Era uma vez um rapaz
Boyhood é um filme sobre a memória. Richard Linklater filmou-o ao longo de 12 anos. Ou seja, filmou o crescimento de Mason Jr. (Ellar Coltrane) do primeiro ano da primária ao primeiro ano da universidade.
Para percebermos como um dos melhores cineastas norte-americanos no activo começou a descobrir os seus inúmeros talentos, Richard Linklater leva-nos de volta para o Texas, nos anos 1970. “Como a minha mãe era da academia, eu era uma espécie de cobaia”, diz Linklater, sorrindo entre golinhos de água com gás. “Faziam-se testes nos miúdos — e eu era sempre o primeiro, porque ela pertencia a esse mundo. Sabe? Ela era da área da fala e da audição, mas também da psicologia. Eu estava sempre a fazer testes. Era bastante divertido.”
Naquele dia, quando Linklater tinha nove ou dez anos, os cientistas pediram-lhe — durante um teste de rapidez mental — para repetir uma série de números na ordem inversa. “Eles liam os números para testar a memória — por exemplo, cinco números de uma vez — e o miúdo tinha de os repetir de trás para frente, para eles verem até quantos números conseguíamos repetir”, lembra-se Linklater. “E eu repetia cada vez mais números, cada vez mais, cada vez mais. Às tantas, junta-se um grupo de adultos à minha volta com todos eles a lerem-me números e eu a dizer os números na ordem inversa. E todos eles desatam a aplaudir e perguntam-me: ‘Como é que consegues fazer isso?’ E eu: ‘Bom, estou só a ler os números — consigo ouvi-los e simplesmente lê-los ao contrário.’ E eles: ‘Ah, então tens uma memória visual?’”
“De facto, apercebi-me de que tinha. Mas a seguir não pensei mais nisso.” Uma memória especialmente aguçada. Nítida e visual. A arte da performance on demand. A dinâmica dos miúdos a entrar avidamente nos elaborados truques dos adultos. O tempo a desenrolar-se como se fosse visto ao contrário. Ali, num único teste, Linklater já estava a dar sinais de tantas das coisas que têm caracterizado o seu trabalho enquanto escritor nomeado para os Óscares, rei de experiências de cinema – e agora, aos 53 anos, realizador de um dos filmes mais aclamados em anos. Boyhood, o 17.º filme de Linklater, que se estreou nas salas de cinema nos Estados Unidos na sexta-feira, 17 de Julho, está a ser acolhido como uma “obra-prima”, um “milagre” e celebrado como um feito raro tanto na abordagem como na execução.
Rodado durante alguns dias por ano ao longo de uma dúzia de anos, o filme, com uma duração de 166 minutos, acompanha o crescimento de um rapaz (Mason Jr., interpretado por Ellar Coltrane) do primeiro ano da primária até ao primeiro ano da universidade. “Trata-se de um filme sobre a memória”, diz o cineasta. Linklater diz esta frase como um mantra. E porque se trata de um filme sobre a memória, acredita que os espectadores vão vê-lo como tal. Numa das cenas iniciais, Mason Jr. passa tinta por cima de uns traços que marcam alturas, uma técnica clássica para monitorizar o crescimento das crianças. O sinal é claro: não vai haver muitas demarcações tradicionais do tempo neste filme; estamos a cobrir as regras. Podemos avaliar a passagem do tempo através da música e da moda e dos gadgets, mas mais fielmente ainda pela maneira como os miúdos crescem de cada vez que saltam para dentro da narrativa. Os espectadores ficam hipnotizados pela audácia do feito. E a seguir fascinados pela inegável força emocional do conteúdo.
Um quarto de século após ter repentinamente saído da cena do filme em Austin, Texas, que ajudou a alimentar com hits de cinema independente como Slacker e Dazed and Confused — e depois de grandes sucessos como Escola de Rock e a trilogia Antes do Amanhecer/Anoitecer/da Meia-Noite —, Linklater parece ter chegado ao pináculo da carreira. Como é que o conseguiu exactamente? Linklater, que nasceu em Houston no Verão de 1960, lembra-se nitidamente do sentimento de não ter um pai em casa. “Ethan [Hawke] e eu falámos muito disso durante a rodagem de Boyhood — dos efeitos dos divórcio”, diz Linklater sobre as conversas que teve com o seu colaborador frequente (fizeram oito filmes juntos), esfregando no queixo a curta barba grisalha durante a nossa conversa no hotel Capella em Washington. “Temos coisas em comum: os nossos pais foram-se embora quando tínhamos mais ou menos a mesma idade. Fomos criados pelas nossas mães — mães fortes e jovens que ainda tinham de se afirmar na vida. “Juro por Deus, tinha duas irmãs mais velhas que sofreram o choque emocional [da saída do meu pai]. Eu não me senti tão afectado. Agora, olhando para trás, sei que também o fui, mas nem sequer me defino realmente [dessa maneira]. Quando alguém me pergunta como foi a minha infância, respondo que aconteceram algumas coisas estranhas, mas nem sequer me lembro de pensar: ‘Ah, os meus pais divorciaram-se.’”
No entanto, Linklater lembra-se da dor que sentiu num dado momento. “Não se esqueça de que estávamos nos anos 1960 e que portanto [o divórcio] era uma coisa rara”, diz o cineasta, que cresceu em parte no leste do Texas. “Acabei por me mudar para uma pequena cidade onde era o único miúdo da minha turma, de todas as turmas, com pais divorciados. Mais tarde, isso também aconteceu a outros colegas, mas lembro-me de ter sentido vergonha por o meu pai não viver connosco. As pessoas diziam: “Hey, já estive na tua casa mas nunca vi o teu pai.’ E eu respondia: ‘É porque estava a trabalhar.’ Não podia simplesmente dizer: ‘É porque não vive connosco.’” Linklater reflecte por uns instantes. “Agora, já não tem grande importância. É por isso que penso que [em Boyhood] mostrei uma família divorciada… Todas as amigas das minhas filhas têm meios-irmãos”, faz notar Linklater, que tem duas filhas gémeas com dez anos e uma filha com 20, Lorelei (que no filme interpreta o papel de Samantha, a irmã de Mason Jr.).
O realizador reflecte na quantidade de miúdos que vão e vêm entre os seus pais divorciados — uma semana com a mãe, uma com o pai. “Têm sido feitos estudos que dizem que é melhor as crianças terem uma casa principal”, diz. “Entretanto, temos meia-geração de cobaias.” Ao longo dos anos, o rapaz no centro de Boyhood tem de suportar dois padrastos que bebem muito, enquanto a vida amorosa do seu pai biológico permanece mais misteriosa. Mas, de repente, uma dessas mulheres torna-se a sua madrasta. “Nunca sabia com quem é que o meu pai namorava”, diz Linklater, cujo “biopai” vivia em Houston enquanto o rapaz vivia com a mãe em cidades texanas como Huntsville. “Nunca conheci uma namorada do meu pai até se tornar a minha madrasta. Houve a minha mãe e depois foi o silêncio radar até que, de repente — bum! — passei a ter uma madrasta. Deve ter havido outras. Mas, sabe, eu não dei por isso. “Ainda por cima, durante os fins-de-semana com ele, divertíamo-nos o tempo todo. Jogos da bola, museus e filmes — coisas engraçadas, diz Linklater. (No filme, Ethan Hawke, no papel do pai divertido do fim-de-semana, leva os seus filhos a um jogo da equipa de basebol Astros de Houston.) “Ele não era do género a dizer para fazer o raio dos trabalhos de casa.”
O filme, porém, é “um pouco como se fosse visto do lado da minha mãe”, diz do papel interpretado por Patricia Arquette. “E quem fica quase sempre com as crianças não consegue esconder os namorados.” Boyhood poderá adoptar “o lado da mãe”, mas a perspectiva, diz Linklater, é claramente a dos miúdos. Por isso, o cineasta procurou nas suas próprias memórias a maneira de mostrar a mudança que se opera quando um parceiro amoroso se torna de repente uma figura de autoridade. “Na altura em que isso aconteceu com a minha mãe, não gostei nada”, diz Linklater, lembrando a sua reacção quando a mãe voltou a casar — e ao facto de ter de repente um padrasto. “Não aceitava a autoridade dele. Era tipo: ‘Hei, não ganhaste esse direito.’ Mesmo sendo pequeno, um miúdo não se sente à vontade face à autoridade que exercem. Com os nossos pais biológicos, temos de aceitar que há qualquer coisa de natural — e lidar com isso. Mas [com um padrasto ou uma madrasta] é tipo: ‘Quem raio és tu?’ A relação é muito carregada.”
Enquanto cineasta, Linklater diz frequentemente que é dos que não constroem tramas — as personagens, os estados de ânimo e as emoções são mais importantes. Adora aqueles momentos que outros qualificariam como banais, porque é aí que encontra ressonâncias. "O que me interessa é a memória daquilo que realmente sentimos”, diz Linklater. Os grandes momentos nem sequer são nossos. Em última análise, nem sequer o nosso próprio funeral é nosso. Nem sequer lá estamos. Portanto, não nos lembramos do nosso nascimento e na nossa morte já lá não estamos. No nosso casamento estamos tão angustiados — eu nunca casei, mas não conheço ninguém que se tenha divertido. E a licenciatura é algo de estritamente institucional… Até o nosso primeiro beijo está tão cheio de carga emocional que muito rapidamente se torna inconsequente.”
“Este filme”, diz Linklater de Boyhood, “é simplesmente uma colecção de pequenos momentos íntimos, nenhum deles muito maior do que os outros… O tipo de coisas que seriam deixadas de fora noutros filmes.” Contudo, um dos marcos assinalados por Linklater em Boyhood é um aniversário festejado com familiares mais velhos. “Aconteceu-me mesmo”, diz Linklater sobre aquela festa com os avós. “Mas eu tinha 13 anos, não 15. E foi no Natal, não foi uma festa de anos. Digo sempre que esse foi o ano da minha ‘bar mitzvah’ de campónio.” O acontecimento, encenado sem juízos de valor, mostra como o amor pode expressar-se entre as gerações. “A avó deu-me a Bíblia, porque essa era a sua maneira de cuidar da minha alma”, diz Linklater. “E o avô deu-me uma pistola e ensinou-me coisas sobre, digamos, o seu mundo. E eu até pude ir lá fora disparar contra um alvo com comida ou algo assim. Nunca gostei de caçar, mas gostava de treinar o tiro ao alvo… É divertido para um rapazinho dar uns tiros com o raio de uma pistola. Eu gostava daquela cultura das armas de fogo…”
“E são coisas culturalmente tão diferentes, a religião e as armas”, diz ainda o realizador, passando para o plano mais lato das implicações sociais da questão. “Acho que a esquerda perdeu as pessoas brancas do Sul. O que é uma pena, porque do ponto de vista económico não as teriam perdido, mas perderam-nas com essas duas coisas. E quem percebe um bocadinho sabe que não há nada lá de malévolo. Os desportistas em geral, tal como as pessoas religiosas em geral, no filme, são tão queridos.” “Os pais do meu padrasto gostaram de nós e integraram-nos imediatamente na sua família. E sinto tanto carinho por eles. Mas essa era a cultura deles. Eram baptistas do Sul. O meu pai era mais Unitário… Fazíamos parte daquela família. Fico feliz por isso me ter acontecido.
Em meados de 1970, na altura da temporada de basebol do seu último ano de liceu, Linklater mudou-se para Houston, onde, pela primeira vez, teve a oportunidade de viver com o seu pai biológico. Linklater tinha canalizado grande parte da sua energia de rapaz nos desportos e agora, no Liceu Bellaire de Houston, teve a oportunidade de jogar numa equipa que já fora campeã estadual. Linklater, que mede 1,75m, era um corredor muito rápido no lado esquerdo do campo e entre as bases. “Marquei .400 [o basebol é um jogo com muitas estatísticas, esta marcação refere-se que em 1000 bateu 400], roubei mais de 100 bases na minha carreira. Era rápido, bom “bunter” [que significa batedor mas no sentido de uma jogada de sacrifício, eliminando-se a si próprio em favor da equipa], mediano com o braço”, diz com clareza, descrevendo as suas forças e fraquezas, como se ganhasse a vida a avaliar talentos. Linklater diz que ia quase batendo o recorde de roubos de bola daquela temporada quando o treinador, Ray Knoblauch (pai do futuro Chuck Knoblauch, da Major League), parou de lhe dar o sinal para avançar. “Eu queria exibir-me, dar mais balanço [à bola] do que bater, mas estava disposto a fazer o meu papel.”
Linklater aceitou uma bolsa de basebol na Universidade Estadual Sam Houston, onde começou uma temporada antes de apanhar uma infecção, que resultou em batimentos cardíacos irregulares. Foi então forçado a abandonar o jogo. Abandonou a escola, trabalhou uns anos numa plataforma petrolífera e poupou dinheiro para a sua nova paixão: realizador de cinema. A seguir, seria o co-fundador da Sociedade Cinematográfica de Austin em 1985, dedicada a mostrar todo o tipo de filmes experimentais e independentes.
Há uma dúzia de anos, quando Linklater começou a fazer o casting da sua estrela de Boyhood, tentou evitar escolher uma criança que lhe lembrasse o atleta que ele próprio tinha sido. Durante os seus anos como jogador, “era para ali deixado a jogar à esquerda, tive uma crise existencial, tentei clarificar as minhas ideias”, diz Linklater. “Tentamos jogar e esquecer o resto. Se pudesse voltar a ter 17, 18 anos… estou muito mais calmo agora. Tornei-me zen.”
Quando escolheu Coltrane para o papel de protagonista, o cineasta foi buscar um rapaz que não era um actor profissional, porque diz que esses tendem a querer agradar a toda a gente. Escolheu um rapaz de Houston cujos pais, “que tinham pretensões artísticas”, o tinham educado em casa.
“Não era possível encontrar alguém que tivesse todas as minhas facetas”, diz Linklater, “portanto escolhi um rapaz sensível, artístico — e não um atleta competitivo, essa não era a minha melhor faceta. Escolhi a melhor parte de mim próprio”.
A mãe de Linklater viu recentemente Boyhood pela primeira vez. “Eu estava um pouco nervoso”, diz Linklater, sobretudo dada a componente autobiográfica que perpassa todo o filme. Telefonou à mãe. “Foi tipo: ‘Então, mãe?’ E ela: ‘Foi lindo, vi-o duas vezes.’ E eu: ‘Duas?’ E ela [disse] que o seu leitor de Blu-Ray tinha voltado ao início quando o filme acabara e ‘portanto, tornei a ver’. E eu: ‘Uau, não tens mais nada para fazer estes dias?’ Cinco horas e meia de visionamento.”
“Ela disse: ‘Aaah, faz-me lembrar todas aquelas vezes [quando eras novo] em que tivemos de te convencer, quando nos mudávamos, com coisas como: [a nova casa] tem uma piscina. Eu dizia-te, tens de ver o lado positivo, vamos ter uma piscina.’ Ela lembrava-se disso tudo, sabe?”
Linklater também se sentiu aliviado por outra razão. “Ela não viu nem percebeu realmente tudo.” Nem todos os pormenores autobiográficos são assim tão aparentes. A reacção de Linklater: “Boa. Acho que consegui entrelaçar as coisas lindamente.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post<_o3a_p>