A voraz companheira
A morte é um bicho horrendo de escuro, gorduroso e contaminante; e ou se tem muita sorte ou por volta dos 40 já sabemos perfeitamente que o animal está sempre à espreita, sempre esfomeado e guloso por mais
Em putos não a conhecemos, o tempo não passa e nós não sabemos nada de coisa nenhuma, a realidade é a de sempre como sempre foi, os pais e os avós e os amigos estão lá, de pedra e presos ao chão em betão armado, achamos que tudo vai ser sempre assim, tudo e toda a gente perene e imortal.
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Em putos não a conhecemos, o tempo não passa e nós não sabemos nada de coisa nenhuma, a realidade é a de sempre como sempre foi, os pais e os avós e os amigos estão lá, de pedra e presos ao chão em betão armado, achamos que tudo vai ser sempre assim, tudo e toda a gente perene e imortal.
Crescer começa aí, na compreensão do tempo que rola e na arbitrariedade dos desaparecimentos à nossa volta; na compreensão de que por mais absoluto o amor que lhes tenhamos, nada os protege da falha de travões do autocarro, do tumor que lhes rói silencioso as entranhas, do tempo que passa e se acaba.
Começamos a vê-los ir, um após outro: o amigo de “overdose”, a irmã do outro num acidente de autoestrada, o primo de “doença prolongada”, a tia-avó simplesmente porque já era mesmo muito velhinha... começamos a participar no rito: velórios em capelas sombrias cheias de gente destruída, em que o único que parece em paz é o único que já não está lá, o cheiro acre dos pavios a misturar-se com o doce que emana das coroas, a inevitável tia que levanta o paninho da cara e comenta como ele está bonito, as frases canhestras de circunstância, a viúva dobrada sobre ela própria, os filhos subitamente promovidos à idade adulta, a subtil confusão para levar a caixa do tabique para a carreta, da carreta para o buraco, a serenidade entediada dos coveiros de pá entre as mãos, o som da terra a bater no quase oco do esquife.
Com mais ou menos anestesia de fé vemo-los ir, com mais ou menos anestesia de fé podemo-nos convencer que nos reencontraremos algures, que finalmente eles estão em paz, que com eles um dia nos fundiremos no todo... o que sabemos é que eles não voltam e o que choramos é antes de mais isso, a perda que sofremos com o seu desaparecimento.
Ficamos mais atentos, seguimos vigilantes as condições médicas dos pais dos nossos amigos, cascamos mais brutamente o irmão que aos 40 anos consegue ter um acidente de mota, continuamos a afastar das ideias a ideia do desaparecimento dos nossos próprios pais, mas passa a ser um esforço consciente, inteiro, invejoso do suave verdor da infância.
Compreendemos finalmente porque é que os casais de velhos discutem quem vai morrer primeiro, com ambos a defender a primícia da própria morte; percebemos que não é uma sátira barata (és tão má que de certeza eu morro antes) mas sim um desejo fundo disfarçado de queixa, um deixa-me ir antes que eu não sei o que fazer se tu me faltas.
A morte é um bicho horrendo de escuro, gorduroso e contaminante; e ou se tem muita sorte ou por volta dos 40 já sabemos perfeitamente que o animal está sempre à espreita, sempre esfomeado e guloso por mais. Aprendemos a viver com ela no estrato logo abaixo da consciência, concentrando-nos na beleza do mundo enquanto agarramos firme a criança no lado contrário ao da estrada, enquanto damos atenção às dolências dos velhos e medimos as cores e os ares dos amigos. Crescer é isso, aprender no convívio da morte a sorte que é a vida.