A Grande Guerra que Portugal quis esquecer

Na Grande Guerra de 1914-18, o exército português sofreu a sua maior derrota em África desde Alcácer Quibir. No Norte de Moçambique morreram mais soldados portugueses do que na Flandres. Não tanto pela razia das balas alemãs. Mais pela fome, pela sede, pela doença e pela incúria. Minada pela vergonha, a I Guerra em Moçambique acabou votada ao esquecimento. Não tinha lugar numa nação que até 1974 sonhava com um império ultramarino. Numa viagem de mais de 2500 quilómetros, o PÚBLICO foi à procura dessa guerra sem rosto. Os cemitérios dos soldados foram profanados ou são lixeiras, mas o milagre da tradição oral conservou as suas memórias até hoje.

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Ponte da Unidade que liga Moçambique à Tanzânia Manuel Roberto

No dia 26 de Junho o primeiro-ministro de Portugal foi ao cemitério militar de Richebourg, no Norte da França, “prestar a nossa homenagem colectiva” aos soldados que morreram na Primeira Guerra Mundial. Se em vez de ter escolhido o palco europeu da guerra e optasse pelo cemitério de Palma ou o ossário de Mocímboa da Praia, no Norte de Moçambique, dificilmente Passos Coelho teria condições para manifestar o "respeito e sentimento de enorme orgulho" que o país supostamente "tem por todos aqueles que se sacrificaram ao serviço da nação". Porque nesses lugares remotos não encontraria cemitérios com cruzes brancas, alinhadas e conservadas, a recortarem o verde da paisagem. Descobriria sim lápides a emergirem entre o lixo que alimenta galinhas e cabras, tumbas engolidas pelo avanço da selva, túmulos profanados com os restos dos esqueletos dos combatentes expostos ao ar, campas onde só com esforço se consegue ler o nome dos que morreram em Quionga, em Negomano ou no território dos Macondes, nas margens do rio Rovum.

O historiador Marco Arrifes escreveu que “o soldado desconhecido de África é bem mais desconhecido que o da Flandres” e desde os dias da guerra até hoje não faltam argumentos para comprovar a sua tese. Em África combatia-se, de acordo com a ideologia e o direito da era colonial, pela defesa do território nacional. Em África, principalmente no norte de Moçambique, morreram mais soldados portugueses do que nas trincheiras da Flandres, não tanto pelo efeito das balas mas mais por causa da impreparação, da incúria, da fome e da sede, da loucura das febres, do paludismo e da disenteria. Mas nem isso bastou para que a Grande Guerra em África tivesse merecido a atenção que os historiadores, os políticos e a generalidade da opinião pública devotaram ao Corpo Expedicionário Português na Europa. Até hoje, as campanhas em África permanecem envolvidas numa relativa aura de esquecimento colectivo. Só muito recentemente uma nova geração de historiadores decidiu desenterrar o tabu e verificar a dimensão da tragédia que aconteceu em Angola e, principalmente, em Moçambique.

Numa viagem de mais de 2500 quilómetros pelas zonas remotas da província de Cabo Delgado, na linha de fronteira do Rovuma ou já no outro lado do planalto dos macondes, em território da Tanzânia, o PÚBLICO foi à procura do que resta dessa guerra. Partimos de Pemba, a Porto Amélia dos tempos coloniais, subimos a Mocímboa da Praia e a Palma, as bases das principais expedições das tropas nacionais entre 1916 e 1917; visitámos Quionga que fora ocupada pelos alemães em 1894 e reconquistada sem um tiro em 10 de Abril de 1916; subimos a Namoto, na margem do Rovuma; fomos a Mueda, símbolo do orgulho dos macondes e lugar simbólico do início da Guerra Colonial, atravessámos a estrada de quase 200 quilómetros de terra batida, em plena selva, que a liga a Negomano, onde as tropas portuguesas sofreram uma pesada derrota em 25 de Novembro de 1917; cruzámos a fronteira através de uma ponte moderna, absurda, que liga duas picadas entre o nada e lugar nenhum e subimos ao planalto dos macondes do lado da Tanzânia para visitar o velho forte alemão de Nevala, que os portugueses ocuparam durante um mês; passámos em Mahuta onde uma emboscada a 4 de Outubro de 1916 tirou a vida a 32 soldados e regressámos a Moçambique via Kilambo e Namoto.

Ainda hoje as memórias da Grande Guerra permanecem guardadas nessas localidades pela tradição oral. Amisse Juma, 76 anos, sabe identificar o lugar onde se instalou o quartel-geral da quarta expedição, em Mocímboa da Praia. Martins Ibrahim Musse, 65 anos, sabe relatar as histórias dos soldados cujos restos mortais permanecem no cemitério de Palma e lembra-se do dia em que muitos foram desenterrados e transportados para Portugal. O mzê (senhor de idade) Assani Abdel Remani Kimombo desconhece ao certo a sua idade mas consegue detectar entre o mato as trincheiras que em 1916 as tropas portuguesas cavaram em Namoto para se defenderem das investidas alemãs que partiam do outro lado do Rovuma; Abdel Carlos John é capaz de abrir caminho entre a selva com uma catana para, a alguns quilómetros da aldeia, nos levar ao túmulo de um soldado alemão cuja cúpula, garante, foi derrubada por um elefante. E em Negomano, na fronteira entre o Cabo Delgado e o Niassa, Santos Salimo Mundogwan, 61 anos, conserva as memórias que o seu avô, o régulo Malunda, lhe transmitiu do terrível combate que em 25 de Novembro de 1917 opôs portugueses e alemães numa das orlas da sua aldeia, no preciso lugar onde o Lugenda se funde com o Rovuma. Santos Salimo Mundogwan recorda-se até do nome do major Teixeira Pinto, o comandante das tropas nacionais em Negomano que perdeu a vida com os primeiros tiros do cerco alemão.

O regresso a esses lugares e a recuperação dessas memórias ajuda a perceber o destino das expedições. Obrigadas a defender uma fronteira com 720 quilómetros, tendo de cruzar um território muito maior do que Portugal, num clima abrasador onde, no Verão, a chuva potencia níveis de humidade acima dos 90%, numa região sem estradas que obrigavam as colunas a ter de abrir caminho entre a selva, sujeitos a permanentes ataques de feras e de enxames de mosquitos, os soldados portugueses foram sujeitos a uma missão impossível. Sem treino específico, sem equipamento ajustado aos rigores do mato africano, sem linhas de abastecimento que garantissem comida e água, sem medicamentos nem hábitos de higiene, tornaram-se presas fáceis de um exército alemão com menos homens mas liderado por um génio militar, Paul Emil von Lettow-Vorbeck, cujas tácticas de guerrilha em movimento inspirariam todo o curso da guerra não-convencional do século XX, de Che Guevara a Nguyen Giap, de Amílcar Cabral a Samora Machel. 

A zona do conflito, entre os rios Lúrio e o Rovuma, era visitada pelos portugueses desde os princípios da expansão, mas a sua posse efectiva só se consumaria em Fevereiro de 1887, quando o coronel Palma Velho, governador de Cabo Delgado, conquista a baía de Tungue ao sultão de Zanzibar. De face voltada para a Índia, mas culturalmente próxima da esfera do Islão, a costa era nessa época, como hoje, um mosaico de povos que viviam da pesca e da agricultura familiar. Mais para o interior dominavam os macuas, a sul do Lúrio, e os macondes e, já nos limites do Lago Niassa, os ajauas. Para os soldados portugueses, na sua esmagadora maioria provenientes das aldeias do interior, o Norte de Moçambique aparecia-lhes como uma terra inóspita, maldita, povoada de leões que entravam noite dentro nos acampamentos e devoravam carregadores indígenas ou doentes dos hospitais de campanha, de formigas carnívoras, de gente que comia ratos dos arrozais e dançava em trejeitos hedonistas noite fora em batucadas.

Toda a área de conflito tinha sido concessionada à exploração da Companhia do Niassa, em 1890, mas a obra colonizadora desta entidade tinha sido nula. Os seus métodos “eram tudo o que havia de mais simples: nem escolas, nem missões, nem hospitais, nem estradas. A sua actividade cifrava-se na cobrança dos direitos da alfândega e no m’soco”, o imposto de palhota, constatou o médico Américo Pires de Lima na sua memória Na Costa de África. Poder-se-ia pensar que a experiência militar dos portugueses em África, coroada com missões do tenente Valadim no Niassa, onde morreu em combate em Janeiro de 1890, com a estratégia baseada na violência dos “Centuriões” comandados por António Enes, ou as façanhas de Mouzinho de Albuquerque na batalha de Marracuene, de Chaimite, ou com a prisão de Gungunhana, em 1895, colocaria as tropas portuguesas numa situação de vantagem face à curta vivência dos alemães em África, que se tinham estabelecido na região dos Grandes Lagos apenas em 1885. Puro engano.

Quando a primeira expedição comandada pelo coronel Pedro Francisco Massano de Amorim, director militar das Colónias, chega a Porto Amélia e desembarca do Durhan Castle, no dia 1 de Novembro de 1914, com 50 oficiais, 77 sargentos, 1400 soldados e 322 solípedes era já possível perceber a dimensão do improviso. A falta de objectivos, a ausência de preparação militar ou a carência de bens cruciais como medicamentos iriam comprometer o esforço das tropas expedicionárias. Massano de Amorim lamentaria mais tarde no seu relatório de campanha o seu destino: “Sem caminho-de-ferro, que aqui é considerado um bluff, sem linhas telegráficas, sem estradas, sem força militar… com ratoneiros e bandidos em vez de polícias e sipaios, sem protecção de espécie alguma aos indígenas… não é para admirar que à data de chegada da expedição do meu comando aos territórios da Companhia do Niassa os postos administrativos fossem uma vergonha, os militares uma irrisão, a ocupação uma mistificação, a cobrança de impostos uma violência, a subordinação do gentio uma utopia e a viação um esforço grosseiro”.

A expedição, baseada na actual Pemba, capital da província de Cabo Delgado, passaria um ano em Moçambique dedicada a tentar suprir as carências de mobilidade que comprometiam a acção de um exército moderno, sujeito a deslocações de centenas de quilómetros com toneladas de víveres e equipamentos. O seu legado para a expedição que se lhe seguiu consistiu na instalação de uma linha telegráfica e na construção de uma estrada que ligaria Porto Amélia a Mocímboa do Rovuma, com uns 450 km de extensão. Mas mesmo a permanência na belíssima baía de Pemba, num ecossistema e num clima apesar de tudo mais favorável que os de Palma ou de Mocímboa da Praia, não evitaram que, de acordo com o historiador António José Telo, a expedição tenha sofrido “21% de baixas por doença nos primeiros seis meses, sem entrar em combate e mesmo sem sair de Porto Amélia”.

Nem esses dados alarmantes serviram de lição. Nada mudou na preparação das expedições seguintes, que depois de Março de 1916 tinham de viver em estado de guerra declarada com os alemães. Pelo contrário, a segunda e terceira expedições, com mais de seis mil soldados da metrópole, acentuariam os erros da primeira. Numa das sessões secretas da Câmara de Deputados e do Senado da República destinadas a discutir a situação da guerra, que decorreram entre 11 e 31 de Julho de 1917, o líder do Partido Unionista, Brito Camacho, daria conta da lassidão e negligência com que as missões eram preparadas: “Não é segredo para ninguém que se têm mandado tropas para a África como se não mandam reses para o matadouro”.

“A guerra dos outros”

Mais de 2000 soldados europeus mortos, uma derrota copiosa em todas as frentes, a cedência aos ingleses do comando operacional após o desastre do Verão austral de 1917: a linha de fronteira traçada pelo curso do Rovuma tornou-se “o mais fantástico atoleiro da história militar portuguesa moderna”, na opinião do historiador francês René Pélissier, especialista no estudo do passado das ex-colónias portuguesas em África. Cada relatório, cada fonte, militar ou civil, portuguesa ou alemã, oferece visões desencontradas sobre os custos humanos da guerra entre os soldados enviados da metrópole. Mas há nesta contabilidade um valor aproximado, ao menos. O que se torna impossível em relação ao balanço das vítimas entre a população local. Na Conferência de Paz, Portugal avançou com uma estimativa de 120 mil mortos entre os habitantes do Norte de Moçambique, mas é provável que haja aqui algum exagero destinado a inflacionar o valor da indemnização que se estava a pedir à Alemanha.

Certo é que morreram muitas dezenas de milhar de nativos moçambicanos. Menos os que vestiram a farda do exército português e integraram as companhias indígenas, muitos mais os que foram capturados nas suas aldeias natais e obrigados ao trabalho forçado de carregador. Carlos Selvagem, um alferes que integrou a terceira expedição, em 1916, olhava-os “com piedade, angulosos, nus, esquálidos, tiritando de frio debaixo dos pobres farrapos da manta, aglomerados em rebanho nos seus cercados de capim, deslocando-se lentamente, em lentas filas de comboios, ajoujados sob os fardos que os esmagam, e passivos, sonâmbulos, mecânicos, o olhar ausente, a face vaga, como quem vaga no indefinido dum sonho remoto, duma remota visão de palhotas e aldeias natais”.  

No final da guerra, Gavicho de Lacerda, administrador da Zambézia, dizia que o seu prazo tinha fornecido 25 mil carregadores ao exército e desses, em 1919, havia ainda cinco mil por repatriar. Estavam "em tal estado que fazia horrores olhar para eles". Quantos terão morrido de fome, de sede, de exaustão, de maus-tratos é impossível saber. Não faziam parte da contabilidade administrativa do exército. “Não são homens porque não têm nome; também não são soldados, porque não têm número. Não se chamam, contam-se. Formam-se a varapau, põe-se-lhes uma carga à cabeça e pronto”, lamentaria o sargento Cardoso Mirão, da expedição de 1917.

Ao infortúnio dos carregadores (só no ano final da campanha foram recrutados 30 mil para apoio das tropas britânicas a operar em Moçambique) junta-se a violência e as razias feitas por exércitos famintos em marcha nos campos e armazéns dos aldeões. Com a presença do exército no Norte de Moçambique, a Companhia do Niassa tratou finalmente de cobrar impostos aos macondes, usando métodos que arrepiavam até a sensibilidade dos soldados embrutecidos pela guerra. “Um dia, em Mocímboa, vi chegar uma estranha procissão: à frente e atrás, um sipaio [polícia indígena], no meio uma longa bicha de mulheres, que foram metidas num redil de arame farpado. Surpreendido perguntei a significação daquilo. Era a cobrança coerciva do m’soco [imposto de palhota]. Como os pretos não pagavam, encarceravam as mulheres até que os respectivos maridos, saudosos, as viessem resgatar pagando o almejado m’soco”, lembraria Américo Pires de Lima, um alferes médico. As sublevações indígenas, no Barué, perto da Beira, ou no planalto dos macondes foram duramente reprimidas. No Norte de Moçambique, entre Abril e Junho de 1917 foram incendiadas mais de 150 povoações maconde, na contabilidade de René Pélissier.

Moçambique e os moçambicanos foram sem dúvida as maiores vítimas da guerra, mas nem isso motivou qualquer interesse entre a comunidade académica sobre o tema. António Sopa, historiador moçambicano da época contemporânea, explica este alheamento dizendo que a I Guerra Mundial é vista como “uma guerra dos outros”. Sem fontes escritas, com os arquivos militares e coloniais transportados para Lisboa, resta a memória oral como objecto de estudo. Ou a ficção, fácil de prosperar numa guerra entre europeus errantes pela selva. O escritor João Paulo Borges Coelho recuperou esse tempo para escrever o romance que lhe valeria o Prémio Leya de 2009, O Olho de Hertzog. E pouco mais.

Uma guerra ainda viva

Logo após o conflito, nos anos 20, os militares e a História ainda se dedicaram a tentar perceber as razões para o desastre na guerra do Norte de Moçambique. Outros fizeram-no em tom de ajuste de contas. Foi o caso do general Gomes da Costa, que em 1918 comandou a última expedição a Moçambique e teve a oportunidade de arrolar todas as omissões e de compilar uma síntese de todos os erros cometidos. Escreveu o militar que encabeçaria o golpe de 28 de Maio de 1926 sobre o estado de impreparação das missões enviadas para Moçambique: “Não se conhecem nem os recursos militares das colónias, nem os seus recursos económicos, nem a sua topografia; nem há cálculos feitos para a quantidade de víveres necessários para um dado número de homens; nem estudo da ração mais própria; nem contratos ou combinações para os fornecimentos a fazer com regularidade; nem fixação das formas de acondicionamento; nem estudo dos nossos navios para se conhecer o que cada um pode transportar em homens, animais e carga; numa palavra, nada há feito, nada se sabe, para nada serve". As campanhas em Moçambique desenrolaram-se "sem objectivo, sem plano, sem nexo, até à derrota".

Em 1926, uma Ordem do Exército que serviria de avaliação ao relatório do comandante da terceira expedição, o general Ferreira Gil, acentuava as responsabilidades dos políticos e desculpava os militares pelas perdas materiais e humanas e pelas derrotas. “O estudo deste período da campanha na África Oriental mais uma vez demonstra que as estações superiores não puderam ou não souberam convenientemente preparar, nem superiormente orientar a nossa intervenção militar nesse teatro de operações. Em tudo se revela uma grande desorganização, a mais completa ausência de previsão e de uma conveniente preparação, e a carência de recursos em dinheiro e em material indispensável nas campanhas coloniais, factores estes acrescidos com a falta de um plano de guerra previamente estabelecido, onde tivessem sido fixados os objectivos políticos e militares da nossa acção, como beligerantes, nesse teatro de operações. E, como se tudo isso não bastasse, foi ainda por vezes agravado com a intervenção, nem sempre oportuna, de poderes superiores aos Comandos das expedições na direcção das operações, e com o fraco apoio que, também por vezes, foi dado a estes Comandos pelo Governo central”.

Alguns dos soldados e oficiais que resistiram às agruras das campanhas africanas elevaram o tom das críticas, publicando as suas memórias nos anos finais da Primeira República. Na maior parte dos casos são relatos vívidos, pungentes, mais destinados a celebrar o milagre da sobrevivência do que em analisar as causas da incompetência do comando. São livros que nos falam dos hábitos dos indígenas, que relatam o sofrimento das grandes caminhadas, que descrevem os horrores da fome e da sede, que situam as bases ou os campos de batalha, que narram detalhes do quotidiano dos bivaques ou dos acampamentos dos indígenas. Há nesses relatos vontade de denunciar, mas é mais fácil encontrar palavras contra os hábitos dos negros ou contra os monhés (indianos) do que contra os oficiais ou contra os políticos.

Ainda que o volume de obras memorialísticas da guerra em Moçambique seja muito inferior às que se escreveram a partir da experiência na Flandres, as suas narrativas são cruciais para se perceber o que aconteceu aos cerca de 20 mil soldados que o Governo da República enviou para travar os alemães (em Angola, onde os conflitos duraram apenas entre 19 de Outubro e 18 de Dezembro de 1914, o número de praças europeias ascendeu a 13 mil). Américo Pires de Lima, um médico do Porto que se viria a destacar como professor universitário e como criador do Jardim Botânico que ainda hoje existe na Rua do Campo Alegre, deixou-nos uma ideia brutal do efeito que as doenças tropicais provocaram nas expedições baseadas em Palma e em Mocímboa da Praia, entre 1916 e 1917. Carlos Selvagem e António de Cértima relataram com detalhes a marcha pela actual Tanzânia que culminou com a conquista e abandono do forte alemão de Nevala. Cardoso Mirão, Ernesto Moreira dos Santos e José Teixeira Jacinto guardaram em texto a inenarrável odisseia da Coluna do Lago, uma viagem desnecessária de 900 km pelo interior da selva que acabou com as derrotas de Negomano e de Serra Mecula, em Novembro de 1917.

A maior parte dessas memórias foi publicada na década que se seguiu à guerra e, com excepção do livro Epopeia Maldita de António de Cértima, ainda hoje um objecto de culto para os bibliófilos, caiu depressa no esquecimento. Cardoso Mirão decidiu imprimir o seu Kináni (palavra maconde que significa “quem vem lá” ou “quem vive”) já na vigência do Estado Novo e, como seria de esperar, a obra foi censurada por instilar o “derrotismo” no país e por conter relatos considerados “desprestigiantes para o Exército Português”. O livro, emocionante, misto de tragédia e de aventura, seria publicado em 2001. A memória de Teixeira Jacinto permaneceu 70 anos guardada num invólucro de papel grosso, atado com fio do Norte, até que há três anos o seu neto Armando Jacinto, um coronel na reserva, a descobriu num baú – seria revelada em primeira mão pelo PÚBLICO em Outubro de 2011 e entretanto publicada pela Câmara Municipal de Espinho.

Com o Estado Novo, o processo de apagamento da memória avançou. As derrotas da Primeira Guerra em África seriam anotadas como um acidente de percurso, causado pela República jacobina, impreparada e carente de sentido patriótico. Os valores do nacionalismo ou a glória do Império coexistiam mal com as derrotas de Namoto ou Negomano. Os mitos africanistas de Mouzinho de Albuquerque não se podiam associar à tragédia de Nanguar ou da Serra Mecula. Craveiro Lopes, Presidente da República entre 1951 e 1958, foi ainda capaz de visitar alguns dos lugares do conflito em 1956, mandando recolher os restos mortais dos soldados dispersos por vários campos de batalha e transladando-os para Portugal ou para um ossário construído de propósito em Mocímboa da Praia – hoje ao abandono. Mas esse seu gesto fez-se mais por um desígnio pessoal do que pelo imperativo de moral pública. Craveiro Lopes fora um alferes que, aos 23 anos, fizera parte da Coluna de Massassi e participara na conquista de Nevala, em Outubro/Novembro de 1916. A sua bravura na defesa do fortim conquistado aos alemães pelo curto prazo de uma semana tinha-lhe merecido uma Cruz de Guerra. Era natural que um militar que vivera as agruras da guerra na selva africana se preocupasse em homenagear os que nela pereceram. 

A guerra colonial regressaria a muitos dos lugares por onde andaram os soldados portugueses de há cem anos. Francisco Dinis esteve em Negomano até 1974 mas não se recorda de ter ouvido falar da batalha que lá se travara 57 anos antes. Muitas das localidades que serviram de bases aos soldados das quatro expedições entre 1914 e 1918 seriam usadas pelas tropas coloniais que combateram a Frelimo quatro décadas mais tarde. Muitos dos eixos de penetração da guerrilha foram muito antes abertos pelas incursões alemãs. Entre estas duas gerações há, por isso, memórias em comum. Em Mecula, um lugar remoto do Niassa, onde Agostinho Mesquita sofreu um atentado com uma mina que o tornou deficiente, morreu o tenente Viriato de Lacerda em Dezembro de 1917 vítima dos ataques alemães.

René Pélissier considera que o facto de a guerra de libertação da Frelimo se ter iniciado no território dos macondes, onde se deram as mais duras batalhas da Grande Guerra e onde a população civil sofreu as agruras da escravidão ou da pilhagem, não é por acaso. “Não se deve esquecer que apenas 47 anos separam a ‘submissão’ de 1917 do início da guerrilha da Frelimo”, escreve o historiador francês. A verdade é que as marchas forçadas entre a selva no Niassa ou no planalto dos macondes, as razias dos bens das populações, a violência sobre as mulheres ou a escravidão da Grande Guerra dão corpo a uma linha de acontecimentos que esteve longe de se concluir quando os alemães depõem as armas, a 11 de Novembro de 1918. Por muito que em Portugal essa guerra distante tenha sido estranhamente engavetada na História, os seus efeitos perduraram no tempo. E, como o PÚBLICO pôde constatar, ainda hoje resistem na memória dos seus habitantes.
 

Notícia alterada a 29/7: Craveiro Lopes recebeu a Cruz de Guerra e não a Cruz de Ferro
 

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Manuel Roberto
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Mulher vestida com um polo da Frelimo junto a um monumento em homenagem aos militares que morreram no combate de Negomano Manuel Roberto