A menina da cozinha tornou-se a “guardiã do fogo”

Cozinhou em directo no horário nobre da televisão e tornou-se um caso sério de sucesso. Depois fez muitas outras coisas, incluindo o livro fundamental Cozinha Tradicional Portuguesa. Não é a “senhora das receitas”. “Penso que me esforcei para ser mais do que isso”.

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Para sabermos como chegar a casa de Maria de Lourdes Modesto, em Alapraia, no Estoril, ela envia-nos um email com as explicações, que termina “a minha casa tem estrelícias e estarei à sua espera”.

O jardim é um dos grandes orgulhos daquela que, aos 84 anos, é, de pleno direito, a grande dama da gastronomia portuguesa. Mas, quando chegamos, quem primeiro nos recebe, com saltos de entusiasmo, é a Migalha, a cadela, outro dos seus grandes orgulhos, lacinho cor-de-rosa a aparecer no meio dos caracóis negros (tinha outro lacinho, conta a dona, mas perdeu-o, e de qualquer forma é bom manter um porque assim vê-se melhor e leva menos pisadelas).

Depois da Migalha, surge a própria autora do livro-referência Cozinha Tradicional Portuguesa e de várias outras obras fundamentais sobre gastronomia, perguntando com um sorriso: “Chá, café ou laranjada, como diziam as meninas da TAP?”

Fez-nos biscoitos e café para um encontro que durou quase quatro horas, sem perder o bom humor. Aliás, não só o bom humor, mas o sentido de humor, foram sempre características desta mulher que quando era jovem tinha uns exóticos olhos rasgados, usava sabrinas e rabo-de-cavalo como Audrey Hepburn, e andava à pendura numa Vespa nas ruas de Lisboa. Não admira que tivesse sido um sucesso imediato na recém-nascida televisão nacional, onde se arriscava a fazer soufflés em directo.

Como não sabe parar de trabalhar, está agora a digitalizar os muitos dossiers de receitas tradicionais, tesouros de família que ao longo de muitos anos lhe foram confiados por pessoas de todo o país, e prepara-se para editar um segundo livro com as crónicas que escreveu para o Diário de Notícias.

Foi a “menina da cozinha”, mas tornou-se muito mais do que isso. Tomou em mãos a tarefa de defender a cozinha tradicional portuguesa — ou seja, um aspecto fundamental da cultura e da história do país. O crítico gastronómico José Quitério chamou-lhe “uma das cada vez mais raras ‘guardiãs do fogo’”. Não tem de ter receio — será sempre muito mais do que “a senhora das receitas”.

Recentemente, esteve na loja A Vida Portuguesa, a convite da Catarina Portas, para uma conversa com Miguel Esteves Cardoso a propósito da cozinha portuguesa. Aos 84 anos continua a ser a grande referência a esse nível. Isso surpreende-a?
No outro dia, numa revista da televisão, alguém dizia que não se percebe muito bem o que se passa com a Maria de Lourdes Modesto, porque ninguém a vê mas dá entrevistas e, 50 anos passados, ainda se fala numa pessoa que começou a fazer televisão em 1958.

Isso significa que, entretanto, na cozinha tradicional portuguesa não aconteceu mais nada?
Eu gosto muito que tenham simpatia por mim. Não me viria fazer esta entrevista se não tivesse o mínimo de simpatia pela pessoa que eu criei publicamente. Mostrei-me, exibi-me, expus-me. Se me perguntar se gosto de ser conhecida ou não, depende. Às vezes, penso que é uma carga, outras, penso que foi muito bom porque me deu muitas oportunidades.

Mantém-se muito moderna e as pessoas reconhecem que continua a fazer sentido ouvi-la hoje.
Há um estigma que tenho que é o de ser a senhora das receitas. Não fiz esforço por isso, simplesmente apaixonei-me por uma coisa onde fui metida. Não fui para a televisão para fazer cozinha, fui porque tinha algumas valências, só que a primeira emissão foi cozinha e o director de programas disse que eu não fazia mais nada senão cozinha. Começo a ser uma especialista, porque em princípio quem vai para a televisão se permite dizer que vai ensinar a fazer, além de que eu tinha sido professora, e as professoras têm uma determinada mentalidade de que hoje ainda não me libertei.

Depois aconteceu outra coisa: eu era muito afrancesada, porque fui muito nova trabalhar no Liceu Francês. Fiz seis anos na escola nova, mas já vinha da escola velha, do Pátio do Tijolo. Era muito nova. Isso teve uma grande importância porque foi uma descoberta enorme. Era uma gente diferente daquela com quem eu convivia. Era muito mais aberta, com muitas preocupações éticas, abriram-me muito os olhos, que nessa altura eram um bocado em bico. E depois os franceses tiveram uma grande importância também na questão da cozinha. Naquele tempo, com um português era feio estar a falar de cozinha, de receitas, dizer que esta é melhor, aquela é pior. Só as donas de casa, no mau sentido, é que falariam de cozinha. E os franceses falavam muito, mesmo muito. Não comiam nada sem dissertar acerca daquilo que iam comer ou que tinham na boca.

Homens, mulheres…
Todos. De uma maneira geral, os homens eram muito ouvidos pelas mulheres. Elas também cozinhavam, mas a apreciação e dissertação cultural do que se estava a comer era maioritariamente masculina e muito escutada.

Foi a passagem pelo Liceu Francês que a tornou tão aberta ao mundo ou isso já vinha de si?
Eu era muito moderna. É muito estranho porque vivia na província, com todos os condicionamentos. Não sei se sabe o que era a vida das mulheres na província. Claro que hoje não tem nada a ver, mas na altura era uma coisa mesmo desagradável, era tudo opressão, com os homens com uma importância muito grande e as mulheres com um segundo ou terceiro ou quarto papel. Mas eu era bastante avançada. E depois tive oportunidade de vir para Lisboa, que era aquilo que eu queria, como a Maria Papoila, que o sonho dela era ver Lisboa [referência ao filme de Leitão de Barros, de 1937]. Eu não era propriamente ver, mas vir para cá.

O que é que nessa altura chegava do mundo ao Alentejo, onde cresceu?
Havia rádio. Lembro-me da minha irmã, que tinha o mesmo problema de coração que eu tenho, ouvir os desafios de hóquei em patins, que na altura era uma coisa muito importante, e de a minha mãe ter umas grandes aflições [porque] a minha irmã ouvia os relatos e ficava indisposta quando um metia o golo.

A rádio foi muito importante na época. E o cinema. Não me lembro de passar uma semana sem ir uma vez pelo menos ao cinema. As notícias sobre os artistas também tinham muita importância, não como hoje nas revistas cor-de-rosa, para nós eram seres muito especiais e de cuja vida sabíamos muito pouco, sabíamos que a Mirita Casimiro era casada com o Vasco Santana e pouco mais.

O seu sonho de adolescente era então vir para Lisboa?
Sim, porque não via saída para mim. Tive sempre muito jeito de mãos, não sei se me fica muito bem dizer isto, e andei sempre nas freiras, ao sábado ia para bordar. Quando eu mais tarde dizia à minha mãe quanto custava levantar a bainha de umas calças, ela ficava muito escandalizada: “Tu não me digas que não fazes a bainha das calças, tu que aos cinco anos fazias point-à-jour [um tipo de ponto de bordado].”

Houve uma época em que resolveram que as mulheres tinham de trabalhar e abriram uma série de cursos pequenos, um dos quais de educadoras de Economia Doméstica. Nós não nos candidatávamos, éramos escolhidas, e eu tive a sorte de ter sido escolhida. Vim para Lisboa e, enquanto em casa tinha uma disciplina relativa, vim para uma disciplina de certo modo severa, e o que é engraçado é que gostei imenso, gostei de ter sido metida na ordem.

Foi aí que reparei na cozinha. Passei algumas férias em casa de um tio meu que vivia em Mafra e que era casado com uma pessoa que não era alentejana, e por isso eu comia de maneira diferente em casa deles. Até aí nunca tinha reparado que a cozinha alentejana era capaz de ser diferente da do Porto e que a cozinha era uma coisa importante.

Vinham raparigas de todo o país para esses cursos?
No meu curso havia raparigas de Viana do Castelo, ainda continuo a ser amiga de uma delas, uma do Porto, duas de Viseu e, do Alentejo, havia uma que já estava no segundo ano. Eu era a melhor em trabalhos manuais e uma das piores na cozinha, porque a minha mãe nunca nos deu oportunidade de ir para a cozinha.


Ainda hoje dou muito valor ao trabalho e faz-me muita impressão que as pessoas não trabalhem ou que eu não trabalhe. O meu marido, quando casámos, fazia-lhe imensa impressão que eu nunca estivesse quieta: “Mas tu não és capaz de estar um bocadinho sem fazer nada?” Porque a minha mãe só dava valor a quem trabalhasse, quem não trabalhasse podia ter a fortuna que tivesse que para ela era zero. Isso também teve muita importância para mim.

E como era o ambiente entre essas raparigas chegadas a Lisboa para um lar da Mocidade Portuguesa?
Quase todas eram fidalgas. Falavam muito nos seus brasões. Eu, Maria de Lourdes Modesto, logicamente que não era fidalga. Mas era muito magra e lembro-me de essa minha amiga de Viana me dizer: “Olha lá, tu és artista ou o que é que tu és?” Eu era diferente. Não era gordinha e baixinha, era outro número.

Dei-me muito bem, gostei muito. O lar onde estávamos instaladas era aqui em São João do Estoril, numa casa muito simpática, podíamos ir à praia nas férias e íamos às aulas todos os dias ao Liceu Maria Amália. Íamos todas em fila, tomávamos o comboio aqui em São João do Estoril, mas íamos direitinhas e vínhamos direitinhas para casa, havia uma grande disciplina, comíamos todas à mesma hora, tínhamos de nos comportar bem à mesa, de ter as gavetas arrumadas.

E depois do curso foi ensinar Economia Doméstica para o Liceu Francês?
Quando acabei, não queria voltar para o Alentejo, e as senhoras da Mocidade Portuguesa, que orientavam o curso, achavam que eu devia continuar. Já vinha das freiras muito adiantada nos bordados, aprendi a bordar a matriz a fazer os crivos, a bordar a ouro, tenho ainda no meu quarto o primeiro trabalho que fiz com fio de ouro, fazia também ponto de cruz, fiz a história do pão em quadrinhos pequeninos, tinha quarenta e tal meadas de fios diferentes.

Gostava realmente disso?
Muito, ia no comboio a fazer. Curiosamente, vim morar para esta casa e para aqui ao lado veio depois morar um antigo aluno da Escola Náutica, porque no mesmo comboio iam os estudantes da Escola Náutica, e ele lembrava-se perfeitamente de mim a bordar a ponto de cruz no comboio, com aqueles pontos muito pequeninos. Quando fiz a Grande Enciclopédia da Cozinha, foram três anos de trabalho, depois bordei uma toalha, porque tinha necessidade de trabalho manual, que é uma coisa que relaxa muito.

Fiquei em Lisboa. Era tudo novo nessa altura. Fui escolhida para ensinar crianças com deficiência, a que então se chamavam “atrasados mentais”, montei uma oficina de tecelagem e foi esse o meu primeiro emprego. Depois fiz o mesmo no hospital Júlio de Matos, mas aí era voluntariado. No Júlio de Matos, as alunas eram mulheres, e cada vez que eu faltava era um problema. Ameaçavam “se volta a faltar, leva com a lançadeira do tear”, e eram já teares grandes.

Estamos a falar dos anos 1940?
Nasci em 1930. A partir dos 17 anos, comecei a perceber mais ou menos quem eu era, porque a adolescência é complicada, crescer é uma coisa muito difícil, crescer na província é dificílimo quando se tem a cabeça noutro sítio. Depois há o despertar de muita coisa, que baralha.

Nessa época, as aulas da Mocidade eram obrigatórias, lavores, culinária, essas coisas, e o Liceu Francês não tinha outro remédio senão tê-las, quer gostasse quer não. E tinham uma professora que era muito antiquada e com a qual houve um problema. Então disseram que queriam uma pessoa com abertura, e eu era muito nova, usava rabo-de-cavalo, sabrinas, era toda modernaça dentro do possível e fiquei a dar as aulas da Mocidade Portuguesa.

A disciplina de lavoures chamava-se Culture e eu comecei a dá-la também e passei a ter segurança material. Até aí, quando dava aulas, recebia 25 escudos à hora. Quando fui para o Liceu Francês, puseram-me com um ordenado mensal. Como os professores do privado não faziam descontos, era limpinho. Estive nessa situação seis anos, que foram muito bons.

O Liceu Francês tinha nessa altura um ambiente muito diferente dos portugueses?
As meninas faziam fila para entrar na aula. Tinham farda, muita disciplina. Tinham um personagem que era o surveillant, e estavam sempre a ver o que se passava. Lá vi sempre os professores a serem avaliados, como querem fazer agora.

A mentalidade era mais aberta?
Praticamente, toda a gente era de esquerda. Para mim, conviver com aquelas pessoas já era uma abertura. Havia pessoas muito interessantes na parte portuguesa. Na parte francesa, também e discutiam política. Tudo isso contribuiu muito para me fazer crescer. Não eram avançados no sentido da saia curta, embora a professora de Ginástica da parte francesa usasse calções (a da portuguesa não), mas não iam além disto. Havia até pessoas muito conservadoras. Eu dava-me muito com os franceses. Era solteira, estava cá sem família, como era o caso de alguns dos franceses, tínhamos um grupo, íamos ao São Carlos, lembro-me de ter ido ao Carnaval de Olhão, fazíamos os nossos programas, que era uma coisa também nova. A minha maior amiga era uma francesa que tinha uma Vespa, só que o proviseur [director] não deixava que a Vespa ficasse à porta do liceu, ela tinha de a ir deixar longe. E nós andávamos em Lisboa de Vespa, ela era loura, eu tinha o cabelo escuro e era a pendura. Foi uma vida boa. Não arriscávamos situações complicadas, porque os professores na época eram muito controlados, a profissão obrigava a uma maneira de estar, de vestir.

Foi então que a convidaram para fazer a peça de Molière que acabaria por lhe mudar a vida?
Eles tinham aulas de Literatura e o teatro era muito importante para os franceses. Todos os anos havia uma peça representada pelos alunos. Só que veio para Portugal um casal, ela depois passou a ser muito conhecida como escritora, a Marie Cardinal, que escreveu um livro muito importante, La clé sur la porte, e o marido, [o actor e encenador Jean-Pierre Ronfard]. Ele quis montar aqui uma peça muito difícil para ser estudada nas aulas de Literatura. Exigia muitas horas de trabalho e era representada pelos professores, e precisavam de uma pessoa. Alguém perguntou porque é que não convidam a “Mária de Lourdés”, que era como eles diziam o meu nome. Aquilo foi considerado uma coisa importante, porque eles eram profissionais, e a televisão foi lá fazer uma reportagem. O Vasco Morgado foi, a Amélia Rey Colaço também. E, depois de me verem na peça, convidaram-me para trabalhar na televisão. Eu disse que não porque tinha a minha vida muito organizada.

A televisão era, na altura, uma coisa muito nova.
Sim, tinha começado. Eu nunca tinha visto televisão, só nos filmes em que as artistas tinham uma. Depois fui à televisão, era o Miguel de Araújo o director dos programas culturais, eu disse que não tinha preparação para fazer um programa cultural e eles insistiram. Mas eu tinha medo de perder a situação que tinha conquistado. Tive muitas dúvidas, levei um bom bocado a dizer que sim, até que um dia disse: “Só se for alguma coisa para as mulheres.” Meteram-me numa rubrica em que eu devia cozinhar mas também fazer outras coisas, pôr as flores, tratar do jardim. E foi então que comecei o primeiro programa a mostrar como se comia uma alcachofra, e o director de programas disse “ela só vai cozinhar”. Ainda hoje tenho ali uma peça de prata que mandei fazer que é um isqueiro em forma de alcachofra.

Nesse tempo havia alguma formação para saber como estar na televisão?
Não havia nada. A rubrica chamava-se “Segredos de Polichinelo” e eu tinha de explicar o que queria dizer “segredo de polichinelo”, e para isso tinha de pôr um ovo em pé. Tinham-me dito para não olhar para o monitor, mas eu não resisti e olhei e comecei a sair de campo. O Zeca Ferreira, que era o assistente do realizador, empurrou-me e disse “pegue no ovo, pegue no ovo”. Eu peguei e continuei a minha conversa como se estivesse no Liceu Francês a dar uma aula. O Mário Castrim, que fazia na altura ainda só esporadicamente crítica de televisão, disse que até que enfim tinha aparecido uma pessoa que sabia falar em televisão. Eu não sabia, falei como estou a falar aqui.

Não pensou em criar um estilo?
Nada. Fui ao natural. Nessa altura, usavam-se os olhos muito maquilhados, era o tempo da Audrey Hepburn. Tínhamos um maquilhador que se dizia que tinha vindo de Hollywood e ele queria fazer-me o traço dos olhos muito grande, e eu dizia “não sou artista, sou professora”, não queria aquele exagero. Ele fez queixa de mim e eu tive de levar o traço e pronto.

Como era o ambiente na televisão?
Eu era uma criatura um bocado estranha no meio daquilo, mas fui muito bem recebida. Mas não tem nada a ver com a televisão de agora. Eu não me dou com a televisão de agora. Deixei o programa em 1970 porque estava muito doente e muito farta. Achava que era chover no molhado e que não valia a pena. Além disso, deixou de ser em directo e eu gostava era do directo. Fiz coisas em directo que hoje digo “meu Deus, isto era uma loucura”, a omolete norvegiène, o soufflé.

Era um grande risco.
Um risco, mas um risco. Mas houve uma coisa que foi muito importante para a minha carreira na televisão. É que quase ao mesmo tempo fui convidada para a Fima-Lever [hoje Unilever, onde fazia receitas que assinava com o nome Francine Dupré], que estava muito contente por ter lá a rapariga da televisão e deu-me todas as condições — cheguei a ensaiar quatro e cinco vezes aquilo que ia apresentar [no programa], às custas da firma. Tive as condições todas para experimentar, comprar livros, e tive estágios no estrangeiro que foram muito importantes. Passei na televisão francesa, na do Luxemburgo, na italiana, num canal alemão.

Outra coisa muito importante foi perceber o que é que o público quer. Na Fima-Lever, faziam muitos estudos de mercado. Nada se fazia sem um estudo de mercado e chegaram a fazer um para avaliar a importância que eu tinha na opinião do consumidor. Por isso é que me dá um certo desgosto ser considerada só a senhora das receitas porque penso que me esforcei por ser um pouco mais.

A moda da cozinha francesa era muito forte. As donas de casa queriam apresentar pratos chiques, mostrar que eram modernas?

Escolher o que ia fazer não era fácil, porque achavam tudo caro. Quando tinham de me apontar uma farpa, era sempre que era tudo muito caro. Se eu mostrasse um camarão, levantava-se o Barreiro em peso, “ai Jesus que ela está a fazer uma coisa tão cara”.

Fazia muita cozinha francesa porque a cozinha francesa está codificada. Para os franceses, não é indiferente ser esta farinha ou aquela, uma é para uma coisa, a outra para outra coisa. Apesar da grande evolução da cozinha global — temos de lhe chamar alguma coisa a esta cozinha que se faz actualmente, eu chamo-lhe “global” — todos acabam por dizer que tem de se ter uma boa base de cozinha francesa. É na cozinha francesa que se aprende a manusear os alimentos, a conhecer o potencial deles, e isso está tudo escrito.

Os franceses têm um maior número de técnicas?
Não é terem mais, é que tudo o que se faz na cozinha pertence a uma técnica. O Bacalhau à Gomes de Sá — agora já se faz com galinha, isso é impensável para um francês, e também para mim. Esse prato é uma preciosidade, uma jóia da nossa cozinha e isso está na maneira como os ovos são trabalhados, na cozedura da cebola, na batata, que é frita mas não muito, tem de ser por imersão, tudo isso está classificado… como se juntam os ovos, a que temperatura é que têm de cozer para ficar cremosos.

Eles aplicaram um rigor à cozinha que não existe na cozinha portuguesa, é isso?
Nós temos uma cozinha rústica, muito verdadeira, autêntica, franca, honesta, mas é uma cozinha de mulher e não de profissionais de cozinha. Esses em Portugal faziam a chamada “cozinha de palácio”, que era uma caricatura da cozinha francesa. Os franceses têm a alta-cozinha francesa, que é a tal que está codificada, mas depois, à semelhança do que se passa connosco, cada terra tem a sua cozinha regional, que são 50 e tal, que estão devidamente catalogadas e estudadas.

Nós, na alta-cozinha, não temos uma identidade própria, fizemos sempre a cozinha francesa?
Era a cozinha de palácio, aliás, todas as ementas são escritas em francês.

Fala sempre com enorme admiração do chefe João Ribeiro, do antigo Hotel Aviz, em Lisboa, o único a que chama “mestre”. O que é que, para si, o distinguia dos outros?
Conheci também bem chefes franceses, que de uma maneira geral gostam de ser irascíveis. O mestre João Ribeiro não era assim. Era uma pessoa inteligente, muito simples, era uma pessoa da província, com sotaque, mas o mestre João Ribeiro não era só o mestre João Ribeiro. Todo o trabalho dele era feito em colaboração com os Rugeroni [proprietários], especialmente um deles. O mestre João Ribeiro tinha uma espécie de gaiola na cozinha onde tinha o Larousse Gastronomique, todos os bons livros franceses. Ele não sabia francês, mas havia o apoio do Rugeroni. Aquelas Tripas de Ouro, com que o mestre João Ribeiro ganhava sempre os prémios, foi uma coisa feita entre ele e um dos patrões. A parte intelectual da coisa, digamos, estava assegurada por um dos Rugeroni. O mestre João Ribeiro aprendeu com pessoas muito educadas e muito sábias, e ele respeitava essa parte. Não se considerava acima do Rugeroni, era extraordinariamente humilde. E mesmo os que trabalhavam com ele eram assim, não eram arrogantes, não eram chefes, tinham outros nomes, era o guarde manger, o commis, chefe era o João Ribeiro. Distinguiamo-lo pelo chapéu quando entrávamos na cozinha, ele tinha um chapéu muito alto. O commis já usava boina. Havia uma hierarquia muito rígida.

Tudo escola francesa. E o que ele fazia era cozinha francesa ou também se pode considerar portuguesa?
Havia uma ou outra coisa portuguesa, mas, por exemplo, o célebre Bacalhau à Conde da Guarda, é uma brandade que não é feita com azeite, mas com manteiga e natas. Não nos podemos esquecer que o Aviz foi o hotel onde ficou a rainha de Inglaterra, onde vivia o Calouste Gulbenkian. A omolete do Gulbenkian tinha, segundo o mestre João Ribeiro me disse, de levar sete facadas. Os ovos não eram batidos, eram cortados à faca, e tinha de ser sete vezes. Quando não era assim, o Gulbenkian dava logo conta.

Mas faz diferença?
Sim, porque quando se batem os ovos com o garfo, há uma entrada de ar e há mais volume. A faca corta o ovo, e na omolete eles não devem ser muito bem batidos porque senão fica dura. O mestre João Ribeiro devia saber que era muito bom, mas nunca mo disse, e eu convivi bastante com ele, levei-o à televisão e tudo.

Acha que é isso que falta hoje, alguma humildade nas cozinhas?
Acho que sim.

Será mais isso ou mais a tal falta de uma cultura sólida?
Também. O que se passa em Portugal é um fenómeno que não se passa por exemplo em França. Lá, como as pessoas já nasceram com uma cultura alimentar grande, que vem de trás, não se podem enganar umas às outras, ao passo que, aqui entre nós, um rapaz desde o momento em que vai para uma cozinha é um chefe.

O que é que se deve esperar de um bom cozinheiro? Que saiba fazer cozinha? Que saiba inovar?
A alta-cozinha passou de moda, mas ficaram as regras, a teoria ficou para ser aplicada. Houve várias ondas da nouvelle cuisine, por exemplo. O Luís XIV comia não sei quantos pratos em público. A seguir, o Luís XV fez uma revolução, acabou com aquele espectáculo e faz os jantarinhos, com os convidados, já era outra onda. E isto que se passa cá é uma onda.

A França e a Espanha são países muito grandes. Aqui conhecemo-nos todos uns aos outros, de maneira que é muito difícil. Eu saí muitas vezes frustrada de refeições para que fui convidada. Prova-se a nova carta e depois diz-se muito bem. Se se põe um espetozinho qualquer, não é bem aceite. Estamos ali para dizer bem, e isso é pena.

Falta mais crítica?
A crítica bem feita e bem fundamentada é muito importante. Lembro-me de um almoço em que o [chefe italiano que esteve no Lapa Palace] Franco Luise, apresentou um prato, como eles dizem “empratado” — detesto a palavra “empratamento” — em altura. Deve ter sido na sobremesa, ele estava a conversar com os convidados, e eu disse: “E agora como é que vou comer isto?”, tinha de derrubar o castelo. Aquilo saiu-me sem querer, e o Franco Luise disse-me que mudou completamente o empratamento por me ter ouvido dizer aquilo. Ficou contente porque o ajudei a fazer melhor.

Se estivermos a avaliar um prato tradicional ou clássico, é fácil saber se se desviou ou não do que deveria ser. Se estamos a falar de inovação, o que devemos avaliar?
É importante haver inovação, mas ter de haver inovação não é novo. Para se chegar onde se chegou, houve muitos saltos. Dou-lhe um exemplo: tenho um livro do [chefe francês, Paul] Bocuse em que ele se considera o pai da nouvelle cuisine e tive guardada muito tempo uma entrevista que ele deu uns tempos depois em que dizia “nouvelle cuisine, connais pas”, porque não gostava daquilo que se estava a fazer em nome da nouvelle cuisine, aquela coisa dos três feijões verdes e duas ripas de cenoura, e quis-se desligar completamente. Há quem faça coisas modernas muito bem feitas, mas são pessoas com muito boa preparação.

Mas não pode haver só a cozinha tradicional.
Nem pouco mais ou menos, até porque a tradicional também é preciso saber fazer bem. Eu conheço muito bem o sabor da açorda alentejana, não dá para enganar, há muitas açordas, mas há uma matriz de sabor. No livro Un festin en paroles, o [Jean-François] Revel diz que a cozinha regional “ne voyage pas”. Vejo na televisão alguma macacada feita com boas intenções, os pratos tradicionais que depois levam uma coisa que lhes tira toda a identidade.

Porque há essa pressão de criar, de ter uma marca de autor no prato.
Ninguém quer perder o comboio, e então vale tudo. O mal é também o querer fazer típico. Eu também cometi erros com o tipicismo, com o uso dos barros por exemplo. Quando fiz os livros das festas [Festas e Comeres do Povo Português, em dois volumes], fiz uma fotografia de alheiras numa travessa de barro preto e uma amiga que conhecia bem estas coisas disse que estava errado. Não há razão nenhuma para as pôr no barro. Porque não pô-las numa travessa de louça, que é o que nós usamos? O típico também é extraordinariamente perigoso. Vi num programa de televisão uma açorda à alentejana servida num daqueles alguidares do Minho que são muito específicos para o arroz, e fez-me imensa impressão.

Mas só a partir de certa altura da sua carreira televisiva é que começa a relação com a cozinha tradicional portuguesa.
Começa por pressão dos espectadores, que estavam fartos de me ver fazer cozinha francesa, e exigiram cozinha portuguesa. E quando eu fazia qualquer coisa que conhecia muito bem, coisas que a minha mãe fazia, vinham depois não sei quantas pessoas — eram muitas, na altura eu tinha muita correspondência porque era única e passava a seguir ao telejornal — e cada um dizia que a sua receita é que era, que a prima, avó, mãe, faziam um ensopado diferente, porque há realmente várias maneiras de fazer uma coisa que tem o mesmo nome.

Daí a necessidade de compilar as receitas de todo o país.
Lembro-me também de que o [chefe] Michel se queixava muito que não fazia cozinha portuguesa porque não havia livros de receitas. Quando eu vi aquelas receitas todas de ensopados de borrego, que todos eram verdadeiros, pensei: “Como é que vou resolver este problema?” E, como a televisão me tirava o sono, pensei que podíamos fazer um concurso para as pessoas me mandarem as receitas. Propus à televisão fazer esse concurso, que estava ligado ao SNI [Secretariado Nacional de Informação], que era quem tratava a arte popular, e arranjou-se um júri e cada mês uma província mandava as receitas. O Daniel Constant, que na altura era um crítico muito respeitado, do Norte, disse-me que eu não iria conseguir as receitas de família porque as pessoas não as davam. E tenho uma carta dele depois de ter visto o livro da Cozinha Tradicional a dizer que aquilo era a cozinha portuguesa.

Recebeu imensas receitas de todo o lado.
O trabalho que tenho estado a fazer com a ajuda da Associação dos Cozinheiros e de uma amiga bióloga é a digitalização dessas receitas porque isso ia-se perder tudo. São papéis muito frágeis, as pessoas metiam na máquina de escrever seis ou sete folhas fininhas com cópias a papel químico. Mas estamos a conseguir salvá-las. Na semana passada, acabei os Açores.

Estamos a falar de quantas receitas?
Ainda não fiz as contas. Toucinhos-do-céu, não sei quantos apareceram lá em cima no Minho, e ainda por cima fazem-se em todo o país. Mas lembro-me que os bolinhos do Alentejo eram uns 290 e tal. É uma quantidade muito grande. Vai ser oferecido à associação de cozinheiros como material de consulta. Dá muito trabalho, tive de meter também a mão na redacção porque as pessoas dão os pesos antigos, usam termos como “pôr o polvo a destilar”, que é como se diz nos Açores quando se põe em cima da panela e ele larga a água. Trás-os-Montes e o Alentejo têm duas pastas grossas. Depois do concurso, tomei o compromisso de fazer um livro, mas comecei a ter medo. Havia várias maneiras de fazer o arroz de forno, mas qual escolher?

Sentia que era uma responsabilidade muito grande.
Sim, e como levei muitos anos a decidir-me, a responsabilidade ia aumentando. À medida que tinha mais conhecimentos, mais ia tendo consciência da responsabilidade que aquilo era. Depois, meti-me a fazer aquele projecto [o livro Cozinha Tradicional Portuguesa], que era muito complicado, implicava ir à província fazer isto e aquilo. Decidi-me a fazê-lo porque comecei a ficar cada vez mais surda, um médico disse que eu tinha um tumor e pensei: “Vou morrer e não fiz o livro, é uma vergonha.” Atirei-me e comecei, foi muito telefonema, muita correspondência, muitos contactos. Via a importância de um prato pela quantidade de citações que tinha e depois tinha várias informantes em cada província.


Quando o livro foi publicado, com muito boas críticas — muito devo ao José Quitério [crítico do jornal Expresso], que foi a pessoa que explicou o que era o livro — e isso foi muito bom para me sossegar um pouco, porque eu estava numa efervescência, cheia de medo. Quando alguém chegava ao pé de mim e dizia “tenho o seu livro, sou da Beira Baixa”, pensava “lá vem esta dizer-me que não é assim”; mas muitas diziam “é exactamente assim”, e eu relaxava.

A relação das pessoas com a comida era muito diferente do que é hoje?
Nunca se falou tanto em comida, nunca se falou tanto em cozinha portuguesa como hoje. Mas faltam estudos para informar as pessoas de qual deve ser a postura perante a cozinha portuguesa. E também é bom não ter uma atitude muito rígida. O Duarte Calvão [director do festival Peixe em Lisboa], de quem sou muito amiga e com quem fiz crítica — o Guardanapus [trabalho de um crítico anónimo no Diário de Notícias] éramos nós os dois — disse-me uma vez em que eu devia estar a ser um bocadinho intransigente: “Embirro com as pessoas que vão para a mesa como quem vai para Aljubarrota.” Nunca mais me esqueci, tem muita graça. Não sou de modo nenhum intransigente, mas não admito que em cima do bacalhau à Gomes de Sá se ponham pickles ou coisas parecidas.

E o que acha dos programas de comida que existem hoje na televisão?
A televisão está cheia de comida. Algumas coisas são prejudiciais porque usam pessoas que não são profissionais e fazem coisas mal feitas. O meu marido lidava muito com americanos do mundo do cinema. Eles sabiam que eu fazia televisão e lembro-me de um dizer que hoje, e isto passou-se há uns 20 anos, era mais importante o modo como se faz do que aquilo que se faz. É exactamente o que se passa. Há um ou outro que se preocupa em fazer bem feito, mas o mais importante é a maneira como o apresentador funciona, o Jamie [Oliver] faz sempre o rapazinho novo, por exemplo. O que interessa é o espectáculo.

A sua relação com a televisão teve momentos altos e momentos baixos, a certa altura desgostou-se.
No meu tempo, éramos muito criticados. Lembro-me do director-geral da televisão me perguntar se eu sabia quanto custava cada minuto que estava no ar, para me mostrarem a responsabilidade que era. Custava 60 contos. Desgostei-me da televisão quando começaram os enlatados em que se faziam três programas de seguida. Não é fácil fazer agora um programa muito bem feito sobre peixe e logo a seguir ir fazer um muito bem feito sobre carne. Com o enlatado, deixava de haver uma relação com o público e, como os realizadores não se interessavam, a dada altura disse: “Eu não cozinho mais na televisão.” Tive várias pressões para voltar, mas era mais do mesmo. Houve ainda uma série de programas de cozinhas do mundo que apresentei, fui à China numa altura em que ainda era difícil entrar, a embaixatriz japonesa deu-me lições. Mas depois ninguém dizia se estava bem feito ou mal feito, se devia fazer assim ou de outra maneira. Não gosto de trabalhar assim.

O que é que faria sentido fazer-se hoje em televisão em torno da cozinha?
Lembro-me de um programa do [presidente da Academia Internacional de Gastronomia, José] Bento dos Santos sobre o bife e de não ter resistido a mandar-lhe uma mensagem porque ele explicou tudo muito bem explicado. Penso que se conhecem mal os alimentos, as cenouras são vendidas sem a rama, ninguém explica porque é que a cenoura deve ter a rama e porque é que a certa altura se deve cortar a rama. Porque é que não se podem pôr cenouras no frigorífico sem estarem devidamente embrulhadas? Porque estão a espalhar etileno e isso acelera o desenvolvimento. É esta ciência que devia estar na mão de mais pessoas. É difícil estar a impor sabedoria. É chato. Mas assim não aprendemos uns com os outros. Só aprendemos uns com os outros se transmitirmos o que sabemos.

Que conselho dá a quem faz hoje cozinha em Portugal?
Não quero que pensem que para mim só existe a cozinha portuguesa. O que acontece é que chamei a mim o cuidado de a proteger. Não vou dizer que é a melhor do mundo, porque não é. Mas eu não tenho a obrigação de defender a cozinha espanhola, tenho a obrigação de defender a portuguesa. Ultimamente, os nossos chefes têm viajado muito, mas para mostrar a cozinha deles, a que eles fazem. E a cozinha portuguesa é uma cozinha de mulheres. Fomos nós, mulheres, que fizemos a cozinha portuguesa.