com os “colegas” perguntar quando terminariam os trabalhos.

Foi de França que mais leitores enviaram histórias sobre o português da construção (maçon) e a portuguesa das limpezas (femme de ménage). Patrícia Soares, de 29 anos, é assistente de terra de uma companhia aérea espanhola num aeroporto de Paris. Numa conversa com os colegas sobre trajectórias de vida, revelou que começou por limpar escritórios. Perguntaram-lhe o que fazia o marido dela. Obras. “Pois, é o normal dos portugueses: a mulher faz limpezas e o homem obras.”

Reagindo com humor ao apelo do PÚBLICO, houve quem tivesse enviado anedotas. Lúcia Vicente, uma baby-sitter de 24 anos, que faz ocasionais trabalhos numa empresa de limpeza e num armazém de uma loja de artigos desportivos, contou várias. Eis uma delas: “O que se faz a um português quando nasce? Atira-se contra a parede: se colar, vai ser estucador; se cair, vai ser ladrilhador.”

Há um fundo de verdade na ideia do homem que constrói e da mulher que limpa, salienta Inês Espírito Santo, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, do Instituto Universitário de Lisboa. Foi nesses sectores que se foi encaixando, por exemplo, o grosso dos que desembarcaram em França entre 1959 e 1974.

Não são sempre negativas as consequências destes clichés, apesar de todos eles desumanizarem o “outro”, o que não é igual à maioria, no sentido em que não o percebem como indivíduo, como singular, mas como membro indiferenciado de um grupo. Quando a ideia feita é positiva, até pode dar jeito.

A taxa de desemprego dos nascidos em Portugal é “bastante inferior” à das outras populações estrangeiras residentes em França, exemplifica Inês Espírito Santo. Na sua tese de doutoramento debruçou-se sobre as imagens dos portugueses em França e percebeu que a fama de trabalhadores árduos e submissos os torna mais apetecíveis aos olhos dos empregadores franceses, mas também os pode prejudicar. “Interiorizam e reproduzem certos estereótipos de maneira a assegurarem um lugar”, explica. O seu poder de negociação fica mais limitado precisamente porque muitos são recrutados por serem portugueses e “bons trabalhadores”.

Rui Ferreira, de 26 anos, mudou-se para a Alemanha em Dezembro de 2012. Depois de ter trabalhado seis meses para um português que lhe pagava “uma miséria”, procurou um novo trabalho e percebeu o quão valioso um estereótipo positivo pode ser. Disseram-lhe: “Português? Pode vir trabalhar amanhã. Muito trabalhador.” E lá está ele, numa empresa de limpeza, um dos poucos trabalhos possíveis para quem não sabe falar a língua e rejeita a incerteza da construção civil.

Em Renens, na Suíça, Joana Pinto também reflecte sobre o modo como um rótulo positivo pode facilitar a integração. Quando em Janeiro de 2011 se mudou para os escritórios da sociedade de engenharia e planificação que já a empregava em Portugal, sem a conhecer de lado algum, a colega de escritório descreveu os portugueses como “bons trabalhadores, dedicados, e de confiança”.  

As sociedades são cada vez mais complexas. Os stereótipos podem  sobrepor-se e contradizer-se. João Peixoto retoma o exemplo dos brasileiros residentes em Portugal: a ideia de que são “todos” simpáticos e extrovertidos ajuda-os a arranjar trabalho na restauração. “Os que não são simpáticos, nem extrovertidos sentem-se forçados a sê-lo.”  

Há quem não leve estas coisas a mal. Mário Almeida, 31 anos, consultor na Comissão Europeia, brinca com elas no Luxemburgo. “Todos os portugueses falam ‘aschim’. Têm o mesmo sotaque, seja lá qual for a sua origem ou a língua em que se expressem, falam alto, mais querem levantar a voz para falar com alguém que está do outro lado da rua do que atravessá-la, e só comem bacalhau”.

O mito do bacalhau é transnacional. Juliana Pereira Martins tem 30 anos, é jornalista e mora em São Paulo. Ouve coisas como: “Acho que não me daria bem em Portugal. Não gosto da comida. Não gosto muito de bacalhau”. E lá trata ela de explicar que “não se come só bacalhau em Portugal”.

Raquel M. Cardoso tem 41 anos, trabalha no Parlamento, no Luxemburgo, e esforça-se para mudar visão tão redutora da gastronomia lusa. Nada a irrita mais do que ouvir dizer que os portugueses só comem bacalhau. “Faço muitos jantares com provas de vinho e queijo português e comida tradicional para que os meus colegas aprendam um pouco mais”.

Há quem ache que a imagem dos portugueses está a mudar. André Marinho, 33 anos, assistente de serviços gerais numa empresa de Genebra, na Suíça, di-lo: “Sinto e vejo que a mentalidade em relação aos portugueses está a mudar, fruto da segunda vaga de emigrantes com mais habilitações”.

João Peixoto não está tão optimista. O estereótipo nasce na primeira grande vaga. Uma vez cristalizado, demora a desconstruir. A nova vaga, mais urbana, mais escolarizada, pode ajudar a desmontar ideias feitas nos velhos destinos migratórios, mas com tempo. Até porque, ao contrário do que muitos apregoam, os “não licenciados continuam a ser os que mais saem do país”. Já nos novos destinos migratórios o rótulo dos portugueses pode ser mais diversificado.

O novo fluxo dirige-se, sobretudo, para outros países europeus. E longe vão os tempos em que se partia a pensar que só se voltaria na idade da reforma. Os movimentos migratórios tornaram-se mais circulares. Muitos dos que emigram, encontram trabalhos precários, reemigram ou regressam decorrido pouco tempo.

A crise está a fazer estragos nas ideias que os europeus têm uns dos outros. “A imagem que passou de Portugal durante o resgate foi de miséria, desespero e incapacidade de se governar”, diz Ana Fernandes, a trabalhar numa agência europeia, na Holanda, desde 2011. “Os partidos de direita aqui do norte da Europa aproveitaram bem a situação. Para o holandês comum, o português é iletrado, pobre, desesperado. E culpado [como os povos dos outros países sujeitos a planos de resgate] de todos os males que assolam a Europa.”

Num artigo no PÚBLICO, o sociólogo Boaventura Sousa Santos faz uma leitura histórica do que lhe parece ser um problema cultural e sociopsicológico: “Entre o século XV e o século XIX são muitos os relatos de viajantes e comerciantes do Norte da Europa sobre os portugueses e espanhóis e as condições de vida prevalecentes no Sul da Europa. O mais surpreendente nesses relatos é que atribuem aos portugueses e espanhóis as mesmas características que, na mesma época, os colonizadores portugueses e espanhóis atribuíam aos povos ´primitivos´ e ´selvagens´ das suas colónias. Eis algumas citações do século XVIII: ´O português é mandrião, nada industrioso, não aproveita as riquezas da sua terra, nem sabe fazer vender as das suas colónias´”.

A culpa, acusa Ricardo Freitas, 38 anos, director comercial de uma empresa de marketing digital em Barcelona, também é dos portugueses. “Quando me apresentam um português, a primeira coisa que faz é falar da crise, da falta de dinheiro, do quão mal se vive em Portugal. Os novos emigrantes trazem uma imagem tão negativa do país que chego a pensar que têm a mania de falar mal de tudo.” Outros leitores apontam o reverso disso, narrando episódios de esforço para explicar onde é Portugal e o que tem de bom.