O portungolano como expressão da bantulusofonia
A primeira é a língua portuguesa. A segunda é o mapa quase quadrado de um país, onde cabemos povos de diferentes palavras bantu.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A primeira é a língua portuguesa. A segunda é o mapa quase quadrado de um país, onde cabemos povos de diferentes palavras bantu.
Um escritor angolano gosta de referir-se à língua de Agostinho Neto, Saramago, Bonga e de Zeca Afonso como um troféu que conquistámos cm a independência. Um troféu pode ser um espólio de guerra – da luta de libertação – mas pode ser também um reconhecimento pelo valor mostrado em alguma empreitada heróica ou esforçada. Somos donos e senhores dessa conquista ou dessa herança dos nossos antepassados, pois que, não foram só portugueses os que aqui a vieram falando ao longo de 500 anos. Também falou português-kimbundo a nossa Rainha Njinga Mbandi, assim como falou português-umbundo o rei Ekuiki I, e assim falou português-oshikwanhama e o Rei Mandume. Por isso é que o português falado hoje em Angola é um português batucado. Abrimos demais as vogais. Falamos e choramos quase sempre em voz alta.
Com a língua portuguesa veio uma carrada gostosa de palavras, como tremoço e canela e açafrão das índias, barril cheio de vinho palheto, chouriço, queijo a cheirar a chulé, batata-rena e bacalhau ao alho, que é só uma das mil formas de o preparar, vieram outras palavras menos gostosas como canhão e bacamarte, assim nós inventámos o kanhangulo para fazer frente ao bacamarte e criámos a palavra musseque para ficar perto da palavra fábrica e da palavra muito alta que é arranha-céu. Na língua portuguesa dizemos agora as palavras sofisticadas do progresso, como centralidade do Kilamba, catamarã, vias estruturantes. Estas são as do discurso oficial.
Esta, em que vos escrevo, é a mesma língua na qual D. Afonso II de Portugal, em 27 de Junho de 1214, escreveu o seu testamento «En’o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, tem(en)te o dia de mia morte a saude de mia alma e a proe de mia molier reina dona Vrr(aca) e de meus filios e de meus uassalos(...)»
É a mesma e não é. Do arcaico, guarda a saudade dos navegadores que a trouxeram, com escorbuto e terços de rezar, mas hoje é uma mesma-outra língua que quero designar como portungolano (nosso troféu ou herança), a naturalíssima expressão bantulusófona de um processo de transmutação linguística que, um dia, também com as influências da francofonia fronteirça e do carioca do Rio de Janeiro, nos leva hoje, a escrever “daqui à 100 metros”, ou “ali tem cinco pássaro” (sem ‘s’, evidentemente) que “é prá mim falá´” neste nosso diálogo transcultural aqui na Lua.
E agora mesmo, em Luanda, a capital de Angola, os jovens que cantam e dançam o kuduru e os rapazes que dormem nas ruas sem saberem bem porquê falam um português que já não se lembra do kimbundo, mas que é tecido de luandensidades linguísticas de uma resistência à urbanidade que os enxotou do seu veículo de crescimento betuminoso. Bem ouvimos as nossas zungueiras darem bué de maçada nos fiscais, xé!, os madíé já chegaram!, arreió, arreió (para dizer que o preço baixou), ou está passá feijão, é feijão frade, é feijão espera-cunhado, é feijão catarino, está passá feijão!, pela boca do gramofone chinês a pilhas.
Mas é também no discurso oficial que ouvimos dizer “contribuir no desenvolvimento”, tão repetida expressão em que o verbo perde a preposição “para” que lhe fora destinada pela lei da língua. Como esta mudança, há bastantes outras, a lembrar-nos que toda a língua tem transformações, ou melhor, evoluções (Darwin), mas tem sempre uma gramática que lhe impõe regras.
A verdade final é que um troféu ou herança representa sempre um valor, um recurso que, no caso da língua, é vital para a nossa unidade nacional e para nos comunicarmos com o universo. Por isso, não somos assim tão livres de fazer com ela tudo aquilo que nos der na real gana. É urgente que a Escola angolana dê aos seus alunos bons professores com o português bem afi(n)ado na ponta da língua.
Jornalista e director do Jornal da Cultura (Angola). Texto originalmente publicado em 7 de Julho de 2014