FLIP, o festival onde o actor vale menos do que o escritor
Aquele que tem fama de ser o melhor festival literário do mundo terminou, depois de terem passado por Paraty cerca de 27 mil pessoas para discutir o estado do mundo e da literatura.
No sábado, a actriz Fernanda Torres e a sua mãe, a também actriz Fernanda Montenegro, andavam perdidas pelas ruas de Paraty à procura da casa do príncipe D. João de Orléans e Bragança. Viram uma fila imensa de pessoas à entrada da Casa da Cultura - onde acontece a programação paralela da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), a Flipmais - e aproximaram-se. A actriz Débora Bloch, que estava na fila, convenceu-as a entrar para assistir ao espectáculo do actor inglês Tim Crouch, o monólogo Eu, Malvolio, que ali ia ser representado.
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No sábado, a actriz Fernanda Torres e a sua mãe, a também actriz Fernanda Montenegro, andavam perdidas pelas ruas de Paraty à procura da casa do príncipe D. João de Orléans e Bragança. Viram uma fila imensa de pessoas à entrada da Casa da Cultura - onde acontece a programação paralela da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), a Flipmais - e aproximaram-se. A actriz Débora Bloch, que estava na fila, convenceu-as a entrar para assistir ao espectáculo do actor inglês Tim Crouch, o monólogo Eu, Malvolio, que ali ia ser representado.
No espectáculo, escrito a partir da personagem da peça Noite de Reis de Shakespeare, o actor vai dialogando com a plateia. Fernanda Torres, que escreve crónicas na Folha de S. Paulo, tem nas livrarias brasileiras o seu primeiro romance, Fim (ed. Companhia das Letras). Começou por ser uma encomenda de um conto sobre a velhice que escreveu em quatro dias. Um conto sobre um velho que tinha quatro amigos e que morre atropelado, sendo que a autora começou a matar os outros amigos da mesma maneira, um por um. “É um romance com testículos”, como descreveu o apresentador Jô Soares.
No palco da Tenda dos Autores que partilhou, no último dia da FLIP, com o escritor peruano Daniel Alarcón (considerado pela revista Granta um dos melhores jovens autores do momento), Fernanda Torres explicou que uma das coisas que a levou à literatura foi a crise que sente no teatro e no cinema. “Entrei nessa festa literária e a literatura está num momento quente tal como a pintura. Mas o teatro e o cinema estão vivendo uma crise mundial que é a do entretenimento. E quando entrei aqui e vi um espectáculo extraordinário de Tim Crouch tive vontade de voltar ao teatro.”
Passa o dia inteiro em gravações para a televisão, chega a casa e é só depois de deitar os filhos que escreve, entre as 22h e as 24h. É uma forma de escapar ao seu dia-a-dia. “Sou sociofóbica, por isso que comecei escrever. Tudo na TV, no teatro, é muito colectivo. Há três dias eu estava fazendo striptease na boate La Conga. Já vendi caipirinha em pó. O actor é um ser que não vale nada, mas um escritor vale muito - espero não conspurcar a literatura”, riu-se, referindo-se a uma cena que gravou como Fátima, a personagem da série Tapas & Beijos (Globo).
Daniel Alarcón aproveitou para fazer rir a plateia ao dizer que perdeu o fio à meada quando ouviu a palavra striptease. Fernanda Torres, a convidada brasileira mais aguardada pelo público na sua primeira participação na FLIP, frisou: “Sou mais valorizada aqui, na FLIP, como escritora: actor parece não valer nada, enquanto um autor parece valer muito. Mesmo quando participo de um espectáculo mais pesado, como A Casa dos Budas Ditosos, é considerado pornografia de nível porque foi escrito por João Ubaldo Ribeiro, um grande e renomado autor”.
Esta ideia de que o autor é valorizado na FLIP é verdadeira. Na livraria da festa literária, o livro mais vendido foi o último de Michael Pollan (que ainda não está publicado em Portugal), Cozinhar - Uma história natural da transformação (ed.Intrínseca). Que esgotou também na versão original. E no top de vendas seguem-se Millôr 100 + 100 - Desenhos e Frases (Instituto Moreira Salles), com obra do homenageado desta edição, Millôr Fernandes, e a poesia de Ligue os Pontos - Poemas de amor e big bang, de Gregorio Duvivier (Companhia das Letras).
A editora britânica Liz Calder, que idealizou esta festa há mais de uma década, contou na conferência de imprensa de balanço da FLIP que o paquistanês Mohsin Hamid, autor de O Fundamentalista Relutante (ed. Civilização) e convidado desta edição, lhe transmitiu que muitos autores que já passaram pela festa literária espalham aos quatro ventos que este “não é só um festival maravilhoso, é o melhor do mundo.”
Mauro Munhoz, director-presidente da Associação Casa Azul, que organiza a FLIP, divulgou alguns números: no ano passado estiveram na FLIP 25 mil pessoas e este ano estima-se que por ali tenham passado 26 ou 27 mil. As entradas na Tenda dos Autores aumentaram em 30% em relação ao ano passado. E, pela primeira vez, mesmo quem não tinha bilhete pôde assistir ao que se passava na Tenda dos Autores através de ecrãs ao ar livre espalhados pela cidade.
“Este ano houve uma renovação sem rupturas. Todas as áreas da FLIP se mostraram muito abertas à inovação, a Tenda dos Autores inovou, os telões [ecrãs ao ar livre] inovaram”, disse o curador desta edição, Paulo Werneck. A FLIP nunca foi exclusiva, “quem quisesse olhar o telão e se pendurar ali sempre conseguia. Mas agora é um festival de rock praticamente, você vê namorado abraçado, você vê sorveteiro, cachorro, cadeira de praia, o que nos alegrou muito”. E arrisca: “Foi a FLIP das Flips, se pudéssemos usar uma expressão parodiando a que a Dilma usou para falar sobre a Copa do mundo. Com a diferença que a gente saiu ganhando”.
Neste ano em que a programação foi da questão da Amazónia ao jornalismo, Werneck acredita que conseguiram oferecer ao público “muitas portas de entrada” e que essa imagem é feliz porque “conversa com a tenda, que é aberta por todos os lados, é uma volta às origens, à química da primeira FLIP. O público tomou conta da festa”.
Liz Calder destacou ainda a variedade da programação deste ano, com autores de muitos países do mundo e com palestras “muito estimulantes”. A mesa mais importante, elege, foi a que teve a presença do índio presidente da Hutukara Associação Yanomami, Davi Kopenawa, e da fotógrafa Claudia Andujar. Aliás, Davi Kopenawa encerrou a festa com um pedido de ajuda por causa das ameaças de morte que tem recebido, para que não se transforme num novo Chico Mendes (seringueiro assassinado em 1988).
Durante a FLIP houve um milhão de acessos às emissões das mesas de debate em streaming e pela primeira vez o vídeo e o áudio de todas as mesas serão disponibilizados no YouTube na íntegra - em inglês e português. Agora, a organização já está a pensar no pequeno festival literário pelo qual são também responsáveis no sul de Inglaterra, o FlipSide, na cidade de Suffolk com autores e músicos brasileiros e que acontecerá pela segunda vez em Outubro, mesmo antes da Feira do Livro de Frankfurt.