Os soldados privados do eterno descanso
Em 1956, o Estado Novo decide homenagear os mortos na Primeira Guerra em Moçambique e constrói um mausoléu em Mocímboa da Praia, onde deposita os restos mortais de soldados tombados em Quionga ou nos territórios dos macondes. Esse ossário foi profanado e hoje os esqueletos dos soldados estão ao ar, no interior de um templo corroído pelo tempo e pelo viço da natureza tropical. Com a cumplicidade do estado e da nação, para eles não houve lugar ao eterno descanso.
“Dulce et decorum est pro Patria mori”. O verso de Horácio que atesta a beleza e a nobreza da morte ao serviço da pátria dificilmente poderia soar mais vazio e mentiroso do que na porta de entrada no mausoléu em ruínas no cemitério de Mocímboa da Praia, erigido pelo Estado Novo para perpetuar a memória dos soldados portugueses que tombaram na I Guerra Mundial no Norte de Moçambique.
O mausoléu conserva ainda a imponência da estátua de uma figura feminina que segura a espada com a mão direita e ampara um escudo com as armas nacionais com a esquerda. Mas, no seu interior devastado pelo tempo, pelo saque, pela natureza e pelo esquecimento, as tumbas onde se encontram depositadas as ossadas dos soldados que caíram em Mocímboa, em Quionga ou no território dos macondes são a prova de que nada, nem a paz eterna, fez sentido naquela guerra. As pesadas pedras de mármore que tapavam as sepulturas no interior do mausoléu foram arrastadas e restos de fémures, de caveiras, de cúbitos assim ficaram ao ar, como testemunho do abandono cultivado num país desmemoriado e ingrato.
Mocímboa da Praia é hoje uma pequena cidade instalada na coroa de uma baía cruzada por barcos com as velas triangulares típicas do Índico que há muito esqueceu o tempo em que acolheu a base da Quarta Expedição das tropas portuguesas em guerra com os alemães na fronteira do rio Rovuma. Já ninguém designa o promontório do norte da baía por “Ponta Vermelha”, com os soldados portugueses faziam há cem anos por comparação com o relevo similar que se encontra em Maputo. Nenhuma das instalações militares construídas à pressa para receber as tropas em 1917 resistiu à prova do tempo. Hoje, na sua parte alta e central, Mocímboa continua a ser a cidade que os portugueses deixaram por alturas da independência. Uma cidade bem desenhada, com edifícios esbeltos e bem construídos. Só o cemitério e o ossário ficaram como testamento de duas guerras, a mundial e a colonial. Ambos foram votados à ruína e ao esquecimento.
Amisse Juma, 76 anos, vive desde sempre na avenida que segue o Clube de Mocímboa, o espaço de convívio dos tempos coloniais, e acaba no cemitério. Olhos estranhamente claros e vivos, dono de um português de nível raro nestas paragens onde o suaíli e os dialectos locais dominam, ele lembra-se dessa guerra distante, conhece a história do ossário e do cemitério. “Nesse tempo, a guerra andava de um lado para o outro e não havia tempo para enterrar os mortos um a um. Faziam uma vala e por lá ficavam”, diz. Até que, “em 1955”, se construiu aquele mausoléu para acolher os restos mortais dos soldados dispersos por Quionga e pelos territórios dos macondes, no interior, para, juntamente com os que pereceram em Mocímboa da Praia, lhes garantir o eterno repouso. Ele lembra-se desses dias de obras e solenidade, como se lembra de fazer perguntas aos mais velhos sobre essa guerra estranha e antiga.
Amisse acerta nas datas, lembra-se das memórias dos antigos que falam de uma localidade de pescadores subitamente invadida por milhares de soldados brancos, consegue indicar o local dos aquartelamentos, mas não se recorda que o mausoléu foi inaugurado em 1956 pelo então presidente da República, Craveiro Lopes, ele próprio um dos militares que sofreu as agruras da guerra nos combates em torno de Nevala. No ossário, não ficaram os restos mortais de todos os soldados – “alguns foram para Portugal”, diz este ancião, sentado no chão de entrada da sua palhota, com um cofió na cabeça a indicar a sua devoção ao islão, exibindo com uma ponta de vaidade o português que aprendeu no curso de tipografia tirado na escola de artes e ofícios da Ilha de Moçambique.
E depois? Depois, “veio a independência e aquilo ficou para ali”, diz Amisse, que pelo meio troca umas palavras com Shafi Sahid em suaíli para lubrificar as recordações. Os portões de entrada enferrujaram e o tempo apagou as armas portuguesas que lá estavam inscritas. No cemitério, o mato tomou conta das campas onde a custo se lêem o nome de colonos ou de soldados que morreram em combate nas operações militares dos anos 60 e 70. No mausoléu, as raízes das árvores entraram pela estrutura e ameaçam engolir tarde ou cedo o edifício. As janelas e as portas há muito que desapareceram. Mas o pior, o que causa arrepios no seu interior, é verificar que alguém profanou os túmulos, o que, na opinião de Amisse e de Shafi, terá acontecido logo depois da independência. E, 30 anos passados, os ossários assim permanecem, com as pesadas tampas arrastadas, com os esqueletos ao ar, sem que ninguém se tivesse preocupado em dar o mínimo sentido ao verso de Horácio que glorificava a morte pela pátria.
Não é difícil imaginar as razões que levaram as autoridades do Estado Novo a escolher Mocímboa da Praia para acolher o principal monumento em memória das vítimas da Primeira Grande Guerra em Moçambique. Foi nas suas colinas, nos barracões das tropas e nos hospitais de campanha que a explosiva combinação do clima, das doenças tropicais, da falta de higiene e de meios sanitários provocou o maior número de mortes de toda a campanha militar em África. Descrita como a “Sintra do Niassa” pela beleza da sua baía e pelo cenário verde das suas colinas, Mocímboa escondia um perigo. Américo Pires de Lima, um alferes médico, percebeu-o pouco depois de registar na sua memória a visão idílica da “Sintra do Niassa”. Escreveu: “Mocímboa repousava sobre um grande pântano subterrâneo… Daí a vegetação luxuriante, que lhe fez atribuir uma designação tão pouco merecida. Daí o facto de as roupas e o calçado, tirados à noite, aparecerem de manhã húmidos e bolorentos”. A existência de pântanos implicava a proliferação de mosquitos e a proliferação de mosquitos daria nervo ao pior inimigo das tropas portuguesas em Mocímboa: a malária.
Quando se discutiram os planos da campanha para 1917, porém, esse perigo subterrâneo não entrou nas contas da operação. No final de 1916, a derrocada da ofensiva portuguesa em território colonial alemão tinha trazido o inimigo até às portas de Palma, a sede da anterior base, e ninguém queria viver de novo esses dias de pânico que só acabaram quando o couraçado britânico Princess atracou ao largo dos aquartelamentos e as chuvas de Dezembro imobilizaram as tropas germânicas. O novo comando militar, que depois da partida de Ferreira Gil para Lisboa, no Natal de 1916, seria entregue às mãos do governador de Moçambique, Álvaro de Castro, considerou mais prudente basear a expedição que se preparava na metrópole um pouco mais longe da linha de fronteira. Porto Amélia (actual Pemba), a uns 300 quilómetros do Rovuma, era distante de mais. Mocímboa, a cerca de 100, era a solução ideal. Depois, como Palma ou como Porto Amélia, Mocímboa situa-se na coroa de uma baía que permite a ancoragem de navios de grande porte.
Em Fevereiro de 1917 já a sede do novo comando se tinha aqui instalado e as primeiras tropas frescas desembarcavam do vapor Portugal. Três meses mais tarde, no dia 14 de Maio de 1917, o oficial médico Américo Pires de Lima recebeu ordens para se deslocar de Palma para o Quartel-general em Mocímboa e, após uma viagem de 36 horas para vencer cerca de 80 quilómetros numa machila transportada por 16 carregadores que se revezavam sob a vigilância de um sipaio (polícia indígena), chegou à Ponta Vermelha, do outro lado da baía, e viu “lá ao fundo a famosa Sintra do Niassa”. O cenário não seria muito diferente do actual. Na baía de águas azuladas, ainda hoje há dezenas de pequenos barcos de vela triangular como os que escoltaram os navios portugueses. No porto de pesca que os acolhe, até o ponto onde chega a maré alta, o peixe e os frutos do mar são preparados e vendidos num dédalo de vielas pavimentadas com restos de marisco e conchas, onde o odor do sal se tempera como o do peixe, das especiarias e dos detritos de incontáveis origens. A sonoridade de diferentes dialectos, da costa e do interior, e do suaíli, a profusão de indumentárias, de negros, hindustânicos ou islâmicos, atestam a vocação ancestral de Mocímboa para atrair as diferentes faces da cultura do Índico.
A morte no 31 do Porto
Nesse mês de Maio já tinham chegado os primeiros contingentes que, desejava-se, haveriam de limpar do registo as pesadas derrotas militares de 1916. Em Fevereiro chega o Portugal com um batalhão de infantaria de Braga. Em meados de Março o Moçambique traz um esquadrão e oficiais que se dedicariam a instruir companhias indígenas. Em Abril vêm regimentos do Porto e de Bragança. Como a maioria das tropas recrutadas para África, os soldados desconheciam em absoluto o que os esperava. Os cerca de mil homens do regimento 31 do Porto podiam suspeitar que tinham ido para as costas do Índico como castigo pelas sublevações em que tinham participado no Outono de 1916. Mas era impossível sequer imaginar que, três meses depois de chegarem a Mocímboa, dissessem com naturalidade e resignação: “Sou do 31, tenho de morrer”.
A saga do mais desafortunado corpo militar que participou na Grande Guerra em África começa nos dias 9 e 10 de Outubro de 1916, nas ruas do Porto. A meio da tarde de domingo, 9 de Outubro, o que parecia ser uma rixa normal entre um soldado, José Júlio de Mascarenhas, e um polícia faz estalar dois dias de tumultos que alastram pelas ruas e deixam a cidade em estado de sítio. No final da tarde do dia seguinte, uma multidão de pessoas iradas e famélicas concentra-se na Praça do Coronel Pacheco e desafia os polícias que se haviam refugiado no interior da 13ª esquadra (que ainda hoje se encontra ali instalada). Segue-se uma troca de tiros. Um polícia é barbaramente assassinado com disparos à queima-roupa. Outros quatro são feridos.
Um inquérito policial acompanhado de perto pelo Ministério do Interior constata que as responsabilidades pela insubordinação e da violência cabem a soldados de dois regimentos baseados na cidade. Um deles é o 31. Um cabo e dois soldados deste corpo são presos. O Jornal de Notícias do dia 12 daria conta que outros três militares do regimento tinham recebido assistência hospitalar na sequência da rebelião. No inquérito, um depoimento, de Manuel José de Catalão, confirma que o 31 foi o regimento que mais se destacou nos distúrbios, mas notava “que o souberam fazer, pois que o comandante até elogiou os praças por se terem portado bem quando eles foram os piores". Ao final de dois dias de confrontos entre a polícia e os soldados, tinham morrido duas pessoas, 60 ficaram feridas e a polícia procedeu a 177 prisões.
Minado pela indisciplina, o regimento era um viveiro de criminosos de delito comum que se dedicavam ao roubo, dentro e fora do quartel, e aos ataques a polícias. A incapacidade de pôr a tropa na ordem levara à demissão do comandante da região militar do Porto, o general José Ribeiro Júnior. Correia Barreto, que o substituiu, não conseguiu melhores resultados. Em Abril de 1917, o regimento registava 79 desertores entre as suas fileiras. Nessa altura, porém, o seu destino estava traçado. Como acontecera na terceira expedição com 432 praças do regimento de infantaria 21 e oito sargentos, as tropas do 31 foram muito provavelmente transferidas para as Colónias nos termos do Regulamento Disciplinar. Sousa Rosa, que comandaria as tropas portuguesas em Moçambique depois de Setembro de 1917, lamentaria no seu relatório que os contingentes que tinha ao serviço “eram mais elementos de perturbação e indisciplina do que forças a aproveitar contra o inimigo”.
Chegados a Mocímboa, os soldados do regimento começaram a morrer em catadupa. O médico Américo Pires de Lima, também ele do Porto, tinha vivido o flagelo das doenças tropicais em Palma, tinha cuidado de uma multidão de soldados famintos e arrasados moral e fisicamente após a derrota de Nevala e tinha sentido o pânico que assaltou o Quartel-general das tropas portuguesas quando, em Dezembro de 1916, os alemães se encontravam em Matchemba, a menos de 100 quilómetros de distância. Mas seria em Mocímboa que viveria “as horas mais trágicas que passei em Moçambique, as quais foram derivadas da hecatombe, que exterminou quase completamente o batalhão do 31”. Ao contrário da expedição anterior, desta vez não tinha havido qualquer vacinação nem preparação prévia dos soldados para os riscos das doenças tropicais. A abundância de pântanos criava condições terríveis de salubridade. Cedo os soldados começaram a baixar às enfermarias com paludismo, com destaque para a forma cerebral, disenterias, incluindo a disenteria amibiana, e anemias, entre outras doenças causadoras de mortes.
Pires de Lima vivia ao lado desse drama. Nos seus primeiros dias de estadia em Mocímboa, o que mais o parecia preocupar eram os frequentes ataques de leões ao acampamento. A noite, “entrecortada pelos temerosos rugidos do leão e pelo ruído fantástico dos mil carregadores espavoridos”, não o deixava dormir. Pouco depois, a morte frequente de indígenas desprotegidos tornou-se irrelevante para a tragédia que se avolumava nos barracões das tropas brancas. “O meu quarto fazia parte do corpo da enfermaria, estando separado dela por uma parede que não atingia o tecto. Lá passei atrozes noites de insónia, provocadas pelos horríveis ruídos que constantemente ouvia – gemidos dos doentes, estertores dos moribundos, tudo isto acompanhado por um cheiro pestilencial, que da enfermaria fechada exalava”. Quando, lá para o final de Maio, a estação seca se instalou, Mocímboa transformou-se num imenso campo de morte.
“Quando morreu o primeiro soldado (era do 30)”, recorda Pires de Lima, “foram ao enterro o próprio comandante, major Carneiro, vários oficiais e um grande número de praças. Pouco depois ia apenas uma pequena deputação de soldados com um sargento. Mas como as mortes fossem frequentes, os enterros passaram a fazer-se de noite, para não espalhar o alarme. Finalmente, acabou a madeira para caixões, nem havia quem os fizesse. Foram construídas duas tumbas que, transportadas numa carroça, lá levavam, em sucessivas viagens, os cadáveres para o cemitério. Finalmente, todo o pudor se desvaneceu, e a sinistra carroça, puxada por uma mula e guiada por um preto, constantemente girava entre a casa mortuária abarrotada de cadáveres e o cemitério”.
Passados apenas três meses desde a chegada, o 31 do Porto, sem dar um tiro nem participar em qualquer operação militar, tinha 30% de baixas. Um mês mais tarde, a 18 de Agosto, 203 dos seus 1074 homens tinham morrido e 511 estavam hospitalizados. Até ao final da campanha, o 31 deixou em África 445 homens. “Todas as manhãs faltavam vários soldados à chamada, e o sargento de serviço, que ia abaná-los à cama para os despertar, ia dar com eles mortos. Dias houve [como o dia 3 de Julho de 1917] em que apareceram assim mortos dez soldados”, escreveria Pires de Lima.
Condenados à inactividade enquanto se curavam as feridas da derrota da campanha anterior e se preparavam as bases para a ofensiva de Setembro, os soldados habituaram-se a conviver de perto com a doença e a morte. Os critérios de escolha da base, a impreparação e a negligência, tornaram-se anedóticas, deixaram de contar. “Acampámos num cemitério. Perguntei esta manhã a um negro o que são estes pequenos montículos de terra, alinhados diante da minha palhota, dentro do perímetro do nosso acampamento. Explicou-me que cada pedaço de terra cobre o corpo de um morto. Aqui se enterravam, antes dos brancos escolherem este acampamento, os negros que morriam lá em baixo, em Mocímboa”, contaria o alferes Cardoso Mirão, que ali passou uma curta temporada antes de partir para essa odisseia louca e inútil em que se transformou a Coluna do Lago Niassa.
Os soldados derretiam ao sol, aborreciam-se com os cânticos corânicos, entretinham-se com as m’namukas (mulheres), esmeravam-se em denegrir os “monhés” (moçambicanos de origem indiana), assistiam incrédulos ao tratamento dado aos indígenas que não pagavam o m’soco (o famigerado imposto de palhota) e passavam o resto do dia a ver uma expedição militar a desfazer-se em doenças. Foi ali que a maioria soube o que era o paludismo e sentiu o efeito das suas febres: Cardoso Mirão deixou-nos a sua própria experiência desse horror: “Anunciam-se por um ligeiro mal-estar, um arrepio, e logo após, calafrios pelo corpo todo. Estes calafrios aumentam, põem-nos num tremor constante, sacodem-nos da cabeça aos pés, atirando-nos para um canto impossibilitados de todo o equilíbrio. Assalta-nos então um frio intenso, glacial e insuportável, que nos faz tiritar compulsivamente, sem poder ou força de vontade, incapazes de nos dominarmos”.
Pires de Lima habituara-se a isso, mas não esconde a sua emoção e perplexidade quando descreve o horror do embarque de doentes para os hospitais de Lourenço Marques. “O que eu tinha presenciado em Palma, na ocasião da retirada de Nevala, e que me parecera o máximo da miséria orgânica que o homem podia sofrer, ficava a perder de vista, comparado com o espectáculo daquele embarque. Faces macilentas, olhos febris, fardas a oscilar em cabides, verdadeiros cadáveres ambulantes se dirigiam, em trágica procissão, para a ponte de embarque”. Muitos morriam antes de entrar no navio. Houve um dia em que ficaram pela praia os cadáveres de três doentes. Os médicos não os quiseram privar da “última e suprema ilusão” de estarem a caminho da pátria.
Próximo destino: Negomano
Depois de Maio, a preparação militar para a campanha que se avizinhava acelerou. Nesse mês os oficiais que haveriam de criar quatro companhias de soldados indígenas partiram para a Beira, com a missão de criaram a Coluna do Lago. Outras duas colunas estavam a ser organizadas com o que restava das tropas desembarcadas, a Coluna de Negomano e a Coluna de Mocímboa do Rovuma. O estado sanitário das tropas, porém, não permitia grandes veleidades ao governador Álvaro de Castro. O estado de ânimo, ainda menos. A expedição de 1916 estava de regresso à metrópole, deixando mortos em Moçambique 6% dos seus 4483 soldados e 159 oficiais. A sua substituição estava já em curso. Por essa altura, em Julho, o ministro do Exército, Norton de Matos, afirmava ao Parlamento: “Se juntarmos aos contingentes europeus as forças indígenas que armámos em Angola e Moçambique e as guarnições coloniais, podemos declarar que temos um exército nas nossas colónias de 45 mil homens”. Por essa altura, o efectivo das tropas nacionais em Moçambique era superior ao dos alemães, reduzidos a um máximo 1600 soldados europeus e 12 mil indígenas (os temíveis askaris).
Além de soldados, a expedição receberia equipamento com o qual as tropas alemãs, há muito isoladas de qualquer contacto com a metrópole, nem sequer ousavam sonhar. Nos primeiros navios de 1917 seguiram 53 camiões, quatro postos de telegrafia sem fios e uma esquadrilha de aviação. Nem isso fez mover o ânimo da expedição, que, por falta “impulso e alma”, acabaria por ser “pior do que as outras” na avaliação suspeita do coronel Azambuja Martins, chefe do Estado-maior do contingente de 1916. Por falta de assunto, a montagem dos aviões Farman F-40 que vieram desmontados em peças tornou-se um assunto de enorme expectativa.
Jorge Gorgulho, na descrição de Pires de Lima um “rapaz robusto, de olhar rectilíneo e aspecto decidido”, tinha-se formado na Aeronáutica Militar de Vila Nova da Rainha e foi para Moçambique para ser o primeiro português a voar em África. Um dia, conta Pires de Lima, Gorgulho “elevou-se majestosamente no ar e todos nós sentimos orgulho em que o céu africano fosse violado por asas portuguesas. Só um homem abanava a cabeça, apreensivo, perante as arrojadas manobras do aviador português. Era o mecânico. Quando lhe gabaram a coragem e a perícia do piloto, ele limitou-se a responder: 'On ne fait pas cela!'”. No dia seguinte, o médico estava no hospital e ouviu um estrondo. “No início de uma ascensão audaciosa, o aparelho viera a estatelar-se no solo, explodindo e ficando envolto em chamas. Acorreram os assistentes, desvairados, vendo sair cambaleante, de entre os destroços ardentes, o infeliz aviador, a arder ele próprio como um archote. O resto foi uma lenta e atroz agonia”.
A 12 de Setembro chega a Mocímboa da Praia o novo comandante da expedição, o coronel Sousa Rosa. Meses antes, entre Fevereiro e Maio, os alemães tinham entrado sucessivas vezes no território nacional, destruíram uma vez mais o forte de Maziúa, passaram a serra Mecula, chegaram a Metarica, ameaçaram Montepuez, bem dentro do território de Moçambique. Acossados no norte pelos britânicos, destacamentos alemães passeavam pacatamente por Moçambique. As ordens de von Lettow-Vorbeck eram claras: “Devastar bem o inimigo no Rovuma e a sul do mesmo e obter comida e equipamento. Viver tanto quanto possível, exclusivamente, do inimigo”. Em Outubro, numa missiva dirigida ao governador da colónia alemã, precisaria que, “apesar de todas as dificuldades de abastecimento que em breve se iriam fazer sentir na África Oriental Alemã, a guerra pode e deve continuar. Uma das possibilidades que se oferecia era deslocar a base de operações para território português”.
A percepção do perigo impunha decisões. Tinha chegado a hora de deixar Mocímboa e de partir para mais perto da frente. Os ingleses recomendaram o reforço da linha defensiva do Rovuma e Sousa Rosa parte para Chomba à cabeça do seu Estado-maior com uma força de “praças de engenharia a quem só ensinaram canto coral”, de “praças de artilharia que nunca fizeram fogo” e “praças de infantaria que mal sabiam carregar a espingarda”, como depois lamentaria. A 20 de Novembro, o comando move-se de novo para Nacature, um pouco a sul da actual Mueda. Cinco dias depois, numa operação fulminante, os alemães invadem o território português em Negomano e destroem para sempre todas as expectativas de uma saída gloriosa para o exército no Norte de Moçambique.
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