O voo MH17 vai mudar a aviação, mas ainda ninguém sabe bem como
Regulador queixa-se de falta de informação por parte dos governos sobre zonas de guerra. Profissionais queixam-se de falta de regras uniformes. O sistema que determina tudo revelou ter falhas, e parece ser difícil colmatá-las.
Pouco antes de ocupar o seu lugar no Boeing 777, o holandês Cornelis Schilder, que geria uma loja de flores em Volendam com a namorada, Neeltje Tol, fazia uma piada sobre um outro avião da mesma companhia aérea que desapareceu em Abril sem deixar rasto, talvez para afastar o nervosismo da viagem de 12 horas que tinha pela frente em direcção a Kuala Lumpur: “Se este desaparecer, já sabem como é que ele é.”
Por essa altura, a rota do voo que ia levar Cornelis Schilder, a sua namorada e mais 296 pessoas até à Malásia já estava traçada, mas imaginar que alguma delas estava mais nervosa por ter de sobrevoar o território da Ucrânia do que por estar simplesmente a subir a bordo de um avião é não perceber que a queda do voo MH17 pode marcar mais um momento de viragem na aviação comercial.
Antes, milhares de aviões carregados de passageiros com férias marcadas em destinos paradisíacos cruzavam zonas de guerra — ou zonas de conflito, consoante a cuidada linguagem dos vários governos e organizações internacionais — sem que muitos imaginassem sequer que as suas vidas podiam ser destruídas por um míssil vindo lá de baixo; depois, a estupefacção e o receio apoderaram-se do público e a confusão instalou-se no sector da aviação comercial.
O que antes era uma rotina assente na confiança que as companhias aéreas depositam nas informações que recebem sobre o que se passa lá em baixo, é agora uma incógnita para muitas delas, como a Emirates, a Virgin Atlantic, a KLM e a Air France, que na semana passada decidiram evitar o Iraque apesar da garantia das autoridades de Bagdad de que o seu espaço aéreo é tão seguro como qualquer outro.
Em sentido contrário, a australiana Qantas (parceira da Emirates desde 2013) e a Etihad Airlines, entre outras, mantiveram a decisão de passar pelo Iraque.
Em comunicado, a companhia australiana defendeu a sua decisão com o facto de não estarem em vigor avisos que ponham em perigo os seus aviões, pelo menos à altitude a que eles sobrevoam o espaço aéreo iraquiano — entre os 11.500 e os 12.500 metros.
“Não há nenhum indício de que sobrevoar o Iraque é inseguro para a aviação comercial, em particular devido à altitude de cruzeiro que a maioria [das companhias] mantêm, incluindo a Qantas”, lê-se no comunicado da empresa.
Como explicar, então, que duas das maiores companhias aéreas do mundo, unidas por uma parceria, tomem decisões opostas sobre uma questão de segurança que passou a ocupar grande parte da atenção dos passageiros?
Confiança é a palavra-chave
Em primeiro lugar, as companhias são as principais responsáveis pelos planos de voo dos seus aviões — se as autoridades de um determinado país consideram que o seu espaço aéreo é seguro, e se as autoridades dos países de origem das companhias não têm em vigor proibições, são as próprias empresas que decidem por onde devem passar, após uma análise de riscos que inclui variáveis como a segurança, o preço do combustível ou as condições meteorológicas.
A confiança é a palavra-chave. Uma teia de informações que vai sendo construída por agência de serviços secretos e governos fez chegar à Malaysia Airlines a informação de que sobrevoar o Leste da Ucrânia acima dos 32.000 pés (9753 metros) era seguro, e os responsáveis pelo plano de voo fizeram os seus cálculos com base nessa informação — se é seguro, como justificar uma viagem mais longa, com mais gastos para a empresa? O problema é que as contingências de voo podem forçar os pilotos a descer até aos 10.000 pés (cerca de três quilómetros), em caso de despressurização da cabina, pelo que o avião ficaria ao alcance de armamento menos sofisticado do que aquele que o terá abatido.
Ouvido pelo PÚBLICO, o comandante Miguel Silveira, presidente da Associação Portuguesa de Pilotos de Linhas Aéreas, deixou claro o que acontecerá se um dia essa confiança for perdida: “Esta associação, tão depressa se convença de que nada disto é sério, irá imediatamente emanar uma recomendação no sentido de parar a aviação.” Mas, sublinha, a realidade “ainda está muito longe disso”. “A nível de Portugal, não conheço nenhuma empresa com que as pessoas se devam preocupar”, garantiu.
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Pouco antes de ocupar o seu lugar no Boeing 777, o holandês Cornelis Schilder, que geria uma loja de flores em Volendam com a namorada, Neeltje Tol, fazia uma piada sobre um outro avião da mesma companhia aérea que desapareceu em Abril sem deixar rasto, talvez para afastar o nervosismo da viagem de 12 horas que tinha pela frente em direcção a Kuala Lumpur: “Se este desaparecer, já sabem como é que ele é.”
Por essa altura, a rota do voo que ia levar Cornelis Schilder, a sua namorada e mais 296 pessoas até à Malásia já estava traçada, mas imaginar que alguma delas estava mais nervosa por ter de sobrevoar o território da Ucrânia do que por estar simplesmente a subir a bordo de um avião é não perceber que a queda do voo MH17 pode marcar mais um momento de viragem na aviação comercial.
Antes, milhares de aviões carregados de passageiros com férias marcadas em destinos paradisíacos cruzavam zonas de guerra — ou zonas de conflito, consoante a cuidada linguagem dos vários governos e organizações internacionais — sem que muitos imaginassem sequer que as suas vidas podiam ser destruídas por um míssil vindo lá de baixo; depois, a estupefacção e o receio apoderaram-se do público e a confusão instalou-se no sector da aviação comercial.
O que antes era uma rotina assente na confiança que as companhias aéreas depositam nas informações que recebem sobre o que se passa lá em baixo, é agora uma incógnita para muitas delas, como a Emirates, a Virgin Atlantic, a KLM e a Air France, que na semana passada decidiram evitar o Iraque apesar da garantia das autoridades de Bagdad de que o seu espaço aéreo é tão seguro como qualquer outro.
Em sentido contrário, a australiana Qantas (parceira da Emirates desde 2013) e a Etihad Airlines, entre outras, mantiveram a decisão de passar pelo Iraque.
Em comunicado, a companhia australiana defendeu a sua decisão com o facto de não estarem em vigor avisos que ponham em perigo os seus aviões, pelo menos à altitude a que eles sobrevoam o espaço aéreo iraquiano — entre os 11.500 e os 12.500 metros.
“Não há nenhum indício de que sobrevoar o Iraque é inseguro para a aviação comercial, em particular devido à altitude de cruzeiro que a maioria [das companhias] mantêm, incluindo a Qantas”, lê-se no comunicado da empresa.
Como explicar, então, que duas das maiores companhias aéreas do mundo, unidas por uma parceria, tomem decisões opostas sobre uma questão de segurança que passou a ocupar grande parte da atenção dos passageiros?
Confiança é a palavra-chave
Em primeiro lugar, as companhias são as principais responsáveis pelos planos de voo dos seus aviões — se as autoridades de um determinado país consideram que o seu espaço aéreo é seguro, e se as autoridades dos países de origem das companhias não têm em vigor proibições, são as próprias empresas que decidem por onde devem passar, após uma análise de riscos que inclui variáveis como a segurança, o preço do combustível ou as condições meteorológicas.
A confiança é a palavra-chave. Uma teia de informações que vai sendo construída por agência de serviços secretos e governos fez chegar à Malaysia Airlines a informação de que sobrevoar o Leste da Ucrânia acima dos 32.000 pés (9753 metros) era seguro, e os responsáveis pelo plano de voo fizeram os seus cálculos com base nessa informação — se é seguro, como justificar uma viagem mais longa, com mais gastos para a empresa? O problema é que as contingências de voo podem forçar os pilotos a descer até aos 10.000 pés (cerca de três quilómetros), em caso de despressurização da cabina, pelo que o avião ficaria ao alcance de armamento menos sofisticado do que aquele que o terá abatido.
Ouvido pelo PÚBLICO, o comandante Miguel Silveira, presidente da Associação Portuguesa de Pilotos de Linhas Aéreas, deixou claro o que acontecerá se um dia essa confiança for perdida: “Esta associação, tão depressa se convença de que nada disto é sério, irá imediatamente emanar uma recomendação no sentido de parar a aviação.” Mas, sublinha, a realidade “ainda está muito longe disso”. “A nível de Portugal, não conheço nenhuma empresa com que as pessoas se devam preocupar”, garantiu.
É sempre mais fácil escolher o caminho da dramatização ou da desvalorização, mas o caminho da verdade costuma ser mais complexo — apesar de milhares de pessoas terem sobrevoado aquela zona da Ucrânia nas semanas anteriores ao desastre do voo MH17, as imagens de centenas de corpos espalhados pelos campos de Grabovo, na província de Donetsk, provam que as informações que chegaram à Malaysia Airlines — através do mesmo sistema em que todas as companhias confiam — não eram fiáveis.
Foram muitas as ideias avançadas para evitar que um desastre semelhante volte a acontecer, mas nenhuma poderá ser imune a uma nova realidade, como alerta John Goglia, antigo responsável da autoridade norte-americana de segurança nos transportes, em declarações à estação australiana ABC.
“Até agora, estes mísseis que conseguem chegar aos dez quilómetros de altitude não estavam nas mãos de organizações terroristas, e os Estados que os têm exerciam sobre eles um controlo apertado.”
Esta frase de John Goglia, mesmo descontando o seu conteúdo político, ao apontar para a culpabilização extemporânea dos combatentes separatistas no Leste da Ucrânia e para a cumplicidade do Governo russo no abate do voo MH17, parece ser a chave da questão — se o Governo da Ucrânia (primeira responsável pelo seu espaço aéreo, de acordo com a lei internacional) não fechou o seu espaço aéreo no Leste do país porque as informações não apontavam para a presença de mísseis sofisticados no terreno, que razões terá a Qantas para acreditar que as autoridades iraquianas têm a certeza de que os jihadistas do Exército Islâmico do Iraque e do Levante não têm o mesmo tipo de equipamento?
É aqui que entram as organizações que regulamentam o sector e que defendem os interesses de cada um dos seus protagonistas.
Sector responsabiliza governos
Reunidos no Canadá na terça-feira da semana passada, o organismo da ONU responsável pela regulamentação do espaço aéreo (ICAO) e os representantes das maiores companhias aéreas internacionais (IATA), dos aeroportos (ACI) e dos controladores de tráfego aéreo (Canso) decidiram criar um grupo de trabalho, cujo objectivo principal é avaliar “de que forma a informação pode ser recolhida e transmitida de forma eficaz”.
Sublinhando que são os Estados que têm “responsabilidades na resposta a potenciais riscos no seu espaço aéreo civil”, os responsáveis admitiram que esta discussão toca “uma área muito complexa e politicamente sensível da coordenação internacional, que envolve não apenas as regulações e procedimentos da aviação civil, mas também a actividade da segurança nacional e dos serviços de recolha de informação dos Estados”.
O director executivo da IATA, Tony Tyler, admitiu que o abate do voo MH17 da Malaysia Airlines “expôs uma lacuna no sistema”, mas garante que esse sistema “não está falido”.
“Funciona muito bem na maioria dos casos. E a prova disso está bem patente no facto de que o transporte aéreo é o mais seguro dos meios de transporte de massas conhecido pelo Homem. Por isso, o desafio é colmatar essa lacuna, ou essas lacunas, que fizeram com que esta tragédia tivesse acontecido”, disse o responsável na conferência de imprensa em que estiveram presentes os líderes das organizações.
Quanto ao facto de algumas companhias aéreas estarem a tomar decisões distintas em relação aos mesmos espaços aéreos, o líder da IATA vê nisso uma prova de que falta “informação oficial, precisa, consistente e inequívoca para a tomada de decisões eficazes num assunto de tão grande importância”. Os principais culpados, defende, são os governos, “que devem fazer um melhor trabalho”.
Mas o objectivo de melhorar a recolha e a transmissão de informação pelos governos dos vários países é uma tarefa muito mais fácil de enunciar do que de concretizar, como os próprios responsáveis admitem.
Questionado sobre se a aposta numa melhoria da partilha de informações entre as agências de serviços secretos dos vários países não é um objectivo irrealista, o presidente do ICAO, Olumuyiwa Benard Aliu, foi directo: “Concordo consigo. É uma parte dos desafios que o sector da aviação civil enfrenta. É necessário haver uma coordenação civil e militar para se fazer alguma coisa. No quadro das nossas funções, essa coordenação é um requisito. Agora, se essa coordenação tem decorrido de forma eficaz, e de que forma podemos fazer um melhor trabalho nesse aspecto, são algumas das questões que o grupo de trabalho vai estudar.”
As conclusões deste grupo de trabalho deverão ser apresentadas na próxima Conferência sobre Segurança, onde estarão presentes os 191 países-membros do ICAO, marcada para Fevereiro de 2015.