A propósito de Francisco Canais Rocha
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Fortemente vergastado na minha juventude pela repressão da ditadura do Estado Novo, era natural que o tribunal plenário viesse a ser para mim um destino. Mas foi também uma escolha cívica activa em defesa dos direitos humanos, pelos quais vim a ser, mais tarde, presidente da Comissão dos Direitos Humanos na Ordem dos Advogados.
O julgamento de Francisco Canais Rocha, como tantos outros, foi uma farsa e mobilizou para a cidade de Lisboa imensos cidadão da Torres Vedras, de onde ele era natural, tendo constituído uma luta cerrada entre a defesa e o tribunal, no qual, pela primeira vez, foi colocado o problema da lei injusta que mais tarde viria a desenvolver em recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, na arguição da inconstitucionalidade das chamadas leis por crimes contra a segurança do Estado, no julgamento de João Pulido Valente, Francisco Martins e Rui D’Éspinay.
A memória que hoje aqui deixo expressa é uma homenagem a um preso político de origem operária que, tendo iniciado a sua a actividade como marceneiro, fez mais tarde o curso do liceu, a licenciatura em História e o mestrado em História Contemporânea. Mas é também um acto de evocação que não procura fazer recuar os ponteiros do tempo e o tempo da história, antes lembrar todos os presos políticos antifascistas torturados nas prisões do fascismo e sublinhar que a memória do tribunal plenário é também a memória da dor e da humilhação indescritíveis dos homens e das mulheres cambaleantes nas salas dos interrogatórios, sonâmbulos pela tortura do sono e pelas alucinações; a memória da impotência das famílias dos presos, com as casa assaltadas pelas buscas policiais pela calada da noite; enfim, a memória, como um dia disse Fernando Rosas, da perplexidade dos filhos, então meninos, que tiveram como primeiras festas de aniversário uma visita aos parlatórios de Caxias ou Peniche. E desses parlatórios guardo para mim a memória, hoje tão distante, de um ambiente cheio de sofrimento e angústia, dos presos, com olhos vermelhos mas que não choravam, que me fizeram compreender que há dores que secam as próprias lágrimas.
Uma palavra final para lembrar que a presença dos advogados no tribunal plenário foi assumida por uma geração com orgulho de ter lutado por ideais nobres, de ter vencido a tentação de desistir, aguentando o sofrimento e a incomodidade, tudo o que gerava a vida dolorosa, militante e exaltada de cidadãos activos nesses tempos de tempestuosas incertezas.
A honra de ser advogado alimenta-se desta fonte e enriquece-se com um tempo glorioso da hegemonia do Bem. Permita-se-me terminar com Berthold Brecht, bem actual nos tempos que correm: “De quem depende que a opressão prossiga? De nós./ De quem depende que ela acabe? Também de nós./ O que é esmagado, que se levante/ O que está perdido, lute!