A Turquia treme, mas aguenta, e Istambul continua linda
Erdogan, no poder há 12 anos, vai ser eleito Presidente. Ajudou a democratizar a Turquia antes de a querer vergar. É também por isso que, mesmo ganhando, já perdeu.
Entre 2002 e 2014, houve demasiadas mudanças para 12 anos num país gigante e tão diverso, o tal da ponte que se atravessa para sair da Ásia e chegar à Europa, e o contrário também resulta. Em 2007, por exemplo, houve o chamado "e-golpe", o primeiro tentado pelos militares com um comunicado online. As minhas férias já estavam marcadas, calhou apanhar a última semana e meia de campanha em Istambul.
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Entre 2002 e 2014, houve demasiadas mudanças para 12 anos num país gigante e tão diverso, o tal da ponte que se atravessa para sair da Ásia e chegar à Europa, e o contrário também resulta. Em 2007, por exemplo, houve o chamado "e-golpe", o primeiro tentado pelos militares com um comunicado online. As minhas férias já estavam marcadas, calhou apanhar a última semana e meia de campanha em Istambul.
A um comício num subúrbio daquela cidade maior do que o mundo, num descampado a caminho do aeroporto, chegavam pessoas de todas as idades e classes sociais, de toda a Istambul (os comboios que saíam do centro, ao lado da estação do Expresso Oriente, eram gratuitos).
Entre a multidão que ouviu Abdullah Gül mas só esperava por Erdogan, havia gente religiosa e muitos turcos laicos. Na altura, o problema dos militares era Gül (até então, ministro dos Negócios Estrangeiros) querer ser Presidente e a sua mulher cobrir o cabelo com um lenço islâmico (hijab). Em palco, estiveram muitas pessoas: Erdogan, Gül, a mulher do primeiro, Emine, de lenço (a do segundo, Hayrunisa, ficou em casa), candidatos e candidatas do AKP por Istambul (nenhuma mulher de hijab). Com o aviso dos militares, o AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) marcou legislativas antecipadas e esmagou.
O seu poder era e é o da marca Erdogan. O seu rosto em todos os cartazes, de Istambul a Esmirna, da Capadócia às cidades por onde se passa em busca das praias do Egeu e do Mediterrâneo. O símbolo era a lâmpada brilhante que o AKP sempre usou e a palavra o "sim". "Sim" à luz do novo "pai", o único capaz de conduzir a Turquia num mundo que, contas feitas, está a mudar tanto que no centenário da Primeira Guerra os historiadores não páram de dizer "sim, é 1914 outra vez".
Nos comícios e nas sedes de campanha dos principais partidos da oposição, o histórico CHP (Partido Republicano do Povo, secularista e nacionalista de esquerda, herdeiro do kemalismo de Atatürk) e o MHP (Partido do Movimento Nacionalista, direita que só não é mais extrema porque há muita extrema-direita no país), o discurso não mudava muito. "Nem Irão nem Paquistão. Isto é Istambul", repetiam militantes e lia-se nos cartazes. "Erdogan tem uma agenda escondida para islamizar a Turquia, vêm aí a sharia [lei islâmica]", afirmavam. Daí nasceu um texto chamado "O fantasma de Atatürk contra o fantasma do islamismo".
Na Turquia, vive-se sob a sombra de fantasmas. Nesse sentido, o AKP foi uma lufada de ar fresco. Começou por modernizar, abrir, pôr no lugar militares que insistiam em golpes de Estado e juízes que não sabiam o que era separação de poderes. Era e é um partido comparável à democracia-cristã europeia. Em 2007, eu não pensava que em 2014 ainda restassem tantos fantasmas. Uns intocados, outros diferentes. O que não mudou foi a impossibilidade – aterrorizadora para jornalistas e para tantos turcos – de prever o futuro próximo ou médio com algum grau de certeza.
Entraram em jogo novos elementos. Os manifestantes do parque Gezi, que o ano passado arriscaram a vida, primeiro contra a demolição de umas árvores, depois contra o autoritarismo de um líder que se acha dono do país, e logo este: como é que alguém se pode sentir dono de uma terra que vai do Curdistão ao mar Negro, de Istambul à Arménia? O movimento de Fetullah Gülen (líder de uma rede de escolas e ONG, com televisões e 'embaixadas' em todo o mundo), que sempre estivera em jogo mas nós só percebemos até que ponto em 2013, quando Erdogan foi implicado numa mega-investigação de corrupção e acusou este religioso de o querer derrubar.
Autoritário, mitómano
Entretanto, Istambul mudou e muito. Erdogan é o rei corta-fitas. Na capital de civilizações nascem centros comerciais e condomínios, entre obras megalómanas. O problema é que a Turquia, que cresceu tanto que já tem uma enorme classe média espalhada por várias geografias (o rendimento per capita quadriplicou), já não cresce. Segundo académicos bem informados (e a planear um futuro longe da Turquia), a economia está em mau estado, só que isso ainda não se vê (nem nos números nem nos bolsos). O problema é que esses condomínios são comprados por dinheiro do Golfo (ou de sírios que fugiram da guerra, por exemplo). O problema é que até o dinheiro desta gente acaba.
O problema é que Istambul não é isto. O problema é que há dezenas de jornalistas na prisão e o Estado controla os media tradicionais. O problema é que qualquer manifestação (antes, só os curdos se atreviam nas imediações da Praça Taksim) é esmagada e as redes sociais desligadas (como se isso fosse possível, o Twitter inacessível e até Gül twittava). O problema é que em sucessivas viagens à Turquia, desde 2007, vi os partidos da oposição com o mesmo discurso saudosista e sucessivos líderes, incompetentes ou muito fracos.
Entretanto, Istambul mudou e muito. Como mudou a Anatólia, antes rural, e todas as províncias que fazem fronteira com a Síria ou com o Iraque. Há tantos sírios em Istambul que em alguns bairros o árabe é a língua franca. Vieram sírios de todas as partes, endinheirados ou sem nada. Vieram e Erdogan deixou e muitos turcos não acharam graça; outros abriram os braços e as casas. Entretanto, Erdogan disse que queria resolver o "problema curdo"; disse e fez, iniciou negociações com o líder do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), Abdullah Öcalan, isolado desde 1999 na prisão da ilha de Imrali (mar de Marmara).
Erdogan já não quer resolver a questão curda ou aumentar o número dos que acedem às universidades. Tão obcecado com o legado (cego pelo autoritarismo natural), já nem quer saber dos turcos. Só de si. Ou porque, como acusam alguns, precisa da presidência para não ir fazer companhia a Öcalan (por ter roubado os turcos que lhe deram, a ele e ao AKP, oito vitórias eleitorais consecutivas). Ou, simplesmente, por ser um mitómano, por acreditar nas suas mentiras e ser, como Atatürk, alguém que precisa de mudar tudo, um alfabeto ou os edifícios que formam o skyline de Istambul.
Terramotos e futebol
A Turquia vai sobreviver a Erdogan como aos frequentes tremores de terra. Istambul, também. Mas o novo Atatürk vai mesmo ser eleito Presidente e fazer o que puder para que a Turquia passe a ter um regime presidencialista. A oposição tradicional, o CHP e o MHP, deram o seu contributo, apoiando um candidato desconhecido, o intelectual independente Ekmeleddin Ihsanoglu.
A surpresa, mais uma vez (como em nos resultados das legislativas de 2007), virá dos curdos e do seu candidato, Selahattin Demirtas.
Os curdos, "turcos das montanhas", como Erdogan dizia no início, passaram os últimos anos a mudar de partido – como acontecia antes com os islamistas pré-AKP, sucessivamente ilegalizados. Mas a maior lição que os curdos do actual Partido Democrático Popular (HDP, de esquerda) tiveram foi Gezi e os milhões que saíram à rua. Nesses protestos, estiveram com outros e, para alguns, deixaram de ser vistos como o outro. Assim, passaram a sentir-se um bocadinho menos o outro. E ao mesmo tempo que introduziu os temas que interessam aos curdos no debate nacional, Demirtas usou a campanha para defender o ambiente ou a liberdade de costumes e pode duplicar o voto no HDP.
"Vamos ver o que acontece nas eleições. O AKP é muito poderoso. Mas penso que os movimentos sociais vão continuar a crescer, espero que não só nas ruas mas também na política", escrevia-me uma turca, jornalista de um dos principais diários, numa troca de emails antes das municipais de Abril. "É muito complicado, a política turca é sempre muito caótica e há muitos lados." Pois é.
O que vale é que Istambul mudou mas, ao mesmo tempo, não mudou assim tanto desde o comício de 2007. A rua Istiklal continua igual, como se o mundo inteiro lá coubesse ao mesmo tempo. A Taksim, onde a Istiklal desemboca, tem mais polícias do que antes de Gezi, ali ao lado, mas permanece ponto de encontro para turcos e estrangeiros de todas as idades, etnias, religiões ou géneros.
Ainda se vendem batatas doces no Inverno e ainda se bebe álcool no Verão. O futebol ainda move multidões e a rivalidade dos clubes da cidade ainda provoca cenas de pancadaria. Ainda há quem beba raki ao lado de quem bebe chá e os músicos ainda tocam e se sentam na mesa de turcos embriagados que cantam com eles. Ainda se respira e, às vezes, até se fica sem ar com tanta vida. Isso, Erdogan não vai mudar nunca. Afinal, ele ajudou a democratizar a Turquia antes de a querer vergar. Agora, os turcos não se ficam.