“O português é para o cabo-verdiano um guarda-chuva excelente”
O crioulo, “embora seja uma língua plenamente amadurecida do ponto de vista histórico, filológico, gramatical, lexical, tem um raio de intervenção bem determinado, enraizado nas ilhas e, claro, nos muito lugares de emigração, por vezes com um número impressionante de falantes. Mas essa realidade empírica, de escopo sobretudo popular, não se traduz num equivalente peso sócio-político e cultural”, lamenta Alberto Carvalho. “Nos lugares de emigração, ao povo obreiro falta tempo, motivação e formação activista para difundir a língua crioula, a não ser, bem entendido, na música e no facto notável da sua consideração de língua de minoria, nos Estados Unidos da América”.
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O crioulo, “embora seja uma língua plenamente amadurecida do ponto de vista histórico, filológico, gramatical, lexical, tem um raio de intervenção bem determinado, enraizado nas ilhas e, claro, nos muito lugares de emigração, por vezes com um número impressionante de falantes. Mas essa realidade empírica, de escopo sobretudo popular, não se traduz num equivalente peso sócio-político e cultural”, lamenta Alberto Carvalho. “Nos lugares de emigração, ao povo obreiro falta tempo, motivação e formação activista para difundir a língua crioula, a não ser, bem entendido, na música e no facto notável da sua consideração de língua de minoria, nos Estados Unidos da América”.
“O cabo-verdiano que escrever em crioulo tende a cingir as suas ideias ao contexto das ilhas”, explica o docente universitário. E por ser assim, “o horizonte de leitores tende a ser o das ilhas e das comunidades na diáspora. Mas, à luz do que já referi, não é de crer que os emigrantes em luta pela vida sintam grande motivação para a leitura literária. Não é novidade. Basta ler os ensaios de António Aurélio Gonçalves e de Baltasar Lopes. A língua crioula tende a representar as realidades autóctones, a exprimir as vivências da existência insular, a não se abrir para o vasto mundo. O vasto mundo não sabe crioulo, logo, não pode ler as obras em língua cabo-verdiana”, alega Alberto Carvalho.
Mas “se sabe cabo-verdiano, tenderá a ler as narrativas crioulas como coisas de um mundo tendencialmente exótico. Fatal e infelizmente. Esta questão de sociologia da leitura literária prende-se afinal com a linguagem, com aquilo que, em teoria, se define por mediador literário e, depois, pela capacidade de irradiação desse mediador”, acrescenta o professor catedrático. Assim, na medida em que a língua portuguesa é uma das cinco grandes línguas de cultura no mundo, “a escrita cabo-verdiana mediatizada pelo português dispõe de um vasto horizonte de leitura, ou de um aparato enorme de tradução editorial para outras línguas de grande difusão. Os autores sabem ou pressentem isso, não adianta iludir a questão”, responde o especialista em literatura cabo-verdiana.
Os escritores cabo-verdianos têm usado o português como mediador literário, mas para veicularem quase exclusivamente representações do universo crioulo. Por outras palavras, o homem crioulo forjou a língua crioula, ao mesmo tempo que a língua crioula o criou a ele e ao seu mundo social e humano, diria Gabriel Mariano. Mas ao mesmo tempo viveram, ao longo da história, paredes-meias com o português. Daí esta particularidade de os escritores cabo-verdianos poderem escrever a sua crioulidade genuína em português. Sem pensarem nisso, estes escritores acabam por moldar a língua portuguesa à expressão da sua identidade, da identidade de uma Nação.
O escritor Manuel Lopes, exemplifica Alberto Carvalho, “viveu desde cerca dos 12 até aos 16 anos em Coimbra, quando regressou a Cabo Verde. Depois, em idade adulta, entrou para a empresa de telecomunicações internacionais que o deslocou para os Açores, dos Açores para Carcavelos, de Carcavelos para Grândola e de Grândola para Lisboa já na velhice. No entanto, toda a sua obra, escrita em português, mergulha as raízes em Cabo Verde, com a ressalva de uns quantos poemas de temática lisboeta, para desenfastiar, disse ele”. Mas não é só o ambiente crioulo que os escritores cabo-verdianos transportam para dentro das suas obras, frisa o professor catedrático aposentado da UL.
“Vivam onde vivam, incorporam na sua escrita não apenas os conteúdos cabo-verdianos mas também expressões e a linguagem crioula no sentido de criar um efeito de autenticação popular, de enraízamento, de coloquialidade, de espontaneidade, de familiaridade. É uma espécie de selo que se vai colocando periodicamente”, explica Alberto Carvalho.
E aponta exemplos. “Baltasar Lopes, com o saber de grande linguista filólogo, acaba por conferir ao português uma surpreendente tonalidade crioula. Ainda na narrativa, diferentes dele, por exemplo, Manuel Lopes, Germano Almeida, Nuno de Miranda, Gabriel Mariano, introduzem frases, expressões e formas de pensamento que são outras tantas manifestações de genuinidade crioula. Mesmo que se revelem de difícil compreensão, tais expressões preservam sentido literário. Um estrangeiro que não entenda o sentido exacto, não precisa de o entender, visto que o extrai a partir do contexto. Daí a inutilidade dos glossários”, declara o investigador luso para quem isto é “muito elegante e muito produtivo do ponto de vista dos efeitos literários. Dá um toque de cor local das falas, dos ambientes e dos personagens”.
A convivência das duas línguas no universo literário cabo-verdiano é tão cordial que não há memória de atritos. Pelo contrário, a relação “é pacífica na medida em que são duas línguas muito próximas. O crioulo é uma língua neo-latina, derivada do português, como o português deriva do latim popular. O léxico sofreu transformações para se afeiçoar às realidades crioulas, mas os movimentos articulatórios na produção da fala são idênticos. Devido a esta familiaridade, também se torna familiar o vai-vem entre uma e outra língua. Para um leitor formado na língua, formas de referência que surgem nos textos em língua portuguesa, ou a maneira de pensar ou dizer - como quando Baltasar Lopes fala em “meninência” – revelam um fundo de diacronismo, ou de sincronização, entre o português e o crioulo também eles muito interessantes do ponto de vista dos efeitos literários e, ao mesmo tempo, da naturalização do português linguagem literária”, analisa Alberto Carvalho.
Em contraste com a área literária, a proporção de música cabo-verdiana cantada em português é no entanto residual. A arte musical não assenta na racionalidade, na lógica, na causalidade, nas mensagens dirigidas ao entendimento. A arte musical é por natureza universal, um significante que pode viver vazio de significado. Esse ícone de nome Cesária Évora sempre cantou em crioulo - salvo uma ou duas canções em português e castelhano - e terá sido por isso que conquistou fãs em todo o mundo. Da França aos Estados Unidos, da Rússia ao Japão, da Alemanha à Austrália. Assim como fazem, agora, Mayra Andrade, Nancy Vieira, Gabriela Mendes, também cantando na sua língua materna. Quem fez o contrário, como Fernando Quejas, que viveu e fez carreira em Portugal, cantando na língua de Camões, não se terá livrado da condenação dos cabo-verdianos, sobretudo dos defensores da suposta pureza da música de Cabo Verde.
Poucos foram aqueles ao longo dos tempos que se atreveram a repetir o gesto. Os que ousaram escrever e cantar música cabo-verdiana fizeram-no sempre num contexto específico. B. Leza, um dos maiores compositores de Cabo Verde, escreveu “Beijo de Saudade”, uma declaração de amor por Cabo Verde na língua portuguesa numa conversa com o Tejo, o rio português.
Mas a partir da diáspora, a música de Cabo Verde conhece nos últimos anos um fenónemo novo. Letristas e cantores de kizomba, cabo-verdianos nascidos ou criados no estrangeiro, mesmo em países não lusófonos - como Mika Mendes (França), Johnny Ramos, Denis Graça, Gil Semedo (Holanda) -incluem cada vez mais o português no seu repertório. Uma estratégia montada para agradar e aumentar a falange de fãs não-falantes da língua cabo-verdiana residentes, por exemplo, em Portugal, Angola, Brasil. Fãs que muitas vezes buscam na internet a tradução para o português das letras das músicas que esses cantores cantam no idioma de Cabo Verde, ansiando compreender as histórias que contam.
Se esta moda se vai generalizar, chegando aos géneros tradicionais da música de Cabo Verde, como morna, funaná, batuco, a ver vamos. A tendência de se expressar em português já está, no entanto, a chegar ao teatro cabo-verdiano. O Juventude em Marcha – o mais antigo grupo de teatro no activo no país – só actua para os conterrâneos quando sai para o estrangeiro, estejam eles nos Estados Unidos da América, Luxemburgo ou Portugal porque as suas peças são todas ditas em crioulo. As trupes que escolhem montar peças em português – como o Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, o Solaris, o Sikinada – já conseguem convites para festivais que acontecem, por exemplo, em Portugal, no Brasil, em Angola, Moçambique.
A convivência do cabo-verdiano com a língua portuguesa é, por isso, fatal na sua ânsia de comunicar com o mundo, considera Alberto Carvalho, “Não há por onde fugir, e felizmente que assim é porque, além da pertença histórica, o português é para o cabo-verdiano um guarda-chuva excelente”. Em outras palavras, é a janela através da qual o mundo olha e vê Cabo Verde.
Crioulo, o primeiro acto de globalização protagonizado pelos portugueses
Num outro sentido, também se dirá que a língua portuguesa vive através do crioulo. Se o idioma materno dos cabo-verdianos – o crioulo – tem filiação genética, lexical, na língua portuguesa em andanças pelo mundo, por esse facto o crioulo língua é um elemento de património inventivo e factor de união entre povos e culturas da Europa, Américas, África, Ásia e Oceânia.
Como todos os descendentes, é diferente das matrizes, tanto europeia quanto africana, mas também herda muitas características dos progenitores. “Isso também permite, como sublinhou Baltasar Lopes, uma outra forma de vai-vem. O léxico, a fonologia e a semântica do português dos séculos XV a XVII podem ajudar a esclarecer as característica do crioulo, ao mesmo tempo que o crioulo, com as suas formas actuais, pode elucidar as particularidades da história da língua portuguesa”, elucida Alberto Carvalho.
Mas a língua materna de Cesária Évora, Manuel Lopes, B. Leza, Jorge Barbosa, Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Ano Nobo, Germano Almeida, Betú, Ildo Lobo, Arménio Vieira, também tomou emprestada formas frásicas e léxico aos dialectos falados pelos milhares de escravos, das mais diversas origens - yorubas, timene, ashanti e tantos outros- desterrados para Cabo Verde. No seu livro “Africanismos na Língua Cabo-Verdiana”, o linguista francês Nicolas Quint identifica cerca de 80 palavras, o que equivale a 3% do léxico da língua caboverdiana. Como “djobi”, de origem mandinga, “funko”, de origem timene, da Serra Leoa.
A língua cabo-verdiana é, desta forma, o primeiro resultado da experiência de globalização iniciada pelos portugueses na época dos Descobrimentos, antes de chegarem ao Brasil e à India. Num encontro inicialmente forçado pelas circunstâncias históricas e pela insularidade, portugueses e africanos realizaram em Cabo Verde mais do que um simples intercâmbio de civilizações. Criaram uma língua nova e uma sociedade própria, principais factores de definição da cultura local, também ela nova.
O crioulo é o mundo que o mulato criou, como diria o Teixeira de Sousa – o escritor que mais soube descrever essa síntese de culturas que surge com o primeiro cabo-verdiano que nasce nas ilhas e se molda à cultura e língua dominantes (o português) para dar lugar a uma língua própria como identidade de uma Nação.
Bilinguismo: vantagem ou desvantagem
Os cabo-verdianos são por isso, na prática, historicamente bilingues. Dispõem do português, a língua oficial e de âmbito mundial, e o crioulo, o idioma materno em que é feito o seu quotidiano. Esta particularidade, afirma Alberto Carvalho, “coloca-os numa posição de vanguarda. Porque o futuro, dizem os mestres linguistas Celso Cunha e Lindley Cintra, está no bilinguismo ou no trilinguismo. Portanto, os cabo-verdianos estão muito bem situados” para encarar os anos vindouros, acredita Alberto Carvalho.
Esta “riqueza” dos cabo-verdianos “pode, se analisada do ponto de vista não político, não partidário e não ideológico, ajudar a encontrar caminhos para outros países de língua portuguesa que ainda têm problemas de integração linguística para resolver. Casos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau”, afirma o docente português que durante décadas ensinou literaturas africanas de língua portuguesa na Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa. Esses três países têm, cada um, mais de dúzia e meia de línguas de significativa difusão e “vão ter que decidir qual ou quais delas vão subsistir. Não podem subsistir todas. Vai ser doloroso para aqueles que vão ser sacrificados. Ora, o cabo-verdiano já poupou essa dor a si próprio”, diz o professor Carvalbo.
A “dupla” personalidade, ou seja, o perfil próprio de cada uma das línguas na construção da racionalidade, visto que as línguas constroem o pensamento antes de o comunicarem, pode no entanto dificultar a aprendizagem da língua portuguesa, em face da língua vernácula, criando embaraços tanto no discurso escrito como oral. Não são poucos os casos de cabo-verdianos, inclusive quadros com formação superior - licenciados, mestres, doutores, jornalistas, médicos, engenheiros - que ainda falam o português com a lógica do crioulo. Pura e simples tradução literal, ou seja, pensam em crioulo e passam para o português. Daí a grande dificuldade do cabo-verdiano, quando se expressa em português, por exemplo com as concordâncias - feminino, masculino, singular, plural.
Muitas palavras do crioulo são iguais às da língua portuguesa, ou quase, como casa, homi, mudjer, caminho, sodade. Mas a gramática do idioma cabo-verdiano, escreve também o linguista Nicolas Quint no seu livro “Africanismos na Língua Cabo-Verdiana”, é sobretudo de influência africana, nomeadamente a morfologia dos verbos. Segundo Quint, “com a mesma flexão conjuga-se tempos verbais diferentes. Se traduzirmos para o português isso soa muito estranho”.
Quer isto dizer que “a conjugação na língua cabo-verdiana rege-se pelo aspecto e não pelo tempo. É uma mudança muito radical em relação às línguas românicas como o português”, afirma o linguista. Ou seja, “o que engana os cabo-verdianos é o facto de os pontos lexicais serem comuns”. “Mas são dois esquemas mentais diferentes”, assevera Nicolas Quint. Como resolver o problema? “A conscientização da população cabo-verdiana de que o crioulo não é o português ajudaria muito a aprender a língua portuguesa”, sugere.
Jornalista. Texto originalmente publicado no jornal A Semana (Cabo Verde) a 25 Julho 2014