Resposta aos pretensos agravos à memória de Ludgero Pinto Basto
Mas antes de abordar esta matéria, desejo sublinhar que percebo perfeitamente a reacção dos três filhos do Ludgero em defesa da honrada memória do seu progenitor. Considero, no entanto, que não têm razão. Nunca foi minha intenção ofendê-la. E isto porque fui, ao longo de muitos anos, seu amigo próximo e porque talvez lhe deva a circunstância de ainda estar vivo. Além do mais, não sou ingrato. Mas considero que a amizade não é incompatível com a crítica às atitudes daqueles que estimamos.
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Mas antes de abordar esta matéria, desejo sublinhar que percebo perfeitamente a reacção dos três filhos do Ludgero em defesa da honrada memória do seu progenitor. Considero, no entanto, que não têm razão. Nunca foi minha intenção ofendê-la. E isto porque fui, ao longo de muitos anos, seu amigo próximo e porque talvez lhe deva a circunstância de ainda estar vivo. Além do mais, não sou ingrato. Mas considero que a amizade não é incompatível com a crítica às atitudes daqueles que estimamos.
O Pavel foi forçado a refugiar-se naquele país, a coberto de um falso nome, para fugir à sanha persecutória que lhe moveram alguns dos seus ex-camaradas. E isso aconteceu por ter cometido a notável proeza de fugir da prisão do Aljube!
Discordei de algumas opiniões que Ludgero manifestou no Expresso sobre a evolução negativa das ideias do Pavel, no plano ideológico, depois de se instalar naquele país. Comentei com ele, criticamente, logo a seguir à divulgação do seu texto (portanto, durante a sua vida), os seus pontos de vista sobre a referida matéria.
Nessa conversa Ludgero discordou de algumas das minhas opiniões, mas concordou com outras. Entre os pontos em que me deu razão está a afirmação que fizera no seu texto (contrariando o que eu escrevera), de que o enfermeiro do Aljube não pertencera à Juventude Comunista (JC). Informara-se junto de Cunhal e este confirmara a minha versão.
A despeito das críticas que lhe dirigi sobre as opiniões que exprimiu em relação à conduta do Pavel, isso não afectou nunca a amizade que nos ligou até ao fim da sua longa vida .Visitei-o várias vezes na sua residência no bairro da Ajuda, para o reconfortar moralmente, quando tive conhecimento da doença que o conduziu à morte. Só deixei de o fazer quando percebi que deixara de me conhecer.
Ludgero acusou o Pavel de ter renegado as suas anteriores convicções filosóficas e políticas nos seguintes termos: “Nestas situações particularmente críticas [refere-se ao estado de espírito do Pavel a seguir ao seu afastamento compulsivo do movimento comunista] cada um reage à sua maneira, e a reacção de Pavel foi a que se sabe”.
Ora esta peremptória afirmação não tem o menor fundamento. O Pavel conservou a ideologia comunista até à sua morte. As conversas que tive com ele quando, depois da Revolução de Abril, veio a Lisboa, firmaram-me nessa convicção, como relatei no meu livro. As numerosas crónicas que escrevia para os jornais e revistas mexicanas sobre as impressões que colhia nos países que visitava dar-nos-iam certamente uma visão segura do modo como pensava.
O Pavel passou ano e meio na China, na altura da “Revolução cultural”. Quis estudar, in loco, esse fenómeno social e político. Para poder falar e compreender o que pensavam os cidadãos daquele país sobre a experiência que estavam a viver, inspirada por Mao Tsétung, teve de aprender o seu idioma.
As autoridades chinesas não deixavam qualquer cidadão estrangeiro percorrer livremente o seu território sem conhecerem as suas reais intenções. O Pavel fora um importante quadro da Internacional Comunista. Conhecera, certamente, durante a sua longa permanência em Moscovo, alguns dos principais dirigentes do PC chinês. Estes terão avalizado a honestidade dos seus propósitos.
Segundo a sua filha, o Pavel escreveu, durante a sua longa permanência na China, numerosas crónicas sobre o que se passava naquele país. O conhecimento desses textos também nos ajudaria a perceber as suas reais convicções ideológicas.
Quanto ao modo como reagiu ao ostracismo a que o votaram os seus ex-camaradas, foi tudo menos aquilo que Ludgero afirmou.
O Pavel aguardou no México, durante o primeiro ano em que aí residiu, a chegada do prometido relatório que o ilibaria da infamante calúnia suscitada por Armando Magalhães junto do representante da Internacional Comunista (IC) em Paris. Mas esse relatório nunca chegou.
Segundo me disse quando veio a Portugal, esteve disposto, durante esse lapso de tempo, a regressar ao seu país de origem e a reassumir a missão de que fora incumbido quando, em 1936/37, a IC, a seguir à morte de Bento Gonçalves, o encarregou de dirigir o PCP. Mas, ao fim desse tempo, acabou por se convencer de que fora abandonado pelos seus camaradas. Portanto, ao contrário do que Ludgero afirmou, o Pavel não se auto-excluiu do movimento comunista. Pelo contrário. Foi dele compulsivamente expulso com base numa falsa e infamante acusação. E, apesar disso, manteve as suas convicções ideológicas até ao fim da sua vida.
A reacção do Pavel ao modo injusto como foi tratado pelos seus camaradas revestiu-se, aliás, ao contrário do que Ludgero sustentou, de uma enorme dignidade. Não acusou ninguém. Não protestou. Continuava a acreditar na validade do projecto comunista e não quis prejudicar a sua imagem.
O Pavel foi até um convicto estalinista até 1953, ou seja, até à morte de Estaline e à divulgação dos seus crimes por Nikita Khrutchov no decurso do XX Congresso do PCUS! Só nessa altura é que cortou com o estalinismo! Depois de conhecer a sua conduta criminosa, Pavel rasgou, simbolicamente, perante os seus amigos mais íntimos (todos comunistas, nomeadamente os grandes pintores muralistas Diogo Rivera, Orosco e Cisneros) o retrato do ditador soviético. Trazia-o consigo desde que, seis anos antes, saíra da União Soviética!
Portanto, à luz do que acabo de escrever, a afirmação de Ludgero de que “o Pavel se adaptou perfeitamente à democracia mexicana, pela qual mostrava grande admiração”, carece totalmente de sentido. E foi esta versão caluniosa e injusta sobre a conduta de Pavel no México que me levou a comparar o percurso existencial de ambos. Talvez tenha usado, nessa comparação, algumas expressões demasiado fortes. Peço desculpa, por isso, aos seus filhos. Mas a grande injustiça que Ludgero fez ao Pavel (sem ponta de razão) levou-me a cometer alguns exageros de linguagem.
Ludgero foi um homem honesto. Não acredito que tenha inventado esta versão caluniosa sobre a vida do Pavel. Limitou-se a reproduzi-la, sem procurar investigar a sua veracidade. Mas mantenho a minha versão sobre a sua brilhante carreira de endocrinologista. Essa especialidade servia, especialmente, para tratar das pessoas obesas que desejavam perder peso… A maioria das pessoas que o procuravam, como depreendi das várias visitas que fiz ao seu consultório, eram, sobretudo, as pessoas ricas, e gordas, que queriam emagrecer… As pobres não tinham essas preocupações… Ludgero estava no direito de fazer a opção que entendesse. Não o critiquei por isso. Tanto mais que isso não implicou o abandono das suas convicções ideológicas, nem a sua permanente disponibilidade para tratar graciosamente os que eram vítimas da PIDE. Sou disso testemunha. Ludgero foi um homem profundamente solidário.
O que pretendi salientar foi a sua falta de autoridade para emitir opiniões desprimorosas sobre a vida do Pavel no México, porque isso não foi verdade e constitui uma clamorosa injustiça. E foi por isso que me permiti comparar a vida de ambos.
O Pavel foi, durante toda a sua vida no México, um eficaz e permanente interventor social. Defendeu sempre os explorados e marginalizados. Escreveu um belo romance, a que deu o nome de Nuble Estéril, onde relatou a vida de miséria e de opressão a que estavam sujeitos os índios otomis por parte da colonização de origem castelhana. A sua campanha em defesa desse povo contribuiu para melhorar as suas condições de vida. Portanto, fez política, e política a sério, não como militante de qualquer partido, mas como um agente social extremamente activo e empenhado.
Escreveu um livro destinado a defender as riquezas naturais do México, em especial o petróleo, controlado pelos EUA, seu poderoso vizinho, a que deu o nome de El Rescate del Petróleo. Epopeya de un Pueblo e publicou numerosas crónicas defendendo os interesses do povo mexicano. Foi por isso que observei ao Ludgero, logo a seguir à publicação do seu artigo intitulado Sobre A Segunda Morte de Pavel (portanto, durante a sua vida) a falta de fundamento das críticas que dirigiu à vida do Pavel no México.
Os filhos de Ludgero afirmam que Armando Magalhães era um agente provocador, infiltrado pela PVDE no seio do PCP. Ora isso não é verdade. Aconteceu com ele o que já acontecera com outros dirigentes do PCP: traíram os seus camaradas porque eram cobardes e destituídos de escrúpulos morais quando enfrentaram a polícia política.
Magalhães era um homem ambicioso e sem honra. Foi o principal responsável pelo afastamento definitivo do Pavel do movimento comunista. Recorreu para isso a uma miserável calúnia. O que o levou à traição mais abjecta foi o medo de uma detenção prolongada e de perder a mulher que trouxera de Paris (uma filha de emigrados russos). Para se furtar às longas detenções que normalmente suportavam os dirigentes comunistas quando eram presos, traiu miseravelmente os seus camaradas. Passou de “revolucionário” a colaborador da PIDE!
O Magalhães, apesar de ser um alto responsável comunista, revelou-se, na “hora da verdade”, um homem profundamente desonesto. De resto, já antes acontecera o mesmo com outros dirigentes partidários, nomeadamente, para citar só os mais conhecidos, com Mário Mesquita (que pertencera comigo e com Cunhal à direcção da Juventude Comunista e que, mais tarde, quando voltou a ser detido, era dirigente do PCP) e com Verdial. Passaram-se ambos, quando foram presos, para o lado do inimigo. Tal como Magalhães, não eram, antes de serem detidos, infiltrados da PVDE.
Eu nunca afirmei que Cunhal teve qualquer influência no afastamento do Pavel e no ostracismo político a que foi votado a seguir à sua fuga da enfermaria do Aljube. Sempre soube que ele estava detido quando o Pavel fugiu dali com o apoio do enfermeiro Augusto Rodrigues e a eficaz colaboração de Ludgero, então um dos dirigentes máximos do PCP. Mas não recebo lições de Cunhal em matéria de repressão fascista. De facto, quando a fuga ocorreu, ele estava a cumprir dez meses de prisão pelo mesmo processo em que eu cumpri, não dez meses, mas dez anos… Nove desses dez anos foram passados no Campo de Concentração do Tarrafal, de onde saí tuberculoso. Éramos ambos, eu e o Cunhal, membros do Comité Central da Juventude Comunista (fôramos eleitos para aquele órgão dirigente no chamado “Pleno de Abril 1935”, quando eu tinha acabado de fazer 16 anos e ele já completara os 20).
A polícia política sabia que ele fora escolhido nessa reunião para o cargo de secretário-geral da JC. No início de 1936, o primeiro membro do comité central a ser detido, o jovem Barros Lobo (um militante inteligente e dedicado, mas que fraquejou completamente perante a PIDE), não resistiu à pressão policial e denunciou os nomes dos membros daquele órgão dirigente. Não foi um traidor. Foi um fraco. Referiu, naturalmente, que o secretário-geral da JC era Álvaro Cunhal. Este só não foi preso nessa altura porque estava em Moscovo, bem como os dois jovens que o tinham acompanhado ao 6.. Congresso da Internacional Juvenil Comunista (KIM), nomeadamente José Gilberto Florindo de Oliveira e Domingos dos Santos. Mas foram detidos logo que regressaram da União Soviética e, pouco depois, enviados para o Tarrafal. Da razia dos que se encontravam em Portugal só escapou o Francisco Ferreira.
Mas mantenho o que afirmei sobre a responsabilidade de Cunhal no ostracismo definitivo do Pavel. Com efeito, que outra interpretação se pode dar ao facto de só se ocupar do “caso Pavel” cerca de um quarto de século depois de ele se ter instalado no México? Ninguém, de boa-fé, pode dar outra interpretação à sua iniciativa de lhe escrever uma carta, ao fim daquele enorme espaço de tempo, convidando-o a regressar a Portugal e a “ocupar o cargo, que de direito lhe pertencia, na direcção do PCP”.
Entre os anos de 1938 e 1948, ou seja, entre a data de expulsão do Pavel (1938) e a segunda prisão de Cunhal e de Militão Beça Ribeiro, no Luso, em 1948, mediaram 10 anos! Alguém concebe que ele não tivesse tido um momento, durante esses enorme espaço de tempo, para escrever uma carta ao Pavel?
A explicação para esta longa “distracção” de Cunhal só pode ser aquela que eu dei no meu livro: só depois de ter consolidado o cargo de secretário-geral do PCP, só quando adquirira a certeza de que nenhum dos seus membros (todos escolhidos por si) se atreveria a propor que ele fosse substituído naquele cargo pelo Pavel, só então Cunhal se sentiu suficientemente seguro para lhe enviar aquele absurdo convite!
De resto, o povo português só deve a Cunhal a primeira fase da sua vida – aquela em que foi um destacado opositor do regime salazarista. Depois da sua fuga de Peniche, serviu mais os interesses da União Soviética do que os dos trabalhadores portugueses. Não foi por servir Portugal que os soviéticos lhe atribuíram, por duas vezes, a mais alta condecoração do regime comunista: a Ordem de Lenine… Foi pelos altos serviços que prestou ao país dos sovietes…
Além disso, a seguir ao 25 de Abril, tentou tomar o poder apoiado na ala radical do MFA. Só desistiu desse intento depois da derrota de 25 de Novembro de 1975. A seguir a essa aventura, salvou-o da marginalização política o sábio e saudoso “capitão de Abril” Ernesto Melo Antunes.
Antigo dirigente do PS