A coluna dos penitentes
Numa manhã de Setembro de 1917, o segundo sargento Cardoso Mirão esquece-se por um momento dos leões e das hienas que o atormentaram nessa noite passada no forte de Milange e, num momento de improvável relaxamento, deslumbra-se a ler jornais de Portugal que alguém lhe enviara por correio. Os jornais eram antigos, muito do que lá se escrevera fora já sujeito à erosão do tempo e à vertigem da mudança num país e numa Europa em guerra. Mas, para o sargento Mirão, esse mundo retratado nos jornais fora das poucas oportunidades que tivera nos últimos meses para escapar a um absurdo quotidiano de privações e de caminhadas extenuantes. Mesmo velhos, as suas páginas eram “como janela aberta de par em par sobre o céu azul e o jardim florido da nossa terra”, escreveria.
Até Milange, no território do Niassa, o sargento que integrava a Coluna do Lago tinha caminhado uns 700 quilómetros, sofrera o ataque das febres, passara fome e sede, as suas botas estavam desfeitas e deixavam os dedos negros do pó à mostra, percebera que toda aquela campanha que mandou para o mato quase mil soldados carecera de estudo, de inteligência e de sentido de utilidade, sentira na pele as desavenças no comando. Algures entre o nada e lugar nenhum, sabia que a paragem naquele forte era passageira, que seria necessário continuar a caminhar dias e dias em direcção a um destino impreciso e sem sentido. A Coluna do Lago estava condenada a ser o mais brilhante testemunho do absurdo e do fracasso em que as campanhas militares em Moçambique na Primeira Grande Guerra se tinham transformado. Essa odisseia chegaria até nós através dos apontamentos que os sargentos Cardoso Mirão, o alferes José Teixeira Jacinto e o sargento Ernesto Moreira dos Santos nos deixaram.
A sorte da Coluna do Lago começa no Porto, algures nos meses finais de 1916. A 21 de Dezembro desse ano, o governador de Moçambique envia um telegrama ao Governo no qual diz que, “em vista da doença das tropas europeias, julga vantajoso recorrer ao emprego de tropas indígenas”, pelo que serão necessários “quadros e material de guerra” para a criação de 20 companhias. Álvaro de Castro tem pressa e pede a Lisboa que mande a sua encomenda “no primeiro paquete”, porque as ofensivas de 1917 poderiam começar a ser lançadas após o fim da estação das chuvas, lá para “fins de Março”.
Por essa altura, já todos tinham percebido com os sucessos militares dos alemães que valia mais uma força indígena bem treinada e equipada do que muitos contingentes de soldados brancos enviados à pressa da metrópole. A adaptação dos indígenas ao clima, à escassez de alimentos da dieta europeia e às doenças tinha sido um dos trunfos da enorme mobilidade germânica nos dois primeiros anos da guerra. Fora essa mobilidade, que mais tarde haveria de figurar como caso de estudo nos manuais de guerrilha do século XX, que permitiu aos alemães escapar durante quatro anos à pressão dos britânicos, dos belgas, dos sul-africanos e dos portugueses que as suplantavam largamente em número.
No final do ano, o governo de Lisboa prepara então a criação de novas companhias indígenas. Jacinto, Mirão e Moreira dos Santos partem no Moçambique, a 15 de Fevereiro de 1917, para as instruir. Um mês e meio mais tarde estão já na Beira, onde tinham chegado recrutas de Sofala, Sena e Manica. O aspecto inicial dos futuros soldados da República não gera grande entusiasmo. “Aquela gente rude, de tangas curtas entre as pernas e carapinha suja na cabeça, eram soldados apanhados a monte pelas machambas (plantações), gente recrutada a laço pelas roças e pelos sertões, acorrentados pela cinta uns aos outros, em longas filas presas por arames e conduzidos para o quartel sob a ameaça constante das espingardas. Era gente apanhada de surpresa, como se apanham gazelas à ratoeira ou feras ao redil”, dizia o instrutor Cardoso Mirão.
A maioria não falava uma palavra de português nem conseguia perceber o que lhes pediam para fazer. À primeira oportunidade, desertavam. Muito tempo teria de passar até que a avaliação do alferes médico Américo Pires de Lima fizesse sentido: “Sendo o preto, em regra, tímido, desde que se lhe vista um uniforme e se lhe ponha ao ombro uma espingarda, mesmo descarregada, toda a sua timidez desaparece e é capaz de afrontar os maiores perigos, com a maior naturalidade”. Tinham passado apenas 15 dias de formação e o pessoal das quatro companhias indígenas da Beira em formação teve de dar provas do seu valor na asfixia da rebelião que estalou entre as populações do Barué, Zambézia, contra o recrutamento forçado de trabalhadores e soldados.
A visita de cortesia a Mocímboa
Um mês e dez dias de instrução foram considerados suficientes pelo comando, que então dá a formação por encerrada. As quatro companhias indígenas da Beira são embarcadas para Palma, mas pelo caminho chegam novas ordens e o desembarque aconteceria em Mocímboa da Praia. A indecisão que denunciava falta de planeamento começa a provocar incómodos. Afinal, o que esperava os soldados em Mocímboa era mais treino sob o sol escaldante e o vazio operacional. Ali passam duas ou três semanas até que, surpreendentemente, uma nova ordem os faz regressar ao sul, até Chindo, na foz do Zambeze, por onde tinham passado poucos dias antes. Na nova linha defensiva traçada ao longo do rio Rovuma, as quatro companhias indígenas da Beira iriam ocupar a posição mais extrema, lá para as proximidades do Lago Niassa. Só que, em vez de trilharem os caminhos já desbravados pelo planalto dos macondes ou pelas margens do rio, o comando destinava-lhes uma nova experiência: do Chindo subiriam o rio Zambeze num vapor, tomariam a linha de caminho-de-ferro que sobe a Niassalândia (actual Malawi), combinariam com os ingleses uma estratégia de actuação conjunta e atravessariam o lago para a orla moçambicana.
O plano, que supostamente fora negociado pelos altos comandos, parecia aceitável, se fosse exequível. Não era. Não se sabe se por dificuldades operacionais ou por birra dos britânicos, não haveria viagem de comboio além de Blantyre e todas as tentativas de articular uma estratégia com os aliados rapidamente se goraram. Após uma negociação entre o comandante da Coluna do Lago, João Henrique de Melo, e o general Notherly, chefe das forças britânicas estacionadas na zona do lago, conclui-se que não haverá cooperação, que os dois exércitos actuariam de forma separada. No compasso de espera, uns dez dias, os soldados portugueses acomodaram-se como puderam sob a torrente do sol, sendo alvos fáceis para “mosquitos de fraca raça que de imediato produziram baixas por paludismo”, recordaria o alferes Jacinto. Depois de chegarem a Blantyre de comboio, as companhias começam a caminhar. Chegam a Luchanza, topónimo que hoje não se consegue localizar no mapa, mas que ficava nas margens de um rio cavado, que foi atravessado pelas colunas a vau ou através de uma ponte de madeira que deixou os nervos dos soldados em estado de sítio. O sentido da marcha, para leste, indicava ainda assim um propósito. A Coluna do Lago regressava ao território colonial português.
Todas as memórias coincidem em notar o estado de irritação do capitão Melo e dos seus oficiais com este episódio. Fracassadas as negociações com os ingleses, o comandante combina com um obscuro administrador da Companhia do Niassa, Guerra Laje, a instalação das tropas no forte de Milange. Aqui disporiam de tempo até reunirem condições para avançar. Destino: a frente do Rovuma. A mais de 900 quilómetros de distância. E não sabiam como a percorrer. Instala-se o conflito e a divisão entre os oficiais. O Governador de Moçambique, Álvaro de Castro, diria anos depois que, se o capitão Melo não se tivesse decidido mandar avançar para Norte a coluna de alimentos a tempo, seria envenenado pelos seus próprios oficiais. Longe das guerras palacianas, os soldados e oficiais de baixas patentes registavam as primeiras mortes entre os soldados brancos. A 19, pela manhã, morre o sargento Carvalho, que Cardoso Mirão considerava “o melhor rapaz do grupo dos sargentos”; de tarde perece o cabo Raul de Almeida. A causa foi comum: paludismo.
Lá para o final do mês de Julho chegam mais mil carregadores com arroz, feijão cafreal e umas 30 “vacas esqueléticas e manhosas”, na apreciação do alferes Jacinto, que entretanto fora nomeado provisor da Coluna do Lago, cabendo-lhe a gestão de todos os bens alimentares. Por essa altura, “todos os dias morriam dois a três cavalos que eram montadas dos oficiais e começa a haver muitas deserções das praças indígenas, fuga de carregadores e o pessoal começa a ser atacado pelas febres”, notaria o sempre minucioso José Teixeira Jacinto. Ainda assim, em breve teriam de marchar. Não havia viagem de regresso pelo Zambeze. Esperavam aquela enorme coluna com mais de 1000 soldados e uns 800 carregadores uma verdadeira odisseia pelo sertão do Niassa.
A 15 de Julho estão em Mecanhelas e admiram-se com a beleza da paisagem do lago Chirua. Tinham percorrido pouco mais de 150 km e “os carregadores encontravam-se em estado deplorável, com os ombros e a cabeça cheio de chagas produzidas pelos volumes que transportavam”, recordaria José Teixeira Jacinto, então com 36 anos. Joaquim Martins, um agricultor português perdido na vastidão da região do Lago, ajuda-os a procurar caça. A cada passo chegam novos carregadores exaustos após as longas viagens desde o Malawi. Alimentar uma coluna em marcha com aquela dimensão não era, porém, tarefa fácil. “A ração do pessoal indígena começou a ser reduzida a metade e [a] dos carregadores limitava-se a um quarto de quilo de carne por dia”, notaria o provisor da Coluna.
Até Amaramba, as longas filas da tropa em marcha seguem sempre a orla dos lagos que antecipam o Niassa. Tinham percorrido uns 220 km, de acordo com o estudo feito pelo coronel Armando Jacinto, neto do alferes Jacinto, que nos anos 70 desempenharia funções militares nessa zona. A fome aperta e a extensão das linhas de abastecimento torna-se cada vez mais longa. O comandante autoriza a tropa a tirar o que pudesse nas machambas. Nas árvores há frutos, mas só se ingerem depois dos indígenas confirmarem que são comestíveis. “De tudo lançamos mão, tamarindos, acaju, mangas, bananas, frutos estranhos e exóticos, sementes doces e adocicadas como a alfarroba, frutos grandes, compridos como abóboras e que pendem dos largos ramos dos baobás”, recordaria Cardoso Mirão.
O pavor com os elementos de uma natureza estranha e agressiva aumenta. Uma noite, o sargento Leão grita por socorro. Mirão acode-o. No delírio, o sargento agonizava, aterrado, dizendo que se estava a afogar. Mirão julgou que fosse mais um delírio provocado pelas febres. Entra na palhota e na escuridão consegue ver o sargento de joelhos sobre a cama, com “dois olhos, brilhantes, febris, esbugalhados pelo terror”. Tacteia à procura de um toco de vela, acende-a e vê um espectáculo que o horrorizou: “Leão tinha sido atacado por milhões de formigas que o cobriam totalmente, que o devoravam por todos os lados, que lhe entravam por todos os orifícios”.
Na solidão e distância do Niassa, aconteciam porém pequenos milagres. Em Amaramba, o capitão Melo contrata três caçadores cuja biografia merecia ser conhecida. Chegam assim à coluna Regina Pietro, o “Pitala”, um italiano do Piemonte, “fino com o vime e rijo como o aço, há muitos anos perdidos pelas florestas negras do Niassa”, na descrição de Cardoso Mirão, Elias, grego, “um corpo alto e mal feito, de orelhas recortadas em renda de bilros”, e Kassan, “um indiano negro e pequenino, mas muito vivo e inteligente”. Nos dias que se seguiram, as caçadas destes três seres errantes pelas savanas próximas dos lagos seriam fundamentais para a sobrevivência da coluna.
A barbárie em Maúa
Chegara a hora de rumar para o interior, até ao território do régulo Maúa. Entravam agora numa zona mais remota, mais inóspita, que entre Abril e Maio tinha sido varrida pelo destacamento alemão do capitão von Stümmer. Esperava-os um trajecto de cerca de 200 quilómetros. Demorariam quase 20 dias a percorrê-los.
Pelo caminho, encontrariam ao acaso uma daquelas figuras lendárias que, como o famoso capitão Neutel de Abreu, passaram a vida a errar pelo interior de África. O alferes Almada Negreiros, dois sargentos europeus e um cabo seguiam à frente de uma milícia de 250 indígenas namarrais e macuas, acompanhados das famílias e de carregadores. Eram uma das colunas de “irregulares” que ora agiam por conta própria, ora serviam os planos dos governos ou da Companhia do Niassa, que desde o final do século XIX explorava todo o Norte de Moçambique. Os métodos de Almada Negreiros perturbam até soldados embrutecidos pela dureza do clima e das marchas. Cardoso Mirão recordaria que o alferes “comandava a sua malta de varapau” e os seus sargentos à bofetada e ao pontapé. Para ele, aquela multidão não passava de uma “quadrilha do mata e rouba”.
Pela primeira vez no seu percurso, os soldados estavam prestes a assistir a um dos seus primeiros episódios de brutalidade da guerra. Sabia-se que o régulo Maúa era aliado dos alemães. Poucas semanas antes, fora cúmplice no ataque ao posto administrativo português, que acabaria incendiado. Nas imediações todos os bens foram escondidos, nada havia para comer. Nas aldeias restavam idosos e inválidos. A proximidade da coluna fez com que o régulo se refugiasse com a sua população nos montes circundantes. À noite, os soldados avistavam ao longe pequenas luzes trémulas que indicavam a existência de fogueiras. Com um pouco mais de atenção, podiam escutar vozes. Para os intimidar, a artilharia ensaiou um bombardeamento. Mas as granadas caíam longe do alvo e motivavam aos indígenas ruídos de desdém que enervaram a coluna.
João Henrique de Melo decide então punir Maúa – ou pacificá-la, no jargão colonial da época. No dia 5 de Setembro de 1917 são presos três supostos espiões, um velho e “três rapagões”. Organizou-se “um batuque de guerra infernal” e as sevícias a que foram sujeitos foram tão brutais que o alferes Jacinto se absteve de as relatar. Os espiões acabariam enforcados em lugares visíveis, dois em cada margem do rio Maúa.
Cardoso Mirão recordaria o processo sumário contra um outro indígena suspeito de espionagem que revela sem contemplações a brutalização acelerada da Coluna do Lago. “Interrogámo-lo, nada. Emudecera. Apoquentámo-lo, teimámos, persistimos e nada. Batemos-lhe mesmo. Era inútil. O negro cerrara os lábios, olhava-nos com rancor e conservava-se teimosamente mudo”, conta Mirão. Lançaram uma corda por um embondeiro para simular a preparação do seu enforcamento. Nada, ainda. À volta, “a soldadesca batia cadenciadamente o pé na terra, em atitude hostil, ululando insultos, rindo e gritando”. O suposto espião acabaria por ceder. Ernesto Moreira dos Santos, um dos sargentos da Coluna, explicaria porquê: após ter sido ameaçado de que seria coberto com uma pele de porco, o que, sendo maometano, o condenaria a vaguear pela eternidade no Inferno, o espião acabaria por sucumbir. E falou. Que tinha ido ali por ordem do régulo Maúa, para ver os nossos efectivos e se trazíamos artilharia. Que o Maúa estava perto, numa povoação, à espera das suas informações, nessa mesma noite.
O régulo continuava a desafiar as tropas. No alto de uma montanha, gritos de provocação chegavam ao acampamento. O alferes Negreiros e as suas tropas tomam conta da situação. “Durante três noites foi um horror ao qual foi preciso pôr cobro, por os irregulares castrarem as vítimas e transportarem os seus apêndices para o acampamento no qual faziam festas em sinal de regozijo”, relataria o alferes Jacinto. Cardoso Mirão e Ernesto Moreira dos Santos também registaram nos seus cadernos estas noites de horror. Uma vez, a milícia de Negreiros chega à noite, à hora de jantar, e interrompe o repasto do alferes com o comandante exibindo “nos lábios grossos um sorriso de vitória”. Abriram então as sacas de pele mal curtidas e “entre a ‘punga’ (arroz) e a ‘mapira’ (milho moído) da refeição, misturados com galinhas mortas do ‘capiango’ (roubo), os auxiliares iam tirando e espalhando pelo chão orelhas, narizes e até… variadas partes do aparelho sexual, ainda pingando sangue, de muitos insurrectos maúas que eles tinham deixado pendentes nos ramos grossos dos embondeiros”, escreveria Cardoso Mirão.
Maúa fora castigado. Desde sempre que aquela zona, habitada pelos ajauas, era hostil aos portugueses e assim continuaria. Em Abril de 1916 um relatório enviado ao comando em Palma dava conta de um inquérito a Asseone, uma indígena “das terras do régulo Larange”, no qual a mulher dizia que nas terras dos alemães "a abundância é tanta que toda a gente usa, pelo menos, dois panos e nem o próprio sal falta, além que as brancas tratam os pretos optimamente", enquanto no território português "os próprios panos são cascas das árvores". No ano seguinte, o ódio aos portugueses facilitaria a invasão alemã até às portas de Quelimane. Dois anos depois, os alemães passariam por ali um inverno tranquilo sob os bons auspícios dos locais.
Em redor de Maúa, e nas etapas seguintes e direcção ao Rovuma, o que esperava a coluna era, por isso, aldeias abandonadas, campos agrícolas destruídos. Uma zona devastada, que levaria os soldados até ao limite. Logo a 9 de Setembro quando a coluna se põe em marcha para Metarica, uma etapa de seis dias, foi possível reparar que só com medidas desesperadas se podia avançar. Os prisioneiros no posto de Maúa, 50 mulheres e 30 idosos, foram obrigados a servir como carregadores. Algumas mulheres estavam grávidas e quando davam à luz ficavam ao abandono. Os velhos, “verdadeiros esqueletos”, eram amarrados à cintura em grupos de cinco e forçados a marchar por um soldado irregular que os fustigava com um chicote de pele de hipopótamo. Caminhavam até ao limite, acabando por ser deixados no caminho quando se esgotavam. Quando a coluna indigente e esfarrapada chegou a Metarica podemos imaginá-los com a visão que Carlos Selvagem teve deles na missão do ano anterior: “Olho-os com piedade, angulosos, nus, esquálidos, tiritando de frio debaixo dos pobres farrapos da manta, aglomerados em rebanho nos seus cercados de capim, deslocando-se lentamente, em lentas filas de comboios, ajoujados sob os fardos que os esmagam, e passivos, sonâmbulos, mecânicos, o olhar ausente, a face vaga, como quem vaga no indefinido dum sonho remoto, duma remota visão de palhotas e aldeias natais”.
Metarica, margem esquerda do rio Lugenda, Niassa, quatro e meia da tarde de 16 Setembro. A vanguarda da coluna chega ao forte. O resto das tropas, que se arrasta, vai chegando. Uns pelo ocaso, outros pelo jantar, ainda outros já era noite escura. Pelas duas da manhã “apareceram no acampamento alguns soldados indígenas e irregulares espavoridos, contando o que estava a passar na rectaguarda”, recordaria José Teixeira Jacinto. Uma matilha de leões tinha atacado o gado e os guardas. Quando uma equipa de socorro chegou ao local, já de madrugada, assistiu então a “um sinistro macabro”: “Alguns soldados e irregulares que protegiam o gado e o comboio apareceram esquartejados em várias direcções”. As margens do Lugenda tanto forneciam água a uma multidão de sôfregos como um perigo que tirava o sono aos soldados: as proximidade das feras. Em Metarica, os ruídos dos leões ressuscitaram os pesadelos de Mocímboa da Praia. Não se dormia de noite. Quando o comandante da coluna ordena o regresso a casa dos carregadores menos válidos, estes recusaram. Preferiam ficar, “com medo das feras e também de receio de passar pela região de Maúa em que seriam mortos pelos seus habitantes como represália dos factos que se haviam passado com as forças da Coluna”.
No caminho para Metarica a coluna perdera toda a aura de uma força militar. O cansaço apoderara-se dos corpos, minara a organização, desfizera a disciplina. A coluna espraiava-se por quilómetros de extensão, numa marcha arrastada. “Mais do que vergonhosa, a minha indumentária é ridícula”, registaria Cardoso Mirão. “Trago o chapéu num bolo, a farda rota, os joelhos nus e as botas, o meu último par de botas, de bocarras enormes, escancaradas, sem solas, sem palmilhas, a mostrarem desalmadamente os dedos negros e sujos do pó”. Neste estado de penúria, os soldados surpreenderam-se quando viram o que os alemães haviam deixando para trás após a sua curta permanência em Metarica. “São petulantemente comodistas, estes alemães! Em tão pouco tempo que aqui estiveram, fizeram verdadeiros arruamentos, com palhotas-Palaces, pequenos bungalows construídos em bambu e capim, com segurança e conforto como nós nunca sonháramos. Estas palhotas são amplas, práticas, higiénicas, bem arejadas, com uns três metros de altura, e comportando duas divisões”, onde não faltava um lavatório e até cabides para pendurar a roupa, espantar-se-ia Cardoso Mirão.
Em Metarica era já possível para a maioria acreditar que a saga da coluna estava perto do fim. A contabilidade das mortes entre soldados brancos ou indígenas não parava de aumentar. No pequeno forte perdido na selva foi preciso enterrar o sargento Freire de Artilharia e o cabo sipaio João. Mas a coluna podia, ao menos, ter um primeiro contacto com o mundo. Sacos de correio e de jornais chegaram para os soldados, depois de cumprirem uma interminável viagem desde Lisboa via Lourenço Marques, Beira, Mocímboa, Chinde, Chíndio, Luchenza, Fort Johnston, Zomba e Blantyre. Na hora de responder a tempo de aproveitar um correio que ia para o Estado-maior, “o pessoal deu-se pressa em esquecer por momentos a guerra, a selva, a fadiga e as privações, para pensar afincadamente nas páginas de recomendações, beijos e saudades a mandar à família com a afirmação, quantas vezes falsa, duma saúde que não existia”, recordaria Cardoso Mirão. Nesses momentos fugazes, notava o sargento, “deixávamos o ar selvagem e brutal que a selva nos emprestava para nos tornarmos de novo homens, enternecidos e sentimentais, revendo a casa, a terra, os amigos, emocionados pelas recordações da família e mais que nunca saudosos da pátria e do lar”.
O princípio do fim da coluna
Aquela massa errante de soldados e de carregadores estava prestes a cumprir a sua última etapa. Em Metarica, as companhias indígenas da Beira sabem que vão ter destinos separados. A Coluna do Lago desfazia-se, cumprindo assim exemplarmente a sua inutilidade e demonstrando com crueza o erro que tinha sido a sua criação e, ainda mais, a sua missão. Ordens do quartel-general, agora instalado em Chomba, a sul da actual Mueda, mais perto da linha da frente, mandavam a 4ª Companhia, com quatro oficiais, quatro sargentos, quatro cabos, 250 soldados indígenas e 300 carregadores caminhar para Muemba. Um dia depois é a vez de partir a 3ª Companhia em direcção a Maziúa, o posto remoto na margem do Rovuma que os alemães tinham assaltado e incendiado a 24 de Agosto de 1914. As forças restantes caminhariam até Nanguar, a 160 km de distância, onde se reuniriam com uma coluna proveniente de Porto Amélia ou da Ilha de Moçambique.
Em marchas duras, a fila de tropas e carregadores que resta da outrora imponente Coluna do Lago tem de cumprir etapas de 25 quilómetros por dia por serras pedregosas, debaixo de um calor extremo que torna o ar irrespirável, onde a exuberância da natureza se suspende para dar lugar a uma paisagem ardente e inóspita. Ao chegarem a Nanguar as dificuldades com a comida aumentam. “Em Nanguar não há absolutamente nada, a região é pobre e tudo se encontrava raziado pelo inimigo e apenas o rio dava carne de hipopótamo”, recordaria José Teixeira Jacinto. “Era o fim. Chegáramos ao auge do desespero”, notaria Cardoso Mirão. O comandante tinha ataques de delírio, mandava tocar a fogo, gritando contra os alemães. Regina, o caçador italiano, queixava-se: “Nada. Região árida, região maldita, sem um preto nem um bago. Sem a mais insignificante peça de caça ou indício de fera”.
No dia seguinte, porém, chegou com a coluna avançada das forças do major José Feio Quaresma o 1º cabo indígena Tiar, que sabia onde tinham sido escondidos mantimentos na floresta. Estavam enterrados desde Maio, quando os alemães entraram pelo território da então colónia de Moçambique. Foram desenterradas então 10 caixas de latas de sardinha, duas de atum, duas latas de petróleo, 2 caixas de sabão, 6 garrafões de vinho, 2 caixas de vinho do Porto, entre outros bens. Os cereais tinham apodrecido. “Naquele dia tivemos rancho melhorado e vinho ao almoço”, lembraria Cardoso Mirão.
Nas encostas desoladoras de Nanguar, o destino final da força que entretanto reunira mais de 1000 soldados e um número incalculável de carregadores começava a concretizar-se. As companhias que estavam em Nanguar iriam ser dissolvidas num destacamento comandado pelo major Feio Quaresma. Tinham feito em vão quase 900 km de marchas entre a selva, ao longo de quase quatro meses. Se não tivesse havido um superior em delírio ou um gabinete inconsciente a mandar aquela força pelo Zambeze acima para chegar ao Niassa, se a coluna tivesse seguido a mesma rota das tropas que tinham acabado de chegar a Nanguar, Henrique de Melo, José Teixeira Jacinto e os seus soldados teriam partido de Mocímboa da Praia, teriam seguido os trilhos do planalto dos macondes e percorrido uns 250km. Caminhariam quase quatro vezes mais, por territórios mais inóspitos, desabitados e desconhecidos.
Se não fossem condenados a essa longa e vã travessia da selva, teriam evitado a morte do sargento Carvalho ou do sargento Freire, o ataque de formigas que por pouco não matou o sargento Leão, o massacre em Maúta e as fomes terríveis de Amaramba, Metarica e Nanguar. Os soldados que ali chegaram deram conta dessas incongruências, mas engoliram em seco antes de partirem de novo, agora para a guerra. O capitão Henrique de Melo era agora um símbolo do destino cruel a que ele e os seus homens tinham sido votados. “Hoje não é um homem, não é um soldado; é um vencido, um doente, um velho. Venceu-o a selva, a vida, a ingratidão dos homens. Não fez a guerra, marchou apenas. E o mato também envelhece”, escreveria Cardoso Mirão.
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