A guerra inevitável nas colónias portuguesas

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No o mês de Julho, o rio Rovuma que faz a fronteira com a actual Tanzânia torna-se um pequeno regato fácil de cruzar

Quando a seca se acentua no Norte de Moçambique, lá para o mês de Julho, o rio Rovuma que faz a fronteira com a actual Tanzânia torna-se um pequeno regato fácil de cruzar e foi esse detalhe da natureza que ditou a tragédia que se abateu sobre Maziúa naquela noite de 24 de Agosto de 1914.

Maziúa era um pequeno posto administrativo esquecido nos confins da selva do Niassa, e assim permaneceria, distante e ignorado, se numa decisão inesperada os alemães não o tivessem arrasado sem aviso prévio. Formalmente, Portugal e Alemanha não estavam em guerra (o que viria a acontecer em Março de 1916); que se saiba, não houve nenhum acto de provação da pequena guarnição do posto, comandada por um sargento enfermeiro; seguramente, a existência de meia dúzia de homens perdidos no mato, mal alimentados e desligados de qualquer estrutura operacional, estava longe de ser uma ameaça fosse para quem fosse.

Ainda assim, nessa noite, um destacamento militar baseado na colónia alemã da África Oriental atravessou o rio a vau e, num ataque surpresa, massacrou a pequena guarnição de um sargento e meia dúzia de polícias indígenas e incendiou as precárias instalações de Maziúa – há relatos que apontam apenas para a morte do sargento. Documentos revelados no pós-guerra dão conta de que a operação foi pensada e autorizada pelo governador alemão da África Oriental Alemã, Heinrich Schnee.

Quando a notícia chegou a Lisboa, o país indignou-se. Ouviram-se os protestos do costume, o Governo pediu explicações, os ardores nacionalistas da ideologia republicana exercitaram-se. Semanas depois, o país acalmou com pedidos de desculpa e esqueceu o incidente no meio de um quotidiano feito de permanente crise política, de instabilidade social e de radicalismo ideológico. Mas o aviso ficaria para sempre. Maziúa tornar-se-ia a prova real de que a Alemanha estava atenta, que não perderia a oportunidade para cumprir o velho desejo de se apropriar dos territórios coloniais portugueses que faziam fronteira com as suas possessões – o Norte de Moçambique e o Sul de Angola.

A equação colonial não foi o factor exclusivo que levaria Portugal a entrar na Grande Guerra de 1914-18. Mas foi o factor crucial. A legitimidade da jovem República já tinha sido reconhecida pelas potências europeias mais recalcitrantes, onde se incluía a Inglaterra, em 11 de Setembro de 1911. Mas o radicalismo do seu programa, a sua intolerância religiosa, a precariedade do regime, acentuada pelas incursões militares dos monárquicos de Outubro de 1911 e Julho de 1912 (houve sete governos entre o 5 de Outubro de 1910 e Agosto de 1914) ou as severas condições impostas aos presos políticos tornavam por esse tempo Portugal num estado pária no concerto europeu. Para agravar o cenário, de Madrid chegavam notícias que o rei Afonso XIII de Espanha fazia diligências em Paris e Londres para obter o seu consentimento numa intervenção militar em Portugal destinada a “pôr fim à anarquia”. Mas se estes factores mobilizavam o desejo pela guerra entre as hostes republicanas reunidas no Partido Democrático de Afonso Costa, a questão colonial estaria sempre na primeira linha das preocupações nacionais.

O assalto a Maziúa, que aconteceu apenas três semanas depois de a guerra ter sido declarada na Europa, era a prova de que a perda das colónias era uma possibilidade real, fosse pela simples ocupação dos alemães ou ingleses, fosse pela redacção de um posterior tratado de paz na qual os territórios ultramarinos portugueses fossem usados como compensação para as potências vencedoras. Não admira, por isso, que “a defesa do território colonial e a entrada em guerra no teatro africano” fossem “os únicos pontos no consenso nacional, tanto a nível das forças politicas como da opinião pública”, escreve Nuno Severiano Teixeira no seu fundamental ensaio sobre as causas da entrada de Portugal na Guerra.

Depois das grandes viagens de exploração no coração do continente africano da década de 1880, a vulnerabilidade das pretensões portuguesas ficara cruelmente exposta quando o velho aliado inglês entrega um ultimato ao Governo na monarquia, em 11 de Janeiro de 1890, exigindo o abandono dos territórios situados entre Angola e Moçambique que tinham sido traçados a cor-de-rosa no mapa das ambições coloniais de Lisboa. O ultraje, rapidamente capitalizado pelo republicanismo, serviu de lastro para a criação de uma nova consciência nacional. “Desde o projecto do Mapa Cor-de-Rosa e, fundamentalmente, do ultimato inglês de 1890 que o imaginário político português se revelava fortemente investido pelo sonho de um império colonial”, escreve Nuno Severiano Teixeira. Como escrevia Oliveira Martins ainda na ressaca do Ultimato: “Só como país marítimo e colonial Portugal pôde afirmar a sua autonomia: só assim poderá conservá-la”.

A defesa das colónias tornou-se um imperativo, por muito que aqui e ali houvesse quem fizesse contas, registasse os prejuízos crónicos do Estado nos negócios de Angola e Moçambique e recomendasse a sua venda pura e simples. Apesar da pequenez demográfica e da penúria financeira exacerbada pela bancarrota de 1892, Portugal não deixou de prosseguir com as suas viagens de exploração nas zonas mais remotas de Angola e Moçambique nem deixou de se aplicar em sucessivas campanhas de pacificação das revoltas indígenas. Desses dois movimentos simultâneos e complementares nasceu uma nova gesta de heróis que se desdobraram em estátuas ou na toponímia das cidades. Serpa Pinto, Pereira de Andrada, Victor Córdon, António Maria Cardoso, João Azevedo Coutinho, Caldas Xavier, Alves Roçadas, António Enes e, acima de todos, Mouzinho de Albuquerque tornaram-se os novos símbolos de uma gesta que sublimaria em África o drama de uma nação falida e descrente.

O continente fatiado

A pacificação de Gaza com a vitória de Chaimite e a prisão de Gungunhana, a 28 de Dezembro de 1895, ou a presença de colonos no coração da Zambézia capazes de controlar áreas (prazos) equivalentes a metade de Portugal, como era o caso de António Maria Pereira, pareciam criar condições para os amplos e ricos territórios da África austral permanecessem sob a égide de Lisboa. Com as chancelarias diplomáticas em modo de repouso, o problema maior estava na ambição desse colono aventureiro que foi Cecil Rhodes, o fundador da De Beers, ainda hoje a maior empresa diamantífera do mundo, que lamentava não ter meios para “anexar os planetas” que via no céu austral. Rhodes foi um permanente instigador de revoltas indígenas contra os portugueses. E, na sua tarefa de “ajudar Deus” a tornar o mundo “mais inglês”, foi um dos maiores adversários da ambição portuguesa no sul do continente africano.

Motivos não faltavam para Rhodes avançar com a sua estratégia. Uma década após a Conferência de Berlim, realizada entre Novembro de 1884 a Fevereiro de 1885, quando a agitada partilha de África parecia ter atingido os seus limites, havia ainda quem se declarasse insatisfeito. A França joga os seus últimos trunfos com a ocupação de Madagáscar em 1895; a Inglaterra, que com o Ultimato a Portugal e o tratado de 1891 que fixaria as fronteiras coloniais e imporia o direito de decidir sobre uma eventual venda das possessões nacionais, garantira o projecto de unir por caminho-de-ferro o Cabo ao Cairo, preparava-se para disputar as prósperas repúblicas do Transval aos bóeres; e a Alemanha, empurrada pela ambição da Weltpolitik do chanceler Bismark, não escondia a sua insatisfação por ser o parente pobre do “scramble for Africa”, ao qual chegara tarde e sem condições. É neste contexto de domínio imperialista que se começa a avolumar um interesse pela partilha dos territórios coloniais das potências mais frágeis, como a Bélgica, a Espanha e, principalmente, Portugal.

Em 1898, uma revista alemã escrevia: “Nós devemos conquistar novos territórios fora da Europa, sempre que a ocasião se apresentar, sem renunciar a nada, mau grado os esforços das nações menos poderosas, como Portugal ou Espanha, para conservar as suas colónias”. Faltava, no entanto, uma oportunidade para consumar a “conquista” e a grave crise financeira do Estado português criá-la-ia nesse mesmo ano. Londres empenha-se em facilitar um empréstimo de 8 milhões de libras a um juro de 3%. Como contrapartida, ficaria com as receitas das alfândegas coloniais. Quando as primeiras notícias desta manobra de envolvimento dos britânicos se torna conhecida, os alemães dispõem-se a participar no negócio. No dia 30 de Agosto de 1898, Arthur James Balfour, ministro dos Estrangeiros de Inglaterra, e o embaixador alemão em Londres Melchior Hatzfeld assinam uma convenção secreta em que se acertam os detalhes desse empréstimo. A Inglaterra ficaria com as cobranças do Norte de Angola e do Sul de Moçambique, enquanto os alemães ficariam com o controlo das áreas alfandegárias do Norte de Moçambique, o Sul de Angola e Timor. Em caso de incumprimento, essas zonas alfandegárias passariam automaticamente para a esfera de influência desses dois países.

O governo de José Luciano de Castro percebeu o perigo. Recusaria o empréstimo alegando “perda de soberania”. Com o apoio tácito de uma França hostil ao reforço das possessões dos seus rivais europeus, Lisboa procura uma alternativa junto dos banqueiros Rothschild. De acordo com os documentos analisados por Nuno Severiano Teixeira, os alemães ainda pressionam os britânicos para obrigar Portugal a assinar o acordo do empréstimo, usando “a força se necessário fosse”. Os ingleses, porém, começam a tergiversar. A sua maior preocupação era já a guerra iminente contra a república do Transval, dominada pelos bóeres, para a qual tanto precisavam da neutralidade alemã como da cooperação portuguesa.

O apoio alemão aos bóeres, explícito e cimentado através de fortes investimentos germânicos nas minas de ouro do Transval, era um incómodo que, através do tratado, os britânicos tentaram mitigar. Mas o sul de Moçambique, principalmente a zona de Lourenço Marques, à qual, numa terminologia própria de protectorado, os britânicos chamavam Delagoa Bay, era fundamental para a logística militar da campanha no Transval. Era daí que partia uma linha de caminho-de-ferro, que Lisboa nacionalizara em 1889, em direcção à mais importante cidade africana do tempo, Joanesburgo. Em Agosto de 1899, a passagem via Lourenço Marques de 500 toneladas de munições para a República da África do Sul tinha deixado Londres irritada e atenta ao perigo de uma neutralidade efectiva de Portugal.

Em 1899 britânicos e alemães entram em disputa sobre as Ilhas Samoa, Londres esquece a convenção sobre a partilha das colónias nacionais e volta a aproximar-se de Portugal, assinando, sob a forma de declaração secreta, o Tratado de Windsor a 14 de Outubro de 1899. De acordo com esse tratado, Portugal comprometia-se a proibir a importação de material de guerra para o Transval via Lourenço Marques no caso de uma guerra anglo-bóer (que eclodiria ainda nesse mês) e autorizava o abastecimento dos navios britânicos nos portos da colónia. Como compensação, Londres voltava a assumir os termos do tratado de 1661, cujo artigo final obrigava a Inglaterra a “defender as colónias portuguesas contra todos os seus inimigos presentes e futuros”.

O que a seguir se verificou parece justificar o regresso do espírito de aliança entre os dois países, que ficara fortemente abalado com o Ultimato de 1890. Em Dezembro de 1900 a esquadra britânica passa por Lisboa. O rei D. Carlos visita a Inglaterra em Novembro-Dezembro de 1902. Em Abril de 1903 é a vez do monarca britânico, Eduardo VII, retribuir o gesto com uma visita à capital portuguesa. D. Carlos irá uma vez mais a Londres em Novembro-Dezembro de 1904. Nesse ano, o segundo tratado de Windsor é assinado. Em Portugal podia respirar-se de alívio. O património colonial estava de novo a salvo, sob a protecção por escrito da maior potência económica e marítima da época. A cobiça das grandes potências tinha protegido o império. “O que se passou na década de 90 em relação a África pode ser resumido da seguinte maneira: Portugal dispunha de um bem que muita gente ambicionava e que se pensava não tinha posses para manter; mas aqueles que cobiçavam esse bem não se podiam verdadeiramente entender sobre a maneira de o partilhar e, por isso, cada um deles tentava sobretudo que não seriam os outros a aproveitar-se dele”, escreveu a propósito o historiador Rui Ramos.

A turbulência na República

A instauração da República em 5 de Outubro de 1910 e o exílio do rei D. Manuel II em Londres voltam a alterar o pano de fundo sobre o qual se tecia o futuro do sonho colonial português. As dúvidas sobre o poder de Portugal administrar territórios longínquos, várias vezes mais vastos do que o da metrópole, multiplicaram-se. As críticas sobre a contratação de mão-de-obra indígena em Angola ou o envio de força de trabalho de Moçambique para as minas sul-africanas ganharam fôlego. O trabalho escravo em São Tomé teve amplo eco na imprensa internacional, em boa parte fomentado pelos interesses da poderosa Cadbury, uma produtora de chocolate britânica. Pouco antes do eclodir da Grande Guerra, a exibição da cobiça pelo património colonial português voltaria à actualidade.

Nas suas memórias escritas em 1925, o Primeiro Lorde do Almirantado Winston Churchill haveria de confessar que “se ajudar a Alemanha no domínio colonial era um meio para estabilizar a situação, esse era um preço que nós estávamos dispostos a pagar”. Uma vez mais, os britânicos moldavam o seu jogo de alianças em função da urgência dos seus interesses. Paradoxalmente, e até ao dia em que o conflito mundial eclodiu, nada prenunciava que os primos Guilherme II, o kaiser alemão, e Jorge V, o rei inglês, pudessem entrar em guerra. É neste contexto que, em 1912 e 1913, as chancelarias dos dois países recuperaram os termos da convenção secreta de 1898. Sob o pretexto de possíveis agravamentos e de contágio da instabilidade do regime republicano, Londres e Berlim rubricam a 13 de Agosto de 1913 um novo acordo que rearranja o mapa da partilha de 1898 e alarga o campo de possibilidades para poderem partilhar Angola e Moçambique – Timor ficaria de fora, mas São Tomé passaria para o controlo alemão.

Desta vez, com excepção do Niassa e de Cabinda, todo o território de Moçambique e de Angola passariam para a influência, respectivamente da Inglaterra e da Alemanha. E para que esse passo fosse dado, não estavam em causa apenas incumprimentos financeiros: os dois países arrogavam-se, por exemplo, ao direito de anexar os territórios coloniais portugueses sempre que as autoridades nacionais não pudessem garantir a segurança dos ingleses ou alemães que neles habitavam – “um critério vago e essencialmente político”, como sublinha Nuno Severiano Teixeira.

Uma vez mais, seria a França a servir de amparo ao desagrado de Lisboa. Paris protesta em Londres, alegando que esta aproximação à Alemanha contrariava o espírito da Entente Cordiale que os dois países tinham celebrado em 1904. O Presidente Poincaré consideraria os acordos como “um triste exemplo de imoralidade diplomática”. Portugal, por seu lado, pouco pode fazer. Consegue apenas ganhar tempo, convencendo Londres a assinar o acordo apenas após a sua publicação. As pressões francesas e portuguesas e a obrigação de tornar igualmente públicos os termos do Tratado de Windsor, que em cerca medida contrariavam o espírito do acordo anglo-alemão, criam um impasse. Quando a Alemanha, que preferia manter o secretismo sobre o acordo, acede finalmente à exigência britânica de assinar o tratado após a sua revelação pública, estávamos já em Junho de 1914. Um mês mais tarde a guerra eclodiria na Europa.

Em força para as colónias, parte I

Quando num acto imprevisto de provocação os alemães cruzam a fronteira Norte de Moçambique e devastam o pequeno posto de Maziúa, tinha-se já percebido que, tarde ou cedo, Portugal teria de se envolver na defesa das suas colónias. Dias depois do princípio da guerra na Europa, a 18 de Agosto de 1914, o Governo da República ordena o envio das primeiras expedições para Angola e para Moçambique. O conflito na fronteira do Rovuma eclodiu ainda antes de as tropas comandadas por Francisco Massano de Amorim terem desembarcado em Porto Amélia, actual Pemba, a 1 de Novembro; em Angola, as forças enviadas da metrópole, comandadas pelo experiente Alves Roçadas, desembarcaram em Moçâmedes a 1 de Outubro e 18 dias depois teria início a série de incidentes que acabaria no desastre de Naulila, em 18 de Dezembro de 1914. Ambos os combates seriam, no entanto, o prelúdio do que viria a seguir.

Derrotados pelos britânicos e pelos sul-africanos na frente da África Ocidental, os alemães rumaram para a região dos Grandes Lagos, no Tanganica. Seria aí que travariam entre 1916 e 1918 os mais duros combates com as tropas portuguesas. Pressionados a Norte e a Oeste pelos britânicos e pelos sul-africanos, que mobilizaram para o conflito africano mais de 300 mil homens, a pequena força de 14 mil combatentes alemães, liderada por um dos mais geniais estrategas militares da história, Paul Emil Von Lettow-Vorbeck, acabaria por atacar Moçambique logo na Primavera de 1916 e centraria aí o essencial da sua ofensiva de 1917 e 1918. Os corpos expedicionários portugueses, apesar de maioritários em termos de tropas europeias, apesar de disporem de mais e melhor armamento, sofreram então uma série de reveses que tornam a campanha africana da Primeira Guerra Mundial uma das páginas mais vergonhosas da história do Exército nacional.   

Amanhã: Os “filhos espúrios” que a República enviou para o Niassa