Quando tudo o resto falha, Marc Ribot tem o rock
Frequentador assíduo de Tom Waits e John Zorn, Marc Ribot traz depois de amanhã à Gulbenkian a música urgente do seu trio de rock pejado de comentários políticos. Mas, explica em entrevista exclusiva ao Ípsilon, com os Ceramic Dog o rock não é bem aquele que se espera – apesar da guitarra eléctrica, que de resto domina esta 31.ª edição do Jazz em Agosto.
Não é garantido – é, aliás, altamente improvável – que mais alguém consiga ouvir o músico cubano e justapor as evocações de Hendrix, o maníaco dos feedbacks assimilados pela música, e Ellington, um dos nomes fulcrais na construção de uma sonoridade impregnada de América. Tal como estes dois, também Rodríguez, descendente de escravos congoleses, foi descobridor de uma nova sonoridade. No seu caso, o són – uma riqueza musical cujos alicerces servem como ponte transatlântica de ligação entre ritmos africanos e cubanos.
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Não é garantido – é, aliás, altamente improvável – que mais alguém consiga ouvir o músico cubano e justapor as evocações de Hendrix, o maníaco dos feedbacks assimilados pela música, e Ellington, um dos nomes fulcrais na construção de uma sonoridade impregnada de América. Tal como estes dois, também Rodríguez, descendente de escravos congoleses, foi descobridor de uma nova sonoridade. No seu caso, o són – uma riqueza musical cujos alicerces servem como ponte transatlântica de ligação entre ritmos africanos e cubanos.
Deslumbrado com a revelação de Rodríguez e sedento de poder deixar-se contaminar e chafurdar na sua música, Ribot formaria uma banda para interpretar esse reportório. Era um expediente não apenas justificado pelo puro interesse musical, mas também pela vontade de não se deixar encurralar na linguagem mais extrema que começava a desenvolver com John Zorn e o extenso séquito de colaboradores deste, dispostos em torno da Tzadik. Num certo sentido, Rodríguez mantinha Ribot em contacto com a música popular, em que mergulhara já com a gravação de Marc Ribot Plays Solo Guitar Works of Frantz Casséus, álbum de 1993 dedicado a temas inspirados pela tradição haitiana e arranjados por Casséus (na esperança de conseguir assinar um resultado semelhante ao do brasileiro Heitor Villa-Lobos). Para além, naturalmente, das gravações com Tom Waits que lhe permitiam continuar a sentir-se um guitarrista de blues na descendência dos seus primeiros heróis – Keith Richards e BB King –, e das escalas brasileiras (Caetano Veloso e Marisa Monte) proporcionadas pelas produções de Arto Lindsay.
Com a noção clara de que nas suas mãos a música de Rodríguez jamais poderia ser a música de Rodríguez, Ribot montou uma então banda que baptizou como Los Cubanos Postizos. E a ideia é precisamente essa que lhe assenta que nem uma luva: a circulação de estilos que o guitarrista reclama para a sua música é totalmente despreocupada de estados de pureza e, em certa medida, a linguagem de Ribot consiste numa recusa sistemática em especializar-se numa linguagem. É como uma prática recolectora obsessiva em que tudo pode ser aproveitado e nada é visto como desperdício, resultando na mais bela das conclusões: Ribot é incapaz de reproduzir uma abordagem musical que não seja a sua, conspurcando magnificamente qualquer palco ou disco em que surja, levando uma imensidão de “tralha” musical consigo. Que o diga precisamente Waits. Ribot fala de blues, mas os blues que lhe ouvimos trazem frequentemente México e Cuba consigo. Porque música cubana, blues ou rock são uma coisa, mas quando tocados por Ribot são falsificações pouco perfeitas que só vagamente lembram o original.
Daí que, ao telefone no interior de um táxi a caminho do aeroporto de Nova Iorque, Marc Ribot explique ao Ípsilon que a razão de existir para o trio Ceramic Dog – com o qual actua já depois de amanhã no Jazz em Agosto, em Lisboa – se prende, antes de mais, com uma simples constatação: “Apercebi-me de que muitos projectos que estava a fazer e tinha feito eram as chamadas bandas downtown. Mas eram bandas rock disfarçadas de bandas downtown. Os Cubanos Postizos, por exemplo, eram uma espécie de banda punk disfarçada de banda cubana e poderia dizer o mesmo acerca de muitos outros projectos.”Foi esgravatando nesta conclusão até desenterrar uma pergunta que jazia lá em baixo como uma espécie de luminosa solução – “Porque não fazer uma banda de rock a sério?” Ribot ri-se. Nós também. Possivelmente por razões diferentes. Pelo menos deste lado, ao seu “a sério” há que dar um generoso desconto.
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E se tudo isto falha?
“Quando se conhece a banda apenas dos discos, tem-se uma ideia muito incompleta daquilo que fazemos”, responde Marc Ribot quando confrontado com a crença de que, embora mais declaradamente rock, o disfarce a que se refere não terá caído por completo. É verdade que aquilo que a Internet permite espreitar em matéria de vídeos confirma a tendência para uns Ceramic Dog menos sinuosos e mais contundentes em concerto, mas a natureza de Ribot mantém-se, ainda assim, esquiva o suficiente para que não deixe uma migalha de vulgaridade no seu rasto. Convém lembrar que a secção rítmica, formada por Shahzad Ismaily e Ches Smith, é proveniente dos Secret Chiefs 3, banda parente dos Mr. Bungle e que no espectro do rock está colada no extremo onde se lê “bizarria”.
Recuemos um pouco para perceber como Ribot chegou até aqui. No último trimestre de 2001, quando Nova Iorque se levantava ainda combalida do desmedido pesadelo do atentado nas Torres Gémeas, dedicou boa parte da sua actividade musical a tocar em concertos de beneficência com os mais variados destinatários: bombeiros da cidade, Cruz Vermelha, clubes de música em Manhattan. “Nessa altura”, recorda, “fizemos uma série de concertos no Tonic e em outros clubes para que não encerrassem. As ruas estavam cortadas aos carros e todos esses espaços que existiam muito à margem corriam o risco de fechar porque semanas seguidas sem entrada de dinheiro e tendo de pagar renda podiam obrigar a tanto. Quisemos mantê-los abertos e reforçar o sentido de comunidade. Lembro-me de que a música que eu e outros tocámos nesses concertos era feita de uma grande urgência, rodeada sempre da pergunta – e se tudo isto falha?”
Ribot tentou assim encontrar uma música que não falhasse numa situação extrema. E começou a forjar aquilo que viriam a ser os Ceramic Dog. Na sua cabeça tinha ficado a baloiçar igualmente a citação de Stockhausen – que o mesmo acusou de ter sido profundamente descontextualizada e truncada – em que chamava ao 11 de Setembro “a maior obra de arte de sempre”, perguntando, alegadamente, como poderia competir com uma obra que implicava a morte de autor e público. “Foi uma coisa terrível para dizer naquele momento”, admite o guitarrista, “mas colocava realmente uma questão e penso que é um problema a que os músicos devem ter a aspiração de responder.” Como é evidente, também Marc Ribot não está a enaltecer um acontecimento tremendamente trágico que deixou marcas profundas no seu dia-a-dia durante anos, mas antes a defender a ambição de uma transformação de igual magnitude através da música. Os Ceramic Dog são essa atitude. Mas apesar de ter identificado a atitude, o músico demorou a encontrar os parceiros certos. Em rigor, foi o baixista Shahzad Ismaily a encontrá-lo. No final de um concerto, em vez do habitual cumprimento de admiração, Ismaily procurou Ribot para lhe atirar sem preliminares: “Devias ter outra banda.” O guitarrista achou graça ao atrevimento e perguntou-lhe quem ele sugeria. “Eu. Eu e o Ches Smith”, respondeu Ismaily. “Depois juntámo-nos para tocar e percebi que ele tinha razão. Sou uma pessoa muito fácil de levar”, conclui Ribot.
Este feitio de contemporizador, defende Marc Ribot, é também responsável por deixar que a sua guitarra eléctrica se fascine com a linguagem do rock. “Num certo sentido”, diz, “penso que se a guitarra eléctrica fizer o que faz mais naturalmente e melhor está a tocar rock. E eu quero concordar com a guitarra”, ri-se. De qualquer forma, aquilo que o músico assina só em parte se pode considerar como obra de um guitarrista. “Quando me oiço a tocar acho que soa mais a saxofone do que a guitarra, até porque não oiço maioritariamente guitarristas, mas sim saxofonistas.”
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Colapso total
Por estes dias, Ribot mostra-se seriamente empenhado no combate aos serviços de streaming providenciados por empresas como o Spotify ou o YouTube/Google. “É muito difícil sentarmo-nos a falar da estética implicada na música e divorciarmo-nos de estar preocupados com termos dinheiro suficiente para pagar um estúdio para o disco seguinte. Muitos de nós receiam que nos próximos anos haja um colapso total.” Ribot aponta o dedo a uma manipulação da posição dos músicos que leva o público a imaginá-los felizes com o advento do streaming. Mas, como não é segredo, os proveitos são quase nulos para a grande maioria. Mas não vamos ficar parados enquanto estas pessoas, para seu próprio proveito, destroem a nossa forma de sustento, a nossa indústria e as nossas formas artísticas.”
A linguagem “rock” dos Ceramic Dog serve também de cenário perfeito para Marc Ribot convocar esta veia latejante de músico de protesto. Em Masters of the Internet canta “download this music for free/ we like it when you do/ we don’t have homes or families to feed/ our labor has no value!”. Tal ideia de desvalorização do trabalho alheio alastra também para Bread and roses, lançado originalmente para assinalar o primeiro aniversário do movimento Occupy Wall Street. Do álbum Your Turn faz ainda parte o tema Ain’t let them gonna turn me around, canção de apoio ao Obamacare (a lei destinada a promover a universalidade no acesso dos cidadãos norte-americanos a cuidados médicos). “Senti que o Obama precisava de alguma ajuda e escrevi essa canção. A ironia é que finalmente entrei no Obamacare, que é muito difícil, depois esqueci-me de pagar a conta e fui expulso. Foi terrível. Depois de tudo o que fiz pelo Obama, como pôde ele fazer-me isto?”
Ribot ri-se uma vez mais. E com a ajuda do taxista vislumbra a companhia aérea na sinalização do terminal. Era assim que estava combinado – a entrevista durava enquanto o táxi andasse.